Sunday, February 27, 2005

Avaliação


Capa para O Irreal Quotidiano, desenhada por Ricardo Galvão, enquanto aluno do décimo ano, na José Gomes Ferreira, há quinze anos. O Ricardo é hoje um dos melhores caricaturistas portugueses, e não se há-de importar deste aproveitamento.Posted by Hello
Escola Secundária José Gomes Ferreira
Língua Portuguesa, 9.º ano — 2006-2007
Luís Prista (turmas 1, 2, 3, 5, 6)

Avaliação
Adopta-se uma abordagem holística, em vez de se estipular uma pontuação analítica. Considera-se que o nível atribuído no final do período não tem de decorrer de soma estrita de cotações parcelares. A índole da avaliação no ensino básico — individualizante, mais criterial do que detida numa norma — não é compatível com a indicação de fórmula de que se extraísse a classificação no fim do período. Também as características da disciplina, que trabalha competências cuja evolução, em termos mensuráveis, independe do trabalho do aluno ao longo de um período ou até ano lectivo, desaconselham que a avaliação decorra da aferição da proficiência nos principais objectivos, o processamento da leitura e o processamento da escrita. (O próprio conhecimento explícito da língua, porque implica juízos linguísticos, ancora-se em capacidades que pouco evoluem num prazo médio.)
A abordagem holística, que aliás é particularmente adequada à escala 1-5, não dispensa que o professor detenha muitos registos de tarefas avaliadas. Porém, esses instrumentos, heterogéneos, pontuados ou não, podem sustentar a apreciação que o professor fará sem terem de determinar o nível a atribuir (a partir de alguma fórmula usada uniformemente).
Como se fez com as mesmas turmas em 2004-2005 e 2005-2006, serão redigidas descrições do trabalho de cada um dos alunos. Essas caracterizações, discursivas, procurarão dar conta das capacidades dos alunos nas modalidades ensinadas e, sobretudo, conterão indicações concretas sobre o que o aluno deve fazer para melhorar.
Para o estabelecimento de tais perfis concorrerão variados instrumentos, aplicados com muita regularidade. Esta constância relaciona-se com uma especialidade da disciplina de Língua Portuguesa, a de as próprias tarefas de ensino poderem servir como manifestações bastante seguras da proficiência de cada aluno em cada modalidade.

Monday, February 07, 2005

Fernando Sabino


O menino no espelho, de Fernando Sabino, é uma das obras que figuram no programa do sétimo ano enquanto «sugestões para leitura orientada». No manual temos um trecho deste livro, «Milagres» (pp. 115-116). Aqui transcremos todo o prólogo e uma parte do capítulo II (a que se segue ao trecho que está no manual).
Fernando Sabino, brasileiro, morreu há meses, a 11 de Outubro de 2004, na véspera de completar 81 anos. Deves ter em conta que no texto há características da ortografia brasileira. Por exemplo, «ficamos» — pretérito perfeito do indicativo — vem grafado sem acento; «tecto» vem sem «c».
O menino no espelho

PRÓLOGO
O MENINO E O HOMEM

QUANDO chovia, no meu tempo de menino, a casa virava um festival de goteiras. Eram pingos do teto ensopando o soalho de todas as salas e quartos. Seguia-se um corre-corre dos diabos, todo mundo levando e trazendo baldes, bacias, panelas. penicos e o que mais houvesse para aparar a água que caía e para que os vazamentos não se transformassem numa inundação. Os mais velhos ficavam aborrecidos, eu não entendia a razão: aquilo era uma distração das mais excitantes.
E me divertia a valer quando uma nova goteira aparecia, o pessoal correndo para lá e para cá, e esvaziando as vasilhas que transbordavam. Os diferentes ruídos das gotas d’água retinindo no vasilhame, acompanhados do som oco dos passos em atropelo nas tábuas largas do chão, formavam uma alegre melodia, às vezes enriquecida pelas sonoras pancadas do relógio de parede dando horas.
Passado o temporal, meu pai subia ao forro da casa pelo alçapão, o mesmo que usávamos como entrada para a reunião da nossa sociedade secreta. Depois de examinar o telhado, descia, aborrecido. Não conseguia descobrir sequer uma telha quebrada, por onde pudesse penetrar tanta água da chuva, como invariavelmente acontecia. Um mistério a mais, naquela casa cheia de mistérios.
O maior, porém, ainda estava por se manifestar.

