Wednesday, September 09, 2009

10

Fernando Pessoa, Poemas de 1934
Alguns poemas de Fernando Pessoa, datados de 1934. São identificados pelo número que têm na edição INCM, de 2000; o que fica entre parênteses rectos é a cota do espólio de Pessoa na Biblioteca Nacional (Esp. E3).

2 [62-3r]

Aqui, que é o fundo
Do fim do mundo,
Livre do tudo
De ter que ser,
Poderei, mudo
De mim, esquecer.

Sob o ermo e quedo
Grande arvoredo,
Dormindo experto,
Verei passar,
De mim liberto,
Meu sonho no ar

Elle é diverso
Do ser disperso
Com que, distincto
De mim, sonhei.
Não penso; sinto.
Ignoro: sei.

3-1-1934



4 [62-4]

Quem me roubou meu sonho com dedadas? —
Aquelle onde, entre musica, se erguia,
A Princeza retida pelas fadas
Que é hoje a minha nostalgia...

Amor? Desejo? Confusão? Remedio?
Que extravagancias me vieram dar
A esta vida, louca de intermedio,
Que o sol quando ondear,
Deite poeira de ouro no meu tedio.

E os palhaços da ultima velada
Ao luar, no parque onde a Princeza errou,
Riem ainda a sua mascarada...
O ouro que deitei era nada...
Tudo foi noite e o sonho se apagou.

5-1-1934



5 [62-5r]

Fadas ou elfos ou o que quer que seja!,
Desde que a vida não se sinta,
E eu demoradamente veja
Só o que me minta...

Musica feita cousa! Gnomos, fadas...
Desde que o dia seja alheio
E eu viva as lendas illustradas
Do meu vago anseio...

Vida tornada musica! Do alto
Da varanda sobre sonhar
Ver pela alea, em sobresalto,
Os brinquedos passar.

5-1-1934



6 [62-6r]

A linha da casaria
Que está dada ao sol cadente,
Do obliquo sol pouco quente
Brilha illuminada e fria.

Assim o meu coração,
Que está dado ao desamparo
Do que na razão é raro,
E que é a pura razão,

Sente brilhar nelle brando
Um resquicio de saudade...
Quando tornarei, verdade
De quando eu era meu? Quando?

17-1-1934



7 [62-7r]

Não foi princeza quem o sonho trouxe.
Ninguem. Na sombra com que o parque orlava
A passagem quieta de quem fosse,
Nada, nada estava...

Nada, a não ser essa impressão furtiva,
Que não póde evitar um coração,
De haver qualquer presença viva e activa
Sem d'ella haver visão...

Nada, a não ser entre o que é buxo ou ramos
Qualquer impressão no que sentimos
Só porque alli anonymos estamos
E assim nos vimos.

18-1-1934



8 [62-7ar]

Teu nome ignoro. Teu perfil deslembro.
Tuas palavras esqueci.
Era manhã, nevoeiro, era Dezembro,
Quando te achei e te perdi.
Sonho ou relembro?

Não sei. Era manhã e o nevoeiro
Involvia o que havia e o que eu pensava,
Como um falso refugio derradeiro
Do que em parte nenhuma estava.
Sonho, prolixo e inteiro,

Mas se, nas teclas tua mão errar,
Assim, despida de ser tua, sei
Que talvez poderia achar
Entre o que não pude encontrar
Aquillo que não acharei.

18-1-1934



9 [33-18r]

Vae lá longe, na floresta
Um som de sons a passar,
Como de gnomos em festa
Que não consegue durar...

É um som vago e distincto.
Parece que entre o arvoredo
Quando seu rumor é extincto
Nasce outro som em segredo.

Illusão ou circunstancia?
Nada? Escuto attento, e o que ha
Nesse som é só distancia
Ou o que nunca haverá.

1-2-1934



10 [62-8]

Hoje que nada sou e nada quero,
Reliquia inutil de quem nunca fui,
Em que meu fim, sem resignar-me, spero
E nada sou do que foi eu em mim,
Aqui, onde este rio obscuro flue,
Quero, sentindo-o ir, ser eu enfim...

Desejo, sem esperança, ver correr
Estas inertes aguas fugidias,
Servo de nada ter e nada ser,
E sem esperança ver passar sem fórma
O curso esteril dos inuteis dias
Em que em mim minha vida se transforma.

Outrora havia outra esperança minha,
Outra era a vida que teria aqui,
Mas a quem coroaram por rainha
Cahiu, por falsa e vil a coroa infiel.
E assim a taça de ouro do que eu vi,
Quando a ergui á bocca, tinha fel.

1-2-1934



11 [62-9r]

Os dois do logar
Vieram brincando,
Cantando ou beijando,
Por mim a passar...

Rapazes da aldeia
Passaram aonde eu
Olhava só o céu
Com a lua cheia.

Vinham da taberna
Brincando, cantando,
No silencio brando
D'esta noite terna.

Eram dois ou um?
Como a sombra engana!
Mas que importa? Irmana.
Eu não sou nenhum.

1-2-1934



12 [62-10]

Eu vou dormir, vou dormir...
Dormem os astros tambem.
Eu vou dormir a sorrir
O sorriso que astros têm;

E entre mim e o firmamento
Haverá tal ligação
Que terei entendimento
Com esses ceus sem razão.

E eu, o proscripto do espaço
Casarei meu nada ser
Com esse abstracto regaço
Com que a mãe-noite é mulher.

