Sunday, October 31, 2004

Alice Vieira


Posted by Hello
A propósito do texto «Eleições», tirado de Caderno de Agosto, vimos em aula outros livros de Alice Vieira. Ficam aqui os princípios — cerca de uma página de texto — de todos esses livros. A capa em cima é de uma edição de Rosa, minha irmã Rosa, livro publicado pela primeira vez há precisos 25 anos. (Nas transcrições não pude pôr a devida margem em cada parágrafo.)

Rosa, minha irmã Rosa
Quando a minha irmã nasceu, o meu desapontamento foi tão evidente que a minha mãe, abafada entre lençóis e cobertores da cama do hospital, me disse:
— Ela vai crescer num instante!
Assim como se me pedisse desculpa nem ela saberia ao certo de quê.
Num instante.
Num instante?
Num instante descia eu a rua para ir a casa da Rita trocar cromos («não te compro mais enquanto não colares na caderneta todos os que tens!», dizia a mãe tantas vezes), ou para lhe emprestar um livro, ou ela a mim.
Num instante bebia eu o leite nos dias em que me atrasava, para apanhar a carrinha da escola, a voz de Margarida nos meus ouvidos: «Olhe que por sua causa vamos chegar tarde!»
Num instante ficava em água o gelo, em tempo de calor — e o que eu e a Rita tínhamos rido no dia em que a Chica estava cheia de medo que os cubos de gelo entupissem a pia...
Não, a minha irmã não ia crescer num instante.
E eu não entendia por que razão a minha mãe tinha dito aquilo, se ela sabia, tão bem como eu, que não era verdade.
Desse dia lembro-me ainda que fui dormir a casa da minha avó Elisa, que me encheu os bolsos de rebuçados, e me deixou ir para a cama mais tarde e sem se importar de saber se eu tinha lavado bem os dentes. Já deitada, ouvi o telefone tocar muitas vezes, e sempre a minha avó respondia:
— É outra rapariga... Correu tudo bem...

Lote 12, 2.º frente
Passo a mão pela testa, meu Deus, a barafunda que por aqui vai, este não saber de coisa nenhuma, querer um lenço, uma esferográfica, um chinelo, e tudo estar nos sítios mais inacreditáveis, levantar a mão para acender o interruptor do quarto e a mão andar a nadar pela parede, ora mais para cima, ora mais para baixo, ora mais para a esquerda, ora mais para a direita, e de repente dar com o interruptor mesmo diante dos nossos olhos só que na parede do outro lado.
— Os interruptores são sempre do lado direito! Que casa é esta que tem os interruptores na parede do lado esquerdo! Isto foi feito para canhotos ou quê?
Perguntas, perguntas, perguntas.
Ninguém me responde, eu sei. Nem eu estou à espera da resposta deles, que sabem tanto desta casa como eu. Desta casa onde tudo me parece virado do avesso, disparatado, feito com a única finalidade de me irritar. Desta casa para onde viemos viver
História um bocado complicada, segundo percebi.
Uma noite a mãe chamou-me e disse:
—Vamos mudar de casa.
Assim de repente, como se me estivesse a dizer a coisa mais natural do mundo. Com a mesma simplicidade com que me costuma dizer «vamos à Baixa», ou «vai arrumar o teu quarto».
— Mudar de casa?
Acho que devo ter feito uns olhos enormes porque o meu pai, na brincadeira com a minha irmã Rosa, pareceu ficar de repente muito divertido e perguntou:
— Não sabes o que é mudar de casa? É pegar na tralha toda que temos aqui dentro e levá-la para outro sítio. Pronto.