NAQUELE dia, assim que a chuva passou, fui como sempre brincar no quintal. Descalço, pouco me incomodando com a lama em que meus pés se afundavam, gostava de abrir regos para que as poças d’água, como pequeninos lagos, escorressem pelo declive do terreiro, formando o que para mim era um caudaloso rio. E me distraía fazendo descer por ele barquinhos de papel, que eram grandes caravelas de piratas.
Desta vez, o que me distraiu a atenção foi uma fila de formigas a caminho do formigueiro, lá perto do bambuzal, e que o rio aberto por mim havia interrompido. As formiguinhas iam até a margem e, atarantadas, ficavam por ali procurando um jeito de atravessar. Encostavam a cabeça umas nas outras, trocando idéias, iam e vinham, sem saber o que fazer. Algumas acabavam tão desorientadas com o imprevisto obstáculo à sua frente que recuavam caminho, atropelando as que vinham atrás e estabelecendo na fila a maior confusão.
Do outro lado, entre as que já haviam passado, reinava também certa confusâo. Enquanto as que iam mais à frente prosseguiam a caminhada até o formigueiro, sem perceber o que acontecia á reta guarda, as ainda próximas do rio ficavam indecisas, indo e vindo por ali, junto à margem, pensando uma forma qualquer de ajudar as outras a atravessar.
Resolvi colaborar, apelando para os meus conhecimentos de engenharia. Em poucos instantes construí uma ponte com um pedaço de bambu aberto ao meio, e procurei orientar para ela, com um pauzinho, a fila de formigas.
Estava empenhado nisso, quando senti que ha via alguém em pé atrás de mim. Uma voz de homem, que soou familiar aos meus ouvidos, perguntou:
— Que é que você está fazendo?
Sem me voltar, tão entretido estava com as formigas, expliquei o que se passava. Logo consegui restabelecer o tráfego delas, recompondo a fila atra vés da ponte. O homem se agachou a meu lado, dizendo que várias formigas seguiam por um caminho, uma na frente de duas, uma atrás de duas, uma no meio de duas. E perguntou:
— Quantas formigas eram?
Pensei um pouco, fazendo cálculos. Naquele tempo eu achava que era bom em aritmética: urna na frente de duas faziam três; uma atrás de duas eram mais três; uma no meio de duas, mais três.
— Nove! — exclamei, triunfante.
Ele começou a rir e sacudiu a cabeça, dizendo que n eram apenas três, pois formiga só anda em fila, uma atrás da outra.
Então perguntei a ele o que é que cai em pé e corre deitado.
— Cobra? — ele arriscou, enrugando a testa, intrigado.
Foi a minha vez de achar graça:
— Que cobra que nada! É a chuva e comecei a rir também.
— Você sabe o que é que caindo no chão não quebra e caindo n’água quebra?
— Sei: papel.
Gostei daquele homem: ele sabia uma porçâo de coisas que eu também sabia. Ficamos conversando um tempão, sentados na beira da da caixa de areia, como dois amigos, embora ele fosse cinqüenta anos mais velho do que eu, segundo me disse. Não parecia. Eu também lhe contei uma porção de coisas. Falei na minha galinha Fernanda, nos milagres que um dia andei fazendo, e de como aprendi a voar como os pássaros, e a minha aventura de escoteiro perdido na selva, as espionagens e investigações da sociedade secreta Olho de Gato, o sósia que retirei do espelho, o Birica, valentâo da minha escola, o dia em que me sagrei campe de futebol, o meu primeiro amor, o capitão Patifaria, a passarinhada que Mariana e eu soltamos. Pena que minha amiga não estivesse por ali, para que ele a conhecesse. Levei-o a ver o Godofredo em seu poleiro:
— Fernando — berrou o papagaio, imitando mamãe: — Vem pra dentro, menino! Olha o sereno!
Hindemburgo apareceu correndo, a agitar o rabo. Para surpresa minha, nem o homem ficou com medo do cachorro nem este o estranhou; parecia feliz, até lambeu-lhe a mão. Depois mostrei-lhe o Pastoff no fundo do quintal, mas o coelho não queria saber de nós, ocupado em roer uma folha de couve.
O homem disse que tinha de ir embora — antes queria me ensinar uma coisa muito importante:
— Você quer conhecer o segredo de ser um menino feliz para o resto da sua vida?
— Quero — respondi.
O segredo se resumia em três palavras, que ele pronunciou com intensidade, mãos nos meus ombros e olhos nos meus olhos:
— Pense nos outros.
Na hora achei esse segredo meio sem graça. Só bem mais tarde vim a entender o conselho que tantas vezes na vida deixei de cumprir. Mas que sempre deu certo quando me lembrei de segui fazendo-me feliz corno um menino.
O homem se curvou para me beijar na testa, se despedindo:
— Quem é você? — perguntei ainda.
Ele se limitou a sorrir, depois disse adeus com um aceno e foi-se embora para sempre.
Fernando Sabino, O menino no espelho, 59.ª edição, Rio de Janeiro, Record, 2001, pp. 13-18.
Capítulo II,
parte a seguir ao texto no manual