E as falsas nupcias instaveis
Que resultarão do abysmo
Dar-me-hão estes planos habeis
Com que tenho mysticismo.

Mas que digo? Que conheço?
Vou dormir, vou socegar,
E a sombra do que me esqueço
É um rastro vago no ar.

4-2-1934



13 [62-11r]

Porque choras de que existe
A terra e o que a terra tem?
Tudo nosso — mal ou bem —
É ficticio e só persiste
Porque a alma aqui é ninguem.

Não chores! Tudo é o nada
Onde os astros rasgos são.
Tudo é lei e confusão.
Toma este mundo por strada
E vae como os santos vão.

Levantado de onde lavra
O inferno, em que somos réus
Sob o silencio dos céus,
Encontrarás a Palavra,
O Nome interno de Deus.

E, além da dupla unidade
Do que em dois sexos mixtura
A ventura e a desventura,
O sonho e a realidade,
Serás quem já não procura;

Porque, limpo de universo,
Em Christo nosso Senhor,
Por sua verdade e amor,
Reunirás o disperso
E a Cruz abrirá em Flor.

6-2-1934



15 [62-13r]

Tudo me cansa. Nada me consola.
O que fiz fil-o em vão.
Tu, tocando arranjos de viola
Dás-me uma outra emoção .

Não me viste, mas vieste. Isso me basta.
Toca sem dor nem fim.
E a tua musica, vazia, contrasta
Com o pleno de mim.

Quanto levantes baixa-me, mas antes
Quero eu teu soluçar
Que a vida toda com os seus cambiantes
De dormir sem sonhar.

22-2-1934



18 [62-14r]

Eu, que vendi a alma a meio diabo
E a quem, no Carnaval do sem-remedio,
A Sorte poz, furtivamente, o rabo
Multicolor e molle do meu tedio —

Eu, que não sou ninguem de tanto ser,
E a cuja face a duvida arrojou
Farinha, a fé que tive que perder,
Agua, o desgosto de ficar quem sou —

Eu, assim mesmo, ainda sei mudança,
E, lançado no abysmo de aqui estar,
Lembro os meus amplos tempos de creança
E de como era rapida a esperança...
Deixem-me ouvir o coração parar!...

16-3-1934



20 [62-16r]

Regularmente
Marca o relogio
Seu tempo taque,
Indifferente.

Não stá parado
Falla em tic-taque
Tam regulár que é
Como parado.

Nada na vida,
Nada esperando,
Tic-taque eterno...
Olvida! Olvida!

16-3-1934



21 [62-17r]

Sinto um prenuncio de morte
Dentro de meu coração.
Virá quando a der a Sorte
Quando vier, virá em vão.

Porque a morte é sombra e nada,
É só a vida vulgar
Que de um logar é tirada
E posta em outro logar.

Ri, alma, do que acontece!
Nada existe, salvo seres.
A aranha da vida tece
Só teias de o não saberes.

16-3-1934



23 [62-18r]

Com que revolta me reconheço
Sempre esquecido do que eu amei!

O sol luz claro, o ceu azul
Dá-nos sentidos a lucidez
O vento é brando, neste amplo sul,
E os mortos morrem segunda vez.

[27-3-1934]



24 [62-18ar]

O som da chuva lá fóra, —
Pingos, vento, triste som, —
Junta qualquer coisa á hora
Que faz dormil-a ser bom.

Dá um sentimento vago
De que não ser é um bem,
Como se á margem de um lago
Nunca estivesse ninguem.

Um som de chuva na noite
Com tudo fechado e quedo.
Que o coração não se afoite
Porque existir é segredo.

Um som de chuva lá fóra
Sem que se veja chover...
Dormir... Nunca ter agora...
Noite sem dia... Esquecer...

27-3-1934



25 [62-18av]

O SILVA

Morreu o filho do barbeiro,
Uma creança de cinco anos.
Conheço o pae — ha um anno inteiro
Que me barbea e nos fallamos.

Quando m’o disse, o que em mim ha
De coração soffreu assombro
E eu abracei-o, incerto já,
E elle chorou sobre o meu hombro.

Nunca acho uma attitude plana
Na vida estupida e tranquilla;
Mas, meu Deus, sinto a dor humana!
Nunca me tires o sentil-a!

28-3-1934



26 [62-19r]

Durmo a vida. Que fazer
Ao que terei que perder?
Durmo-a, sonhando e acordando,
E nada crendo nem dando.

Mas entre o sonho e a vida
Qualquer coisa, que é escondida,
Sem se mostrar apparece
Ao que em mim a vê e a esquece.

E assim minha alma cansada
Guarda memoria de nada,
E espera confiadamente
Num passado que pressente.

Se depois disperto e lido
Com o mundo e o seu olvido,
Quero só 


28-3-1934



27 [62-20r]

O CHAGA

Foste sempre uma bodega —
Bebado, porco, ferida
Que nem a ser chaga chega...
Mas bodega é toda a vida.

Anda tudo sujo e grosso
Sob phrases simples ou raras,
E é chaga este corpo nosso
A que a saude põe saras.

Morreste? Que é isso? Nada!
Morrem as fés e os sois.
Que é a vida que nos é dada?
Taberna á beira da strada...
Quanta vez bebemos dois!

31-3-1934



28 [62-21r]

Scismo, remoto da calma
Em que de sentir-me vou,
Não sei quem é a minha alma
Nem ella sabe quem sou.