Chocolate à chuva
Fizemos malas, desfizemos malas, vamos embora, não vamos embora, tira o mapa da gaveta, volta a pôr o mapa na gaveta, cui dado não te entales, contámos o dinheiro pela 146.ª vez, a Rosa tolinha de todo a aumentar ainda mais a confusão agarrada às nossas pernas a gritar «eu tenho cinco réis como a Carochinha», e o meu pai com aquele ar de quem não está para achar graça nem à filha mais nova, quanto mais.
Não há dúvida: férias são rica invenção, sim senhora. Gasta-se mais dinheiro do que nos outros dias (diz o meu pai), cansamo-nos mais do que a trabalhar (diz a minha mãe), deixamos a casa fechada e sozinha o que é um perigo (diz a minha avó), não vou dormir na minha caminha e com a minha almofada (diz a minha irmã), zangamo-nos todos à partida, à chegada, e quando não se encontra lugar para arrumar o carro (digo eu), mas não há nada melhor neste mundo, ó gentes! Admiramos os rios, os riachos, os montes, os vales, e o meu pai acaba sempre por dizer «há lá coisa mais linda que o Largo 5 de Outubro», que foi onde ele nasceu em Vila Flor, às três e meia da tarde, e a minha mãe pronto, amua até dali a um quarto de hora que é quanto duram os amuos dela. Durante esse quarto de hora, o meu pai aproveita para gabar, pela 486.ª vez, as maravilhas do seu largo, da sua terra, da água das suas fontes, da cor dos ovos, do sabor das couves, e do som dos sinos.
Depois encavalita a Rosa num dos joelhos e pergunta:
— Rosinha, o que é que aconteceu no 5 de Outubro?
E a minha irmã, muito bem mandada, responde:
— A República.
Mas engasga-se pelo meio da palavra, que é grande de mais para os três anos dela, e põe «rr» onde eles não existem, e tira o «1» donde ele devia estar, e fica assim uma república um bocado às três pancadas, mas o suficiente para o meu pai estalar de contente:
— Rica menina!

Este rei que eu escolhi
A prima Leocádia tinha dito: às cinco.
E, quando a prima Leocádia dizia às cinco, ela queria exactamente dizer às cinco. E não às cinco e dez, ou às cinco menos um quarto. Cinco eram cinco. Para os relógios certos e para a prima Leocádia.
— Herdei do meu bisavô inglês este gosto pela pontualidade — dizia muitas vezes a prima Leocádia.
Embora na família as pessoas às vezes se interrogassem onde é que a prima Leocádia teria ido descobrir um bisavô inglês. Mas isso era questão em que as pessoas só pensavam de longe a longe, até porque — diziam — com a idade da prima Leocádia, todos tinham direito a escolher um bisavô em qualquer canto do mundo.
Se desse bisavô inglês a prima Leocádia tinha herdado o gosto (Fernando, Vasco e Mafalda diriam «mania»...) da pontualidade, de quem ela herdara o gosto pela fitinha de veludo que sempre trazia ao pescoço, em jeito de colar, isso é que ninguém sabia. E mais uma vez ninguém parecia importar-se muito em sabê-lo.
O certo é que a prima Leocádia tinha dito às cinco — e ali estavam eles ainda em casa, com o ponteiro do relógio a aproximar-se perigosamente da hora marcada.
— Mas quando é que vocês estão prontos, irmãozinhos da minha alma? — perguntava o Vasco.
— Não te sabia tão ansioso por chegares a casa da prima Leocádia... — troçava Mafalda, sem se decidir entre as calças de ganga ou uma saia mais «à senhora», mais como a prima gostava.
— Não estou ansioso por chegar a casa da prima, estou é cá com uma fome que nem vejo e já são mais que horas de lanchar. Ela costuma ter lá aquele bolinho de chocolate, carregadinho de natas, que é uma maravilha...
— Interesseiro... — resmoneou Fernando, ao mesmo tempo que arrumava os livros que trouxera, na pasta, do liceu.
— Olha o santinho! Não me venhas dizer que vais recusar uma fatiazinha de bolo, quando lá chegares!
— Recusar, não recuso, mas também não estou assim a pensar nisso como tu. Até parece que passas fome, ou que só comes choco late quando vais a casa da prima Leocádia.

Graças e desgraças da corte de El-rei Tadinho. monarca iluminado do reino das cem janelas
Diziam os grandes livros de leis do Reino das Cem Janelas que a crise, quando nascia, era para todos. Ou seja: se faltava comida na mesa do ferreiro, também faltava na mesa do juiz; se entrava água em casa do pedreiro, também entrava em casa do físico da corte.
Nem sequer o rei escapava à força da lei e. por mais de uma vez, em Invernos rigorosos, sua majestade el-rei Tadinho era visto a meio da noite agarrando em tudo o que era balde para pôr nos cantos do palácio onde chovia como na rua.
A isto deviam os habitantes do Reino das Cem Janelas chamar democracia, mas não chamavam, porque nunca tinham ouvido falar dos gregos nem das suas complicadas teorias. Para falar verdade, os habitantes das Cem Janelas só tinham ouvido falar de si próprios, e estavam mesmo convencidos de que o mundo começava onde começava o reino, e acabava exactamente no local onde uma tabuleta dizia: «Acabais de deixar o Reino das Cem Janelas, gratos pela vossa visita.»
Sua majestade el-rei Tadinho estava perfeitamente certo de que o primeiro habitante da terra tinha sido el-rei Tadão, seu tetra-tetra-tetravô, fundador da dinastia. Donde esse seu tetra-tetra-tetravô teria vindo — eis o que nunca incomodara os seus pensamentos. Verdade se diga que os pensamentos de el-rei Tadinho raramente eram incomodados fosse pelo que fosse: se o reino vivia em período de riqueza, toda a gente andava feliz: se vivia em período de crise, nada a fazer senão aguentar, que assim mandavam os grandes livros de leis. Livros de leis feitos pelos bisavós ou mesmo tetra vós — nem ele sabia ao certo — de el-rei Tadinho.