BEM, aí é que estava o problema, tantas foram as idéias que me vieram ao mesmo tempo. Uma, por exemplo, que foi sempre um grande sonho meu: ficar invisível. Mas, pensando bem, para que eu queria ficar invisível? Que vantagem havia no fato de não ser visto pelos outros? A única que me ocorreu foi a de entrar no cinema sem pagar. Mas corria o risco de alguém se sentar em cima de mim, pensando que a poltrona estivesse vazia.
Em todo caso, fui ao espelho e falei para a minha imagem:
— Fique invisível!
O susto da minha vida: na mesma hora vi a minha roupa vazia, flutuando no ar, os meus sapatos se mexendo sozinhos, as calças sem minhas pernas:dentro, as mangas da blusa sem braços, a gola sem pescoço e eu sem cabeça. Era mesmo para assustar qualquer um! Já ia tirar a roupa toda para que desaparecesse até a forma do meu corpo, mas achei mais prático fazer a roupa se tornar invisível também. Não seria nada engraçado se tivesse de voltar a ficar visível e aparecesse pelado na vista de todo mundo.
Senti uma grande aflição quando não vi mais nada diante do espelho. Tive que me apalpar para saber que ainda estava ali.
Saí do quarto e fui ver o que acontecia. Passei pela minha mãe na sala e ela olhou através de mim como se eu não existisse. Não resisti e chamei-a:
— Mamãe...
Ela olhou em direção ã minha voz:
— Fernando? Onde é que você está?
— Aqui... — e fui me colocar às suas costas.
Ela se voltou na cadeira:
— Aqui onde? Por que você está se escondendo?
Ao ouvir de novo minha voz, vinda agora de outra direção, ela se levantou, desnorteada, deu uma volta completa com o corpo, inspecionando a sala inteira. Depois se curvou para olhar debaixo da mesa:
— Onde é que se meteu esse menino, minha Nossa Senhora.
Embarafustei-me rindo pelo corredor adentro, fui até a cozinha. Dei com a Alzira de costas para mim, diante do fogão. Fiquei rente dela, e comecei a destampar as panelas, para ver o que tinha dentro.
Nem cheguei a ver: ela soltou um berro e pulou para trás, ao dar com as tampas se erguendo no ar. Então peguei numa panela pelo cabo e a levei até a mesinha ao lado da pia. Ela acompanhou com olhos arregalados a panela no ar, botou a boca no mundo:
— Te esconjuro! Virgem Santíssima, tem dó de mim! Essa casa tá mal-assombrada!
E disparou em direção à porta dos fundos, levando um trambolhão ao esbarrar de cheio em mim:
— Ui, que é isso? Ai, meu santo, tem demônio aqui pra todo lado!
Num segundo ela despencava escada abaixo, indo se refugiar no seu quarto. Refeito do susto que levei eu próprio, quando ela quase me atirou ao chão, fui atrás. Por pouco não atropelo a Fernanda, que estava no meio do quintal, e não se afastou para me dar passagem. Pela janelinha do barracão vi a cozinheira ajoelhada no chão diante de um santinho pregado na parede, fazendo o nome-do-padre, um atrás do outro.
Antes de reaparecer, resolvi ainda passar um susto no Godofredo. Cheguei bem pertinho do poleiro e o papagaio ficou com aquele olhar parado assuntando o ar, como se tivesse ouvido algum barulhinho. Quando ia cutucá-lo com o dedo, para derrubá-lo do poleiro, o miserável virou rápido a cabeça e me deu uma bicada na mao. Quem se assustou fui eu:
— Desgraçado, você me paga por essa papagaiada.
Chegou a sair sangue. Como é que ele teria me visto?
Só quando voltei ao meu quarto, antes de me tornar visível, é que reparei que o dedo ficou sujo de fuligem quando mexi nas panetas.