Entendel-o? Tardaria.
Explical-o? Não.

E neste mal entendido
Entre quem sou e o que é eu.
Vae, todo um outro sentido
Que está entre a terra e o céu.

No intervallo cresce o mundo
Com soes e estrellas sem fim.
Tem um sentido profundo.
Conheço-o. É fora de mim.

31-3-1934



29 [62-22r]

As fadas dansam no ermo
Sem ninguem as poder ver —
Nessa clareira sem termo
Que é cercada de esquecer...

Dansam num rhythmo diverso
Do que a vida faz e canta,
Que é um poema sem ter um verso
E sem se ouvir nos encanta.

Tal é a dansa que a aragem
Interrompe e nos vem dar.
É só ruido da folhagem?
O que fiz foi uma viagem
Ou só não querer sonhar?

31-3-1934



30 [62-23r]

Sim, por fim certa calma...
Certa sciencia antiga, sentida
Na substancia da vida,
De que não ha acabar da alma,
Qualquer que seja a estrada que é seguida...

Fiel visão?
Crença de muitos? Não,
Que o que sinto tem differença.
É uma vida, não uma crença...
Não é pelle: é o coração.

Sol que attingiste o Occidente,
Sei que outro te tornarei a ver —
Um outro e o meu no Oriente.
Tudo é illusão, mas nada mente,
O Nada que é tudo é o Ser.

31-3-1934



31 [62-24r]

Boiam farrapos de sombra
Em torno ao que não sei ser.
É todo um céu que se escombra
Sem me o deixar entrever.

O mysterio das alturas
Desfaz-se em rhythmos sem fórma
Nas desregradas negruras
Com que o ar se treva torna.

Mas em tudo isto, que faz
O universo um ser desfeito,
Guardei, como a minha paz,
A sprança, que a dor me traz,
Apertada contra o peito.

3-4-1934



32 [33-21r]

Verdadeiramente
Nada em mim sente.
Ha uma desolação
Em quanto eu sinto.
Se vivo, parece que minto.
Ao coração.

Outrora, outrora
Fui feliz, embora
Só hoje saiba que o fui.
E este que fui e sou,
Margens, tudo passou
Porque flue.

6-4-1934



33 [33-21v]

Vem uma voz pela bruma,
Vem pela bruma a fallar.
Não me diz cousa nenhuma
Sei ouvil-a sem escutar.

É a voz antiga e perdida
Que diz sempre ao coração
Que não é nada esta vida
Que todo exforço é em vão.

Naufraga em ser toda intuito.
Morre em passar todo passo.
O que queremos é muito,
O que obtemos só chega.

Chega e vê que ha somente
No caes aonde amarramos
A ausencia de toda a gente
E a chegada que lhes damos.

E assim, inuteis do acaso,
Senhores do nada ser,
Cantamos o nosso caso,
Poetas, ao entardecer.

6-4-1934



34 [33-22r]

O que é vida e o que é morte
Ninguem sabe ou saberá
Aqui onde a vida e a sorte
Movem as cousas que ha.

Mas, seja o que for o enigma
De haver qualquer cousa aqui,
Terá de mim sempre o stigma
Da sombra em que eu o vivi.

10-4-1934



35 [33-23r]

Sabes quem sou? Eu não sei —
Outrora, onde nada foi
Fui o vassalo e o rei.
É dupla a dôr que me doe.
Duas dores eu passei.

Fui tudo que pode haver.
Ninguem me quiz egualar;
E entre o pensar e o ser
Senti a vida passar
Como um rio sem correr.

12-4-1934



36 [33-24r]

Tenho escripto muitos versos,
Muitas cousas a rimar,
Dadas em rhythmos diversos
Ao mundo e ao seu olvidar.

Nada sou, no fim de tudo.
Quanto escrevi ou pensei
É como o fallar de um mudo —
"Amanhã eu to direi"

E isto só por gesto e esgar,
Feito de nadas e dedos
Como uma briza ao passar
Por onde havia arvoredos.

12-4-1934



37 [33-25r]

Renega, lapis partido,
Tudo quanto desejei.
E vem deslisar sem ruido
Para onde nunca irei.

Pagem mettido em farrapos
Da gloria que outros tiveram,
Poderei amar os trapos
Por ser tudo que me deram.

E, irei, principe mendigo,
Colher, com a boa gente,
Entre o ondular do trigo
A papoila intelligente.

12-4-1934



38 [47-28r]

Accordo, chasco de quem me suppuz
E um vago frio do que fora magoa
Se as lagrimas não fossem mais do que agua
Tocada vagamente pela luz,
Entorpece um momento
Meu pensamento.

Mas volto a mim, e novamente dorme
O que em mim foi o rei de eu existir.
Que coisa enorme o mundo, que faz rir
Só porque deveras é uma coisa enorme.
Nada desentorpece
O que em mim esquece.

12-4-34



39 [33-26r]

Se eu me sentir somno
E quizer dormir,
Naquelle abandono
Que é o não sentir,

Quero que aconteça
Quando eu estiver
Pousando a cabeça
Não num chão qualquer,

Mas onde sob ramos
Uma arvore faz
A sombra em que achamos
A sombra da paz.

20-4-1934



41 [33-53r]

Na paz da noite, cheia de tanto durar,
Dos livros que li
Que eu li a sonhar, a sentir, a mal meditar,
Nem vendo que os vi,

Ergo a cabeça subitamente estonteada
Do lido e do vão
De ler e vejo que ha paz na noite acabada —
Não no meu coração.