Águas de Verão
Era pelo fim do Verão, começavam já as primeiras chuvas, e chegávamos em bando.
Nesse tempo o tempo era diferente, e as férias duravam muito. As horas tinham então muitos minutos, os minutos muitos segundos, e os segundos a vida inteira dentro deles.
O dia chegava para tudo o que nós éramos: índios, cowboys, palhaços, polícias, ladrões, bombeiros, médicos, mágicos, artistas. Até que vinha a noite e as nossas mães nos chamavam. Subíamos aos quartos, tomávamos banho em água morna, os rapazes punham brilhantina no cabelo e faziam, cuidadosamente, o risco ao lado; as meninas vestiam saias com folhos e punham laços nas tranças. E descíamos à sala de jantar.
Começavam então histórias que não compreendíamos. As mães pegavam nas nossas mãos e levavam-nos pela enorme sala cheia de pequenas mesas quadradas, com toalhas brancas de cheiro a roupa húmida passada a ferro. E as mesas estavam todas cheias de outras mães, com outros filhos igualmente vestidos e lavados, e que até há bem poucos minutos tinham sido, como nós, índios, cowboys, palhaços, polícias, ladrões, bombeiros, médicos, mágicos, artistas.
As mães falavam então todas umas com as outras, nunca largando as mãos dos filhos, exibindo-os como os seus brinquedos preferidos.
Debaixo da brilhantina do cabelo e dos folhos dos vestidos, olhávamos uns para os outros em silêncio, e todos nós sabíamos: era a hora de os adultos começarem, eles também, a brincar. Geralmente só sabiam brincar aos pais e às mães, ou então aos doentes. Não tinham, realmente, a nossa imaginação, e às vezes um de nós deixava cair da boca um leve suspiro de aborrecimento. Mas logo eles olhavam para nós, severamente, assim como se nos dissessem:
— Vocês tiveram o dia inteiro para brincar, agora é a nossa vez!

Flor de mel
Melinda gosta do André Pequeno.
Às vezes, quando a Mãe Joana não está a olhar, ela abre a lata das bolachas e tira uma, a maior, a mais torradinha de todas, para lhe dar. André Pequeno está sempre com fome. Sempre. Por isso a Mãe Joana repete para quem lhe dá ouvidos:
— Se lhe fosse a dar comida sempre que ele a pede, gastava num dia tudo o que a mãe dele me dá para o mês inteiro!
Melinda não gosta que a Mãe Joana diga isto diante do André Pequeno. Tem pena que ele possa ficar triste. Pensar que não gostam dele. Pensamento pior que esse não há, ou ela não conhece.
Mas o André Pequeno não liga, até parece que não é nada com ele, que estão a falar do outro André, maior que ele seis meses e dois centímetros de altura, e que lhe dá beliscões quando a Mãe Joana está distraída, ou a mudar a fralda a um dos bebés.
Para lá de gostar de bolachas, o André Pequeno gosta ainda de brincar com carrinhos. Tem um vermelho e outro azul que várias vezes ao dia ganham o Campeonato Mundial de Velocidade no corredor da casa.
Mas mais do que tudo, talvez ainda mais do que as bolachas, o André Pequeno gosta de Melinda, das histó rias que Melinda conta, e tem muita pena de não ter uma mãe igual à dela.
— A tua mãe ainda está com os piratas? — pergunta ele baixinho.
— Ainda — responde Melinda.
— Numa gruta?
— Numa gruta.
— Escura?
— Escuríssima! E guardada por dois lobos ferozes, de quatro cabeças.
André Pequeno estremece, estremece.