PENSEI em experimentar outros milagres: ler o pensamento das pessoas, adivinhar o futuro, voltar ao passado, enxergar através das paredes, diminuir ou aumentar de tamanho como Alice no País das Maravilhas, ouvir de longe o que os outros falavam, ver à distância como um binóculo, enxergar micróbios como num microscópio, ter a força do Super-Homem, e outras coisas fantásticas que sempre senti vontade de fazer. Mas tudo isso agora me parecia bobagem. Que adiantava saber o que os outros pensavam, ou estavam fazendo atrás das paredes, ou falando longe de mim?
Mas da idéia do Super-Homem passei a outra. esta sim, absolutamente sensacional: eu queria conhecer ao vivo um dos meus heróis, Tarzã em pessoa!
— Quero conhecer Tarzã.
No mesmo instante ouvi lá fora o famoso grito do Filho das Selvas, tão meu conhecido e impossível de ser imitado:
— Oôôôiôiiiôiôôôu!
Era o mesmo grito com que ele chamava Tantor, o elefante, nos momentos de perigo. Ouvi uns guinchos e dei com a Chita a meu lado, puxando-me o braço. A macaca me levou até o quintal e lá estava Tarzã, enorme, colossal, à minha espera. Abaixando-se, mandou que eu subisse ás suas costas. Num salto se dependurou num galho da mangueira, dali para outro galho mais alto, outro ainda, e lá fomos nós, Tarzã já se balançando num cipó comigo às costas, lançando-se no ar, entre as folhas verdes e os galhos das árvores de uma imensa floresta. Para onde estaria me levando? Eu abria bem os olhos, para não perder nada daquele passeio pela selva, nas costas de Tarzã. Aquilo era mais assustador que a montanha-russa, eu morria de medo de cair e me esborrachar lá embaixo. Mal conseguia me segurar nos ombros largos e suados do Homem-Macaco.
E o pior é que ele começou a sentir cócegas. À medida que minhas mãos iam escorregando em suas costas ele se sacudia todo, rindo cada vez mais. Eu é que não achava graça nenhuma, quase me despencando daquela altura. Já havia imaginado Tarzã nas situações mais fantásticas, mas nunca rindo às gargalhadas.
Antes que caísse ali de cima, mandei que ele se transformasse num pára-quedas. E vim descendo de mansinho, como se tivesse saltado de um avião, até cair no quintal da minha casa.
Estava decepcionado com Tarzã: só não mandei que fosse para o diabo porque me lembrei do guarda naquele filme. Mas eu era mais poderoso, eis tudo. Era capaz de fazer mais prodígios do que ele, até do que Mandrake.
Seria mesmo?
Resolvi convocar o famoso mágico. Ele logo me apareceu com a sua capa preta e cartolinha na cabeça. Tinha o ar cansado e sua casaca me pareceu meio velha e surrada, como a de um mágico de circo. Vinha seguido de Lotar, seu fiel ajudante. Preferi dispensar o negrão:
— Você não. Pode ir embora.
Lotar fez uma curvatura em despedida e se evaporou no ar. Então perguntei ao Mandrake:
— Quem é mais poderoso? Quem faz mágicas ou quem faz milagres?
— Quem faz milagres — respondeu ele modestamerite.
— Então sou mais poderoso que você.
— Não, porque o seu poder vai acabar, e o meu vai continuar eternamente.
— Como é que você sabe?
— Sei, porque o meu mundo é o das figurinhas, onde tudo dura para sempre, ao passo que, no seu, tudo começa e acaba.
Agarrei-me à sua mão, ansioso:
— Quando é que vai acabar o meu poder de fazer milagres?
— Quando você quiser.
— Nunca vou querer.
— É o que você pensa.
— Então faz uma mágica bem boa para mim.
Ele tirou a cartola, me olhou no fundo dos olhos, como se estivesse me hipnotizando, e falou:
— Meta a mão nesta cartola, que tem uma coisa para você.
Fiz como ele mandava e tirei da cartola um canivetinho vermelho. Tinha várias lâminas e até uma tesourinha, mas não passava de um canivete. Achei aquela mágica meio boba. Em todo caso, era um presente dele — embora eu, com o meu poder milagreiro, pudesse conseguir coisa mil vezes melhor.
Sem uma palavra, ele botou a cartola na ca beça, fez meia-volta e se afastou, saindo para a rua pelo portão da frente, como uma pessoa qualquer.
FIQUEI impressionado com o que o Mandrake me havia dito. A minha sensação era de que o poder de fazer milagres ia se acabar de urna hora para outra. Por via das dúvidas, resolvi empurrar a noite mais para diante e fazer ainda um grande milagre na quele dia.
Qual podia ser?
De súbito me ocorreu uma idéia, saltei de ategria:
— Eu quero visitar o Sítio do Pica-pau Amarelo!
No mesmo instante me vi andando por uma estradinha, passei por uma porteira, e lá estava a Narizinho Arrebitado sentada nos degraus da va randa do famoso sitio, tendo Emília a seu lado. Mandei que a tarde se prolongasse o tempo que eu quisesse e passei toda ela conversando com aquele pessoalzinho, um por um. O Visconde de Sabugosa me pareceu muito mais engraçado pessoalmente que nos livros. Veio me cumprimentar todo emproado, tirando a cartolinha num salamaleque:
— Bem-vindo a esta casa, Dom Fernando.
O Marquês de Rabicó me espiava de longe, meio encafifado com a minha aparição, mas acabou se chegando, a mexer no ar o seu rabinho de saca-rolha. Depois Dona Benta veio me oferecer umas mães-bentas e uma deliciosa xícara de chocolate. Tia Anastácia estava resmungando lá na coainha, até parecia a Alzira, só que era preta e gordona. Estava se queixando do Pedrinho, que certamente fizera mais uma de suas travessuras.
Quando me viu, Pedrinho me chamou de lado e perguntou se era verdade que eu sabia fazer milagres.
— Mais ou menos — respondi, encabulado. Eu queria que você fizesse um para mim — pediu ele: — É por causa da tia Anastácia. Ela não acredita que a terra é redonda e que os japoneses estão de cabeça para baixo, só não caem por causa da atração da Terra.
Com o ar superior de quem sabe as coisas, falei:
— É a lei da gravidade. É só acabar com ela, para ver o que acontece.
Não era propriamente uma ordem, nem mesmo um pedido de milagre, mas soou como se fosse. E de repente Pedrinho à minha frente, eu, Narizinho na varanda, a varanda, o sítio inteiro com a Emília, o Visconde, o Marquês, a Dona Benta, a tia Anastácia, as árvores, as casas, tudo saiu voando pelos ares como numa tremenda ventania. Me lembrei do filme sobre o homem que fazia milagres e, entre duas cambalhotas, mal tive tempo de fazer como ele, pedir depressa para acabar com aquilo, voltar ao que era antes dos milagres.
— Apague essa luz que eu quero dormir.
Era a voz do Toninho. Abri os olhos e vi que eu estava na cama, pronto para dormir. Olhei intensamente para a luz e mandei que ela se apagasse. Nada aconteceu. Então fui até lá e apertei o botão. Voltei para a cama e em pouco tempo estava dormindo.
Ao acordar, mal me lembrei dos milagres, se não de maneira confusa, como se tudo não tivesse passado de um sonho. Mas depois de vestir a roupa, ao meter a mão no bolso da calça, encontrei um objeto, retirei para ver: era um canivetinho vermelho.
Fernando Sabino, O menino no espelho, pp. 47-57.
Posted by Hello