Creança, era outro... Naquelle em que me tornei,
Cresci e esqueci.
Tenho de meu agora um silencio, uma lei.
Ganhei ou perdi?

[1934]



42 [33-54r]

Onde, em jardins exhaustos
Nada já tenha fim,
Forma teus futeis faustos
De tedio e de setim.
Meus sonhos são exaustos,
Dorme commigo e em mim.

[1934]



43 [62-25r]

Toda belleza é um sonho, inda que exista.
Porque a belleza é sempre mais do que é.
Tua belleza vista
Não está de mim ao pé.

Dista de mim o que em ti vejo, mora
Onde sonho. Se existes, não o sei
Senão porque é agora
Aquillo que sonhei.

A belleza é uma musica que, ouvida,
Em sonhos, para a vida transbordou.
Mas não é bem a vida:
É a vida que sonhou.

22-4-1934



44 [62-26r]

Tudo que sou não é mais do que abysmo
Em que uma vaga luz
Com que sei que sou eu e incerto scismo
Obscura me conduz,

Um intervallo entre não-ser e ser
Feito de eu ter logar,
Como o pó, que se vê o vento erguer,
Vive de elle o mostrar.

22-4-1934



45 [62-27r]

Tudo se vae ajustando
Ao fim que terá que ser.
Sem acção, aguardo e espero.
Ferias: só o vento brando
Enche de nada o que quero,
Toca de bem o que vier.

Depois da curva da estrada,
Da jornada sem razão,
Terei o conhecimento
De quanto havia de nada
Em meu pleno pensamento
E minha inteira emoção.

E então, livre do Destino
Cujo poder entravou
O que fui sem que existisse,
Entoarei o meu hymno
Ao Deus que me deu que visse
Que não sou esse que sou.

22-4-1934



46 [33-27r]

Flue, indeciso na bruma,
Mais do que a bruma indeciso,
Um ser que é cousa nenhuma
E a quem nada é preciso —

Quer somente consistir
No nada que o cerca ao ser,
Um começo de existir
Que acaba antes de o ter.

É o sentido que existe
Na aragem que mal se sente
E cuja essencia consiste
Em passar incertamente.

26-4-1934



47 [62-28r]

Sangra-me o coração. Tudo que penso
A emoção m'o tomou. Soffro esta magua
Que é o mundo immoral, regrado e immenso,
No qual o bem é só como um incenso
Que cerca a vida, como a terra a agua.

Todos os dias, oiça ou veja, são
Miserias, males, injustiças — quanto
Póde affligir o esteril coração.
E todo anceio pelo bem é vão,
E a vontade tam vã como é o pranto.

Que Deus duplo nos poz na alma sensivel
Ao mesmo tempo os dons de conhecer
Que o mal é a vida, o natural possivel,
E de querer o bem, inutil nivel,
Que nunca assenta regular no ser?

Com que fria esquadria e vão compasso
Que invisivel Geometra regrou
As marés d'este mar de mau sargaço —
O mundo fluido, com seu tempo e spaço,
Que ninguem sabe como se creou?

Mas, seja como fôr, nesta descida
De Deus ao ser, o mal teve alma e azo;
E o Bem, justiça espiritual da vida,
É perdida palavra, substituida
Por bens obscuros, formulas do acaso.

Que plano extincto, antes de conseguido,
Ficou só mundo, norma e desmazelo?
Mundo imperfeito, porque foi erguido?
Como acabal-o, templo inconcluido,
Se nos falta o segredo com que erguel-o?

O mundo é Deus que é morto, e a alma aquelle
Que, esse Deus exhumado, reflectiu
A morte e a exhumação que houveram d'elle.
Mas stá perdido o sello com que selle
Seu pacto com o vivo que cahiu.

Porisso, em sombra e natural desgraça,
Tem que buscar aquillo que perdeu —
Não ella, mas a morte que a repassa,
E vem achar no Verbo a fé e a graça —
A nova vida do que já morreu.

Porque o Verbo é quem Deus era primeiro,
Antes que a morte, que o tornou o mundo,
Corrompesse de mal o mundo inteiro:
E assim no Verbo, que é o Deus terceiro,
A alma volve ao Bem que é o seu fundo.

26-4-1934



48 [62A-1r]

Vem brando o vento quieto
Do fundo da terra e sonho.
Ha um socego completo
No que vejo e que supponho.

Sem ser na brisa, que é nada,
Só na herva mais alta ha bem
Um movimento; e agrada
A maneira que elle tem.

E como se nesta calma
Surgisse um mover sómente
Para nelle sentir a alma
Como o socego se sente.

3-5-1934



49 [33-28r]

Nesta grande oscillação
Entre crer e mal descrer
Transtorna-se o coração
Cheio de nada saber;

E, alheado do que sabe
Por não saber o que é,
Só um intento lhe cabe,
Que é o conhecer a fé —

A fé, que os astros conhecem
Porque é a aranha que está
Na teia que todos tecem,
E é a vida que nelles ha.

5-5-1934



52 [62A-3r]

SUP. INC.

Nunca os vi nem lhes fallei
E elles me teem guiado
Segundo a fórma e a lei
Do que, inda que conhecido,
Tem que ficar ignorado.

Nunca li o livro occluso
Nem vi o tumulo aberto,
Mas, em meu claustro recluso,
Vendo o céu só pela luz,
Senti a verdade perto.