Viagem à roda do meu nome
Combinou-se que a menina, quando nascesse, se chamaria Anelise, que era o nome da heroína do romance que a mãe andava a ler.
A mãe dizia: «Anelise», assim com um A muito aberto e redondo na sua boca. Anelise de olhos azuis e cabelos loiros, tal qual a do romance, com um fim tão infeliz, coitadinha, sempre à espera de um noivo que não chegaria nunca, pelo menos a tempo de entrar na última página do livro.
Anelise, pois então.
O pai franzira utn pouco o sobrolho. Lá no íntimo sempre pensara dar à primeira filha o nome de Constança, que na sua família se prolongava por gerações várias, num destino a que poucas mulheres tinham conseguido escapar. Mas nada disse. Prometera à mulher ser ela a escolher o nome, não podia agora voltar com a palavra atrás.
Anelise. Pois então que fosse Anelise.
A avó resmungou:
— Onde é que já se ouviu tal nome! Até me custa a dizer... A-ne-li-sa... coitadinha da criança, é lisa logo à nascença!
A mãe é que não gostou da graça:
— «Lise», mãe! O nome é Anelise, não é Anelisa!
— Ora, é cá uma diferença! Nomes tão bonitos que há por esse mundo, e logo foram escolher uma tolice dessas!
Mas também a avó acabou por se acostumar. E nas conversas com vizinhas e amigas rematava sempre:
— O que é preciso é que venha perfeitinha.
Como se dissesse: «O nome é horrível, mas a culpa não é minha.»

Paulina ao piano
O piano era um objecto grande de mais para a casa.
— Enche a sala toda — dizia a mãe.
— Raio de ideia — dizia o tio António.
Paulina não dizia nada. Olhava, com aqueles olhos redondos, que iriam fazer D. Francisca repetir, batendo-lhe com o lápis nos dedos:
— Anda sempre na Lua, esta criança!
A Lua era tão longe, tão lá em cima de tudo, que Paulina começava a rir sempre que ouvia isto. Como seria, exactamente, andar na Lua? E como seria a Terra, de lá tão alto? Um dos astronautas tinha garantido que era azul, mas Paulina não estava tão certa como isso, sobretudo quando olhava as ruas e os prédios tão cinzentos e sujos... Seria que da Lua as pessoas (ri-se: chama-se pessoas aos habitantes da Lua?) estavam agora a vê-la? Seria que lá, na Lua, os pais di ziam aos filhos «andam sempre na Terra, estas crian ças?».
E Paulina começava a rir.
E também ria quando olhava para o piano, mancha negra a transbordar da casa.
Enche a sala toda — dizia a mãe.
— Raio de ideia — dizia o tio António.
— Dó, ré, mi, fá, sol, lá, si... — dizia o piano.

Às dez a porta fecha
Quando a Branquinha disse que era a mãe do Dr. Meireles, ninguém pareceu importar-se muito com isso. A Dulce disse «Jesus Maria Santíssima» e enviou mais um carregamento de roupa suja para a lavandaria. A Marquesa abriu muito os olhos, suspirou e disse «ai se fosse comigo!», ao que a D. Joaquina, que nesse dia era Corina e acordara com uma súbita fome de camélias, respondeu de imediato «mas não foi consigo, por isso deixe-se de ais e uis senão ninguém me ouve».
Naquela semana a Branquinha já tinha sido mãe da Conceição da lavandaria, do D. Afonso Henriques, do Gimbras, e da Madre Teresa de Calcutá, que ela vira no Telejornal das nove, no dia em que o Senhor Capitão fizera anos e por isso todos se tinham deitado mais tarde.
De resto, melhor ser mãe do que mulher. No mês anterior a Branquinha tinha sido mulher de toda a gente, e o resultado fora catastrófico. Por mais que a Dulce garantisse «a Branquinha é a Branquinha, que mal tem», havia gente que não gostara nada da graça. A mulher do Dr. Luisinho, por exemplo. Chamou o marido de lado e bateu o pé:
— Impõe-te, Luís! Isso não se admite, é uma falta de respeito. O teu pai nunca o permitiria! Mas tu és um banana...
O Dr. Luisinho encolheu os ombros e fez que não era nada com ele. Deu a volta do costume e quando, à saída, a Branquinha se lhe pendurou ao pescoço a repetir «digam-me lá se alguém aqui tem homem mais bonito do que o meu!», ele sorriu e concordou:
— Ninguém, pode ficar descansada!