Não foi o Mestre incorrupto
Nem O que foi exhumado
Que me fez negar o fructo
Que guarda em seus quatro gomos
O segredo do peccado.

Mãos do meu Anjo da Guarda,
Que bem guiaes, como dois,
O meu ser que teme e tarda,
Postas firmes nos meus hombros
Sem que eu saiba de quem sois!

Vou pela noite infiel
Sentindo a aurora raiar
Por traz do alguem que me impelle;
Mas já adeante de mim
Vejo o dia a se espelhar.

9-5-1934



53 [62A-5r]

Tudo que sinto, tudo quanto penso,
Sem que eu o queira se me converteu
Numa vasta planicie, um vago extenso
Onde ha só nada sob o nullo céu.

Não existo senão para saber
Que não existo, e, como a recordar,
Vejo boiar a inercia do meu ser
No meu ser sem inercia, inutil mar.

Sargaço fluido de uma hora incerta,
Quem me dará que o tenha por visão?
Nada, nem o que tolda a descoberta
Com o saber que existe o coração.

9-5-1934



54 [118-33r]

Onda que, enrolada, tornas,
Pequena, ao mar que te trouxe,
E ao recuar te transtornas
Como se o mar nada fôsse,

Porque é que levas comtigo
Só a tua cessação,
E, ao voltar ao mar antigo,
Não levas meu coração?

Ha tanto tempo que o tenho
Que me pesa de o sentir.
Leva-o no som sem tamanho
Com que te oiço fugir!

9-5-1934



55 [118-35r]

Montes, e a paz que ha nelles, pois são longe...
Paisagens, isto é, ninguem...
Tenho a alma feita para ser de um monge
Mas não me sinto bem.

Se eu fosse outro, fora outro. Assim
Acceito o que me dão,
Como quem espreita para um jardim
Onde os outros estão.

Que outros? Não sei. Ha no socego incerto
Uma paz que não ha.
E eu fito sem o ler o livro aberto
Que nunca m'o dira.

9-5-1934



56 [118-36]

Neste mundo em que esquecemos
Somos sombras de quem somos
E os gestos reaes que temos
No outro em que almas vivemos
São aqui esgares de gnomos —

Tudo é nocturno e confuso
No que entre nós aqui ha:
Projecções, fumo diffuso
Do lume que brilha occluso
Ao olhar que a vida dá.

Mas um ou outro, um momento
Olhando bem, pode ver
Na sombra o seu movimento
Qual no outro mundo é o intento
Do gesto que o faz viver,

E então encontra o sentido
Do que aqui está a esgarar
E volve ao seu corpo ido,
Imaginado e entendido,
A intuição de um olhar.

Sombra do corpo saudosa,
Mentira que sente o laço
Que a liga á maravilhosa
Verdade que a lança, ansiosa,
No chão do tempo e do espaço.

9-5-1934



57 [118-37]

Foi um momento
O em que pousaste
Sobre o meu braço,
Num movimento
Mais de cansaço
Que pensamento,
A tua mão,
E a retiraste.
Senti ou não?

Não sei. Mas lembro
E sinto ainda
Qualquer memoria
Fixa e corporea
Onde pousaste
A mão que teve
Qualquer sentido
Incomprehendido,
Mas tam de leve...

Tudo isto é nada,
Mas numa estrada
Como é a vida
Ha muita coisa
Incomprehendida.

Sei eu se quando
A tua mão
Senti pousando
Sobre meu braço
E um pouco, um pouco,
No coração,
Não houve um rhytmo
Novo no espaço?

Como se tu
Sem o querer
Em mim tocasses
Para dizer
Qualquer mysterio
Subito e ethereo
Que nem soubesses
Que tinha ser.

Assim a brisa
Nos ramos diz
Sem o saber
Uma imprecisa
Coisa feliz.

9-5-1934



58 [118-38]

Cessa o teu canto!
Cessa, que emquanto
O ouvi, ouvia
Uma outra voz
Como que vindo
Nos intersticios
Do brando encanto
Com o que o teu canto
Vinha até nós!

Ouvi-te e ouvi-a
No mesmo tempo
E differentes
Juntas cantar.
E a melodia
Que não havia
Se agora a lembro
Faz-me chorar.

Foi tua voz
Incantamento
Que sem querer
Nesse momento
Vago acordou
Um ser qualquer
Alheio a nós
Que nos fallou?

Não sei. Não cantes!
Deixa-me ouvir
Qual o silencio
Que ha a seguir
A tu cantares.

Ah, nada, nada.
Só os pesares
De ter ouvido,
De ter querido
Ouvir além
Do que é o sentido
Que uma voz tem.

Que anjo, ao ergueres
A tua voz
Sem o saberes
Veio baixar
Sobre esta terra
Onde a alma erra
E com as asas
Soprou as brasas
De ignoto lar?

Não cantes mais!
Quero o silencio
Para dormir
Qualquer memoria
Da voz ouvida
Desentendida
Que foi perdida
Por eu a ouvir.

9-5-1934



59 [62A-6r]

Tenho a verdade na algibeira.
Nasci nu, mas, quando vesti
Adulto qualquer coisa inteira —
Um fato, um mytho, o que vivi —
Fiquei feito de outra maneira

Fiquei senhor do que não sou.
Fiquei meu fato.

18-5-1934



60 [62A-7 e 8r]

Voam gaivotas rente ao chão.
Dizem que é chuva a ir chegar.
Mas não, neste momento não:
São só gaivotas rente ao chão
Só a voar.

Assim tambem se ha alegria
Dizem que diz que a dor nos vem.
Talvez. Que importa? Se este dia
Tem aqui a sua alegria,
Que é que a dor tem?

Nada: só o rastro do futuro.
Quando vier, ficarei triste.
Por ora é o dia bom e puro.
Hoje o futuro não existe.
Ha um muro.

Gosa o que tens, ebrio de seres!
Deixa o futuro onde elle está.
Poemas, vinho, ideaes, mulheres —
Seja o que for, se é o que ha,
Ha para o teres.

Mais tarde... Mas mais tarde que é?
Hoje é só hoje. O resto é um brando
Resquicio de receio ou fé.
Sê rente á terra, mas voando,
Como a gaivota é.

Mais tarde... Mas mais tarde sê
O que o mais tarde te for dando.
Por ora aceita, ignora e crê.
Sê rente á terra, mas voando,
Como a gaivota é.

18-5-1934



61 [62A-9r]

No fim do mundo de tudo
Ha grandes montes que tem
Ainda aléns para além —
Um grande além mago e mudo.

São paisagens escondidas
Que são o que a alma quer.
Alli ser, alli viver
Vale por vidas e vidas.

Todos nós, que aqui cansamos
A alma com a negar,
Num momento de sonhar
Alli somos, alli estamos.

Mas, depois, volvidos onde
Ha só a vida que ha
Vemos que ante nós está
Só o que vela e que esconde.

Só dormindo os horizontes
Se alargam e ha a visão
Dos montes que ao fundo estão
E o sonho do além dos montes.

19-5-1934



62 [62A-10r]

Soa na noite um grito involuntario,
Assassinaram quem nunca existiu.

25-5-1934



63 [62A-10]

O a quem tudo é negado
Tem o mundo por fado,
O a quem ninguem ama
Tem a vida por chamma.
Esse a quem tudo falta,
Por baixo, a alma é alta.

São muitos os caminhos
E alheios os visinhos!
São largas as estradas
E as distancias erradas,
Mas sempre sobra á alma
A fé que a faça calma.

Assim, sem spada ou lança,
Vou, como uma criança
Pela estrada cantando
Porque vou confiando.
Vou sem medo e sem frio
Nem sei em que confio.

25-5-1934



64 [118-56r]

O céu, azul de luz quieta...
As ondas brandas a quebrar
Na praia lucida e completa -
Pontas de dedos a brincar...

No piano anonymo da praia
Tocam nenhuma melodia,
De cujo rhythmo por fim raia
Todo o sentido d'este dia.

Que bom se isto satisfizesse!
Que certo, se eu pudesse crer
Que esse mar e essas ondas e esse
Céu teem vida e teem ser.

29-5-1934



[62A-11r]

AUTO DO CIRCO

Era mouco, mouco, mouco.
Sabia sem entender
Muito pouco, pouco, pouco
Do pouco que ha que saber.

E por isso, isso, isso
Sabia tudo de cór,
Porque é nisso, nisso, nisso
Que está o saber sem dôr.

E assim indo, indo, indo,
Chegou a ministro em fim,
Porque é lindo, lindo, lindo
O ter um saber assim.

Pim!

2-6-1934



66 [62A-12r]

A lenda dourada e linda
Que me contaram outrora,
Em minha alma dorme ainda
Mas é outra lenda agora.

Antigamente fallava
De fadas, elfos e gnomos;
Hoje falla só da escrava
Indecisão que nós somos.

Mas elfos, gnomos e fadas,
Vistos certos, que mais são
Que as projecções enganadas
D’essa nossa indecisão?

Creamos o que não temos
Por nos doer não o ter,
E quasi tudo que vemos
É o que ansiamos por ver.

Depois, cansados d’aquella
Visão que viu só o nada,
Fechamos toda janella,
Ficamos na alma fechada.

Mas inda esses entes todos
Que outrora eram visão,
Bailam mesmos, e inda a rodos,
Mas dentro do coração.

9-6-1934



67 [62A-13r]

"Porque gastas tempo em sonhos?"
Em que melhor o gastar?
Sonhos, enfim, são risonhos,
E fazem nos não pensar.

O tempo que sonho passa
Pelo teor dos meus dias
Como o sol pela vidraça.
As sombras são sempre frias.

Junho de 1934



68 [62A-14r]

Aquelle constrangimento
Que vem de nos entendermos
Sòmente no pensamento,
Sem nada d’elle dizermos,

Liga-nos e nos separa,
Faz-nos atados se sós;
E nunca ha uma vida clara
Ou entendida entre nós.

Assim não nos entendemos
Porque havia que entender,
E esta vida perderemos,
Complexos de o mal saber.

11-6-1934



69 [62A-15r]

Esse momento
Do teu olhar
Trazia qualquer pensamento...
Fez-me scismar,
Desattento.

Outro e outra
Seria
Não esta neutra
Cousa vazia,
Mas a verdade.

Sim, mas ha sempre
No que se evita,
Inda que contra
Nossa vontade,
Uma exquisita
Serenidade.

11-6-1934



70 [62A-16r]

Só por ver passar um carro
Quando não reparo nelle
De mim mesmo me desgarro,
Com meu pensamento esbarro
E vejo que não sou elle.

Meus olhos fitam, reclusos,
A carroça que passou.
Tudo tem fins e tem usos.
E fecho à chave os abusos
A que não ver me obrigou.