A Lua não está à venda
— Se Deus quisesse que eu trabalhasse mais tinha-me dado quatro mãos. Só com duas, não posso fazer mais do que faço.
Isto dizia D. Estrela, quando algum freguês refilava por causa do tempo que a bica levava a chegar à sua mesa. Freguês decerto há pouco no bairro: os outros sabiam que, por mais que refilassem, os gestos de D. Estrela iriam continuar no ritmo de sempre.
A «Lua Cheia» abria as portas antes das sete da manhã, fosse Inverno, fosse Verão. Porque — lá dizia o Sr. Mateus das ferragens — «desde que os americanos mandaram homens para a Lua, as estações do ano ficaram reduzidas a duas».
E o Sr. Mateus continuava sempre:
— Digam-me lá para onde foi o Outono, para onde foi a Primavera? Eu ainda sou do tempo em que as senhoras tinham fatos de meia estação. Lembro-me bem de ir com a minha Idalina-que-Deus-tem aos Pinheiros comprar tecido para o saia e casaco de meia estação. Meia estação era o Outono. Quer dizer: ainda não havia muito frio e já não havia muito calor. Meia estação era isso. Hoje é o que se vê: passa-se de um dia de trinta graus à sombra para um dia de chuva e frio. Verão e Inverno. Nada mais. Primavera e Outono são palavras em vias de extinção. Qualquer dia, as crianças já nem sabem o que é que elas querem dizer, e têm de ir procurar ao dicionário.

Úrsula, a maior
— Tu deves ser tu — disse ela.
Foi então que eu percebi que estava diante de um génio. Olhei-a de alto a baixo, mais baixo que alto, devo dizer, que aquilo nem chegava a metro e meio. E como a inteligência dos génios é contagiosa, respondi:
— Acertaste em cheio: eu sou eu. E, pelos vistos, tu também deves ser tu.
Confesso que, por momentos, ainda alimentei a secre ta esperança de a ouvir responder:
— Estás enganada: sou a rainha do Sabá. Ou então:
— Que ideia! Não se está mesmo a ver que sou o Mário Soares?
(Mitterrand, Senhora Thatcher, Felipe Gonzalez, qual quer destes teria igualmente servido — que os meus conhecimentos políticos não iam mais longe.)
Mas não. Limitou-se a encolher os ombros e a dar de novo provas do seu QI de rebentar a escala, fazendo sair da boca esta tirada de ficar na história:
—Pois.
Ia ser um ano maravilhoso. Agora, mais do que nun ca, eu estava certa disso. Com aquela Supermulher atrás de mim, a toda a hora, a dormir no mesmo quarto — meu Deus, quando terei um quarto só para mim? —, a sair e a entrar para a mesma escola, a conhecer as minhas amigas e inimigas, a dar graxa às professoras (tinha mesmo ar disso, graxista é bicho que se conhece pelo cheiro). Ia ser o ano de todas as maravilhas.

Os olhos de Ana Marta
Trocaram-me de mãe no hospital. Como nos filmes,sabes.
Mandaram embora, de mãos a abanar, a que entrara na certeza de sair com um recém-nascido nos braços, e entregaram-me à que chegara naquela tarde de chuva à procura de remédio contra as dores de cabeça e contra o medo de enlouquecer.
Juro-te: durante muitos anos foi isto que eu pensei.
Não tinha outra explicação. Não podia ter.
Só assim se entendia que ela nunca dissesse o meu nome, que repetisse tantas vezes que estava velha de mais para ser mãe fosse de quem fosse, e que os meus passos, por mais leves, lhe provocassem «crises», como dizia o meu pai.
Durante muito tempo também pensei que «crises» era o termo científico para designar as dores de cabeça ou a loucura.
— Um dia destes endoideço — repetia ela.
— São as tuas crises — murmurava o pai.
Só assim se entendia que eu passasse tantas horas debruçada sobre a mesa de mármore da cozinha, ouvin do as cantigas e as histórias de Leonor, e o bichanar das espanholas na Sala de Visitas, sem que ela se lembrasse de vir ter comigo, olhar uma vez que fosse para os meus cadernos, ralhar-me por ter letra feia ou elogiar-me, se a achasse bonita.
Só muito mais tarde comecei a pensar de outra maneira. Até porque passar a vida toda à espera de ver apa recer a nossa mãe verdadeira também cansa uma pessoa.
Nem o Príncipe Graciano aguentara tanto — e era príncipe.