11-6-1934



71 [118-39r]

Houve um rythmo no meu somno.
Quando acordei o perdi.
Porque sahi do abandono
De mim mesmo, em que vivi?

Não sei que era o que não era.
Sei que suave me embalou,
Como se o embalar quizera
Tornar-me outra vez quem sou.

Houve uma musica finda
Quando acordei de a sonhar.
Mas não morreu: dura ainda
No que me faz não pensar.

11-6-1934



72 [62A-17r]

Por traz da torre o luar
Faz a torre uma outra torre.
A voz alegre a cantar
É me triste, de a escutar,
Pois sei que quem canta morre.
Tenho pena de sentir
Porque sentir é pensar.

A torre é negra e esplendente.
A lua occulta por ella
E um halo de luz ausente.
Meu coração é dormente:
Scisma sentado à janella.
Tenho pena de pensar
Porque quem pensa não sente.

13-6-1934



73 [62A-18r]

Quem me amarrou a ser eu
Fez me uma grande partida.
Debaixo d’este amplo céu,
Não tenho vinda nem ida.
Sou apenas um ser meu.

Nem isso... Anda tudo à volta
A retirar-me de mim.
Parece uma féra à solta
Este mundo que anda assim
A servir-me de má escolta.

Quando encontrar a verdade
Hei de ver se hei de fugir,
Pelo menos em metade.
Depois ficarei a rir
Da minha tranquillidade.

16-6-1934



74 [62A-19]

Reli, como quem lê uma obra alheia,
O que escrevi nessa distancia minha
De jovem, a de que a alma ficou cheia
Porque foi o melhor que a alma tinha;

Reli, e desconheço que fui poeta
Nessa occasião em que esplendia absorto,
E o que sou hoje é uma nodoa preta
Sobre o chão limpo d’esse poeta morto.

Reli; nem saberei que é que fui
Quando fui o poeta que não sou...
Não sei que rio por minha alma flue;
Sei que trouxe minha alma e a levou.

23-6-1934



75 [62A-19r]

Ceu alto, que astros revelam
Entre as nuvens que não são
Mais que os nadas que o não velam,
Que sonhos minha alma estrella?
Que noite é o meu coração?

23-6-1934



76 [62A-19v]

Tambor da banda que não ha
Toca sempre, toca já,
Toca duro, toca louco,
Toca achando sempre pouco

O que tocas — tão, tão, tão,
Toca, que tocar é vão!

Toca até partir quem és
E que ao tom que em ti houver
Dançam outros — é sua vez! —
Toca, que é o teu dever!

Toca! Tão, tão, tão, tão,
Toca, que és meu coração!

[23-6-1934]



77 [62A-19av]

Pobre de tudo, excepto de o saber,
Volvo atraz para ler
Aquelle anuncio à porta da morada
Do regedor do Nada
Onde se diz que alguem perdeu na rua
Uma alma que era sua,
E quem a achasse que a trouxesse alli
Onde o anuncio vi.
Encontrei-a, escondi-a, não a dei
Por achada ante a lei.
Mas soffro a dor de não poder saber
D’ella o que hei de fazer,
Que ter uma alma a mais faz pena e dó;
São dois a um estar só.

[23-6-1934]



78 [62A-19ar]

Entre nuvens casuaes
Brilham astros ao acaso,
Nos desniveis deseguaes
De não haver nada mais
Que nuvens num lento atrazo.

Não ha vento que se sinta
Mas as lentas nuvens vão
Pela noite, na indistincta
Passagem que vaga pinta
Sombras brancas no ceu vão.

Não ha vento... Não ha nada...
Mas passam as nuvens e ha
Em minha alma fruste e errada
Qualquer certeza enganada,
Qualquer dor que lá não está.

É talvez uma tristeza
Que como as nuvens existe
Só porque passam e nem lesa
A alma, nem tem belleza,
Nem é mais do que ser triste.

[23-6-1934]



79 [62A-20r]

Parte-te contra a parede,
Coração que ninguem quer!
Alma com fome e com sede
Só do que não pode haver
O que te ha de succeder?

Cahe no lixo e fica lá,
Anceio que és somente
De ir buscar o que não ha
Onde os não has não são gente!
Quebra-te, coisa que sente!

23-6-1934



80 [62A-20r]

Durmo só por cansaço,
Não por um somno meu,
E ha um vago, abstracto, laço,
Fora de tempo e espaço
Com que alguem me prendeu...

Pareço estar suspenso
Num abysmo de mim —
E acho tudo o que penso
Feito de um corpo denso
A cousa alguma affim.

23-6-1934



81 [62A-20ar]

Um sorriso de criança,
Um ar brando entre arvoredo...
E ha uma subita mudança
No que em mim tem mal e medo...

Tenho todas as doenças...
Tenho vomitos de tudo...
Não tenho força nem crenças:
Meu pensamento está mudo...

Sim, mas o bébé sorriu
E a briza correu tam bem
Que nada d’isso existiu
E a vida é o que a vida tem.

23-6-1934



82 [62A-20ar]

É somno? É sonho? É vêr?
Não sei, nem sei saber...
Ha um sol negro no fundo
Do que me sinto ser
E em torno gira o mundo.

23-6-1934



83 [62A-21r]

O cão que veio do abysmo
Roeu-me os ossos da alma,
E erguendo a perna — o que eu scismo —
Mijou no meu mysticismo
Que me dava a minha calma.