Promontório da Lua
Não me lembro donde vim, nem quando aqui cheguei, nem quem me trouxe. A memória da infância é fraca, até nas árvores. E a minha infância deve ter-se passado há muitas centenas de anos, segundo as minhas contas.
Centenas de anos aqui, neste exacto local, olhando o mar e as gentes. Vê-las mudar de hábitos, de palavras, de trajos, de senhores. E eu aqui, sempre igual.
Agora as pessoas passam por mim e ninguém se im porta comigo.
Não fosse o Chico ferrador, ou o Papa-Leite, quan do por aqui se arrasta com a sua parelha de pilecas a caminho da estação, e eu diria que ninguém dá pela minha existência.
Daqui a dias, quando me abaterem, tudo vai ser natural, e ninguém vai dar pela minha falta. A não ser o Chico e o Papa-Leite. E as crianças. Talvez elas, quan do um dia forem homens e mulheres, passem por este sítio e digam a seus filhos e netos: «Aqui houve em tempos uma palmeira.»
Elas próprias de nada mais saberão.
De tantos séculos passados sobre o meu corpo.
Do que vi e do que o meu amigo Mohamede me contou.
Das fomes e das loucuras, do luxo e da miséria, das pestes e dos terramotos, dos saques e das conquistas, de piratas e traidores, de índias e áfricas sonhadas. E também da esperança e das derrotas, do vento de liberdade que sempre senti soprar por entre as minhas folhas, entrelaçado de maresia.
Tantas línguas estranhas ouvi falar à minha volta...
Terra junto ao mar é mesmo assim — dizem as pessoas.

Caderno de Agosto
São exactamente três da tarde do primeiro dia de Agosto e vou cumprir a promessa. Quer dizer: vamos cumprir a promessa. Olho para ela, sempre muito direita diante do computador, e tenho a certeza que tudo irá dar Certo. Neste momento o António deve estar a trocar impressões com o pai, sobre os últimos avanços da psiquiatria. Tenho muita pena do António, mas alguém tinha de se sacrificar. De resto, eu nem sei bem se isso será sacrifício para ele que, no fundo, no fundo, sonha com um belo consultório cheio de gente perfumada, com a voz da Belmira ao telefone, «ó Madame Marques, como está?, desculpe mas o senhor doutor só vai poder atendê-la no mês que vem». Essa história de ser médico para bem do povo, a mim não me leva: é tudo palavreado do António para ganhar as boas graças da Renata. E uma voltinha na sua Harley-Davidson, evidentemente.
A casa está em silêncio: o computador mal se ouve, e a minha mãe não suporta música quando trabalha. Aqui para nós, ela é ainda um bocado azelha a utilizá-lo, estilo «ó Glória» («Glorinha», se a aflição é muita), «e se eu carregar nesta tecla o que é que acontece?» Já lhe expliquei muitas vezes as teclas todas, as maravilhas e os perigos de uma maquineta daquelas, e que ela tem de estar muito concentrada se não quer que tudo vá, de repente, para o maneta. A Avó Tita é que fica furiosa quando eu digo isto. Já lhe contei não sei quantas vezes que o maneta era um general das invasões francesas que só tinha um braço e que, por ser terrível, as mãezinhas de então diziam às criancinhas de então que as mandavam para ele se elas se portassem mal, não comessem a sopa toda, essas coisas que as mães, em todas as épocas da História, proibem às suas crias. Mas a minha avó é insensível a argumentos históricos, e só resmunga: «Coisas que a tua mãe te mete na cabeça.»

Se perguntarem por mim digam que voei
Quando Joana Ofélia entrou pela primeira vez na Casa dos Três Anjinhos, ainda ela se chamava Casa do Freixo e os relógios andavam todos na perfeição.
Não levava bagagem que se visse: a roupa e pouco mais, que assim ordenara Maria da Piedade. Além do saco de linho com bagas da erva-das-sete-sangrias, que Demétria lhe passara para as mãos.
— Quem te quiser bem encontrará o caminho do teu coração — dissera ela, em jeito de despedida, acrescentando, num murmúrio de voz:
Aqui se guardam todos os males,
se liga o que tem de ser ligado,
e se desliga o que não nasceu para ser ligado.
Por luas e sóis
e mundos a haver.

Joana Ofélia pensou em Pedro Ruiz:
— Qualquer janela serve para voar — murmurou.
Mas logo deitou a recordação para muito longe. Pedro Ruiz desaparecera, um dia voltaria, tinha a certeza.
Agora, ela era uma senhora casada, com um homem que mal conhecia, mas que prometera amá-la até ao fim da vida, numa cerimónia muito rápida na igreja da aldeia, com o padre Aparício a perguntar «e os convidados?, então não se espera pelos convidados?» sem perceber que não havia convidados nenhuns, porque Maria da Piedade assim o determinara. Também Joana Ofélia prometeu amá-lo até ao fim da vida, olhando para ele, muito direito a seu lado, com a farda impecavelmente engomada.
Delfina serviu-lhe de madrinha («porque em mim ninguém manda, era só o que faltava»), não sem que antes, já diante do altar, lhe tivesse novamente perguntado:
— Gosta mesmo dele?

Um fio de fumo nos confins do mar
Quando Mademoiselle Nadine Fabre entrou para o táxi que a havia de levar ao São Carlos, para a primeira récita de Maria Callas, em Lisboa, estava João Queiroz a enfiar Narcisa para dentro do seu enorme Chrysler preto, ordenando ao chofer que seguisse a caminho da clínica. Mademoiselle Nadine Fabre sorriu ligeiramente para o vizinho, mas ele baixou apenas a cabeça, distraído.
Até é possível (o Crispim já deve ter visto uma data de filmes com cenas destas) que os dois automóveis se tenham depois cruzado nalguma esquina, que um deles (talvez o táxi) tenha cedido passagem ao outro (possivelmente ao Chrysler que é muito maior e deve ir a apitar que nem um louco), ou, pelo contrário, que tenham ambos emburrado nalgum cruzamento, «a prioridade é minha, ó seu camelo!», «e eu levo aqui uma grávida, ó seu idiota!», até João Queiroz se decidir a intervir e, como diz o Crispim quando fala dos seus problemas sindicais, «conseguir desbloquear a situação».
Mas mesmo que tudo se tivesse passado assim — o que, evidentemente, ninguém hoje consegue garantir — Mademoiselle Nadine Fabre não teria dado por nada.
Porque Mademoiselle Nadine Fabre estava muito longe.
Mademoiselle Nadine Fabre fechou os olhos, e dentro do táxi transformou-se em Maria, é grega, o avião em que viajou de Madrid para Lisboa acabou de aterrar na Portela, está urna multidão à sua espera.

Vinte e cinco a sete vozes
Bruto gravador, minha! Isso é para quê? Para um trabalho que queres fazer? Desculpa lá, mas tu já não tens assim muita idade para andares na escola. Para uma pesquisa? Uma tese? Usas palavras bué da finas. A minha setôra de Português havia de gostar de te ou vir! Mas afinal a pesquisa é sobre o quê? O nosso conhecimento sobre o 25 de Abril? Ihhh! Cá o meu, aviso-te já, é muita pequenino. Comigo não te safas. A Madalena é que sabe imenso disso. A Madalena sabe imenso de todas as coisas.
Pena que não seja para a televisão. Gramava bué aparecer num programa de televisão a dizer adeus à família e tudo. A minha mãe havia de gostar. Ela é vidrada em televisão, minha! O A. Xis é que apareceu na televisão aqui há uns meses. Quem é o A. Xis? Um colega meu. O nome verdadeiro não sei, toda a gente o trata assim, até os professores, ele não responde por outro nome. Mas quando o A. Xis apareceu na televisão foi uma barraca que nem te conto. A setôra de Português viu o programa e veio para a aula furio sa, a dizer que ele devia era ter vergonha na cara, e que ao menos escusava de ter dito o nome da escola onde andava, sempre poupava os professores àquele vexame. O meu pai diz que se o A. Xis não sabia o que era o 1.º de Dezembro, a culpa é da escola que não ensina nada. Que ele tem só a quarta classe e sabe muito bem o que aconteceu no dia 1.º de Dezembro, porque a D. Quitéria, diz o meu pai, era uma professora como já não há. O meu pai diz sempre que essas coisas das datas a escola é que deve ensinar, para isso é que a gente cá anda, e por isso é que ele paga livros, mochilas, cadernos e essa tralha toda.
Olha que tu podes interromper quando quiseres, tás a ouvir? Eu, quando vou embalado, ninguém me agarra.