O cão veio de onde dorme
Aquelle anseio que tenho
Por qualquer coisa de enorme
Que indistinctamente forme
A forma de quanto extranho.

E depois de isso completo
O cão que veio do abysmo
Que estava inteiro e repleto
Fez sobre tudo o dejecto
Que é hoje o meu mysticismo.

24-6-1934



84 [62A-22r]

Pouco me falta para ser quem sou.
Basta morrer. E vou
Para a morte a sorrir como quem vae
Para casa; e o attrahe

A idéa, sem saber se a casa é
Como era, mas tem fé.
Ha sempre qualquer coisa de materno
Naquelle mundo interno

Que é o lar original, o não ter já
Este caminho que ha,
Quando a vida, pos o leito antigo
Por detraz do postigo.

2-7-1934



85 [62A-23r]

Quando eu morrer e tu fores,
Ó prado, o que já não sei,
Haverá prados melhores
Para o melhor que eu serei.

E as flores que aqui são bellas
Nos campos que vejo aqui,
Com cores serão estrellas
Nos vastos campos de alli.

E talvez meu coração
Vendo essa outra natureza
Mais natural que a visão
Que aqui nos mentiu certeza,

Possa, como ave que pousa
Por fim num ramo, sentir
Como era nenhuma cousa
Esse vôo de existir.

1-7-1934



86 [33-29 e 30]

1
Sonho sem fim nem fundo.
Durmo, fruste e infecundo.
Deus dorme, e é isso o mundo.

Mas se eu dormir tambem
Um somno qual Deus tem
Talvez eu sonhe o Bem —

O Bem do Mal que existo.
Esse sonho, que avisto
Em mim, chamo-lhe o Christo.

2.
Não foi em cruz erguida
Num calvario da vida,
Mas numa Cruz vivida

Que foi crucificado
O que foi, em seu lado,
Por lança golpeado.

E d'esse coração
Agua e sangue virão,
Mas a Verdade não...

3.
Só quando já, descido
De a onde foi subido
Para ser escarnecido,

Seu corpo fôr baixar
Onde se ha de enterrar
O haverei de encontrar.

Agua o seu ser ausente,
Sangue o que ha de presente
Na ausencia, eternamente.

4.
Desde que o mundo foi
No mundo á alma doe
O que ao mundo destroe.

Desde que a vida dura
Tem a vida a amargura
De ser mortal e impura.

E assim na Cruz se poz
A vida, para que a sós
Seja o melhor de nós.

5.
O tumulo fechado
Aberto foi achado
E vazio encontrado.

Meu coração tambem
É o tumulo do Bem
Que a minha Alma não tem.

Mas há um anjo a me ver
E a meu lado a dizer
Que tudo é outro ser.

2-7-1934



87 [33-30v]

Eram vadios todos
Andavam na floresta
Sem motivo e sem modos
E a razão era esta —

Que andando iam cantando
O que não pude ser,
Nesse tom molle e brando
Como um anoitecer

Em que se canta quanto
Nada ha nem é e doe
Sentiam nisso o encanto
De tudo quanto foi.

[post 2-7-1934]



88 [62A-24r]

Já me não pesa tanto o vir da morte.
Sei já que é nada, que é ficção e sonho,
E que, na roda universal da Sorte,
Não sou aquillo que me aqui supponho.

Sei que ha mais mundos que este pouco mundo
Onde parece a nós haver morrer —
Dura terra e fragosa, que ha no fundo
Do oceano immenso de viver.

Sei que a morte, que é tudo, não é nada,
E que, de morte em morte, a alma que ha
Não cahe num poço: vae por uma estrada.
Em Sua hora, e a nossa, Deus dirá.

6-7-1934



89 [62A-25r]

Era um bebado sem fim...
Olhava claro p’ra mim
Com um olhar sem olhar
Que parecia chorar,
E erguia o copo a tremer
Á boca, num só beber...

Pobre diabo! Pois sim
Mas por me acontecer a mim
Beber que a elle, que a alçar
O copo, tremia no ar?
Bebado de nada ser
Tremo de não perceber.

7-7-1934



90 [33-31r]

Não digas nada! Que has me de dizer?
Que a vida é inutil, que o prazer é falso?
Dil-o de cada dia o cadafalso
Ao que alli cada dia vae morrer.
Mais valle não querer.

Sim, não querer, porque querer é uma ponte
Posta no horizonte de onde estamos,
E que nunca attingimos nem achamos,
Presas locaes da ida e do horizonte
Sem asas e sem ponte.

Não digas nada, que dizer é nada!
Que importa a vida, e o que se faz na vida?
É tudo uma ignorancia diluida.
Tudo é esperar á beira de uma estrada
A vinda sempre addiada.

Outros são os caminhos e as razões.
Outra a vontade que nos fará seus.
Outros os montes e os solemnes ceus.

8-7-1934



91 [62A-26r]

A casa foi deixada,
A quinta abandonada.
Cahiu em abandono
O pomar, como em somno.

Pelas ruas da quinta
A razão era extincta.
Pelas veredas da horta
A razão era morta.

Assim se consummou
O que não se acabou
E assim ha de ficar
O que houver por achar.

8-7-1934



92 [62A-27r]

No Becco do Falla-Só
Fallei com outra pessoa.
— Essa é boa!

É. Mas o outro era eu
Porque isto succedeu
No Becco do Falla-Só...

Mas então que ha que fazer
De essa falla sem falla,
De esse dizer sem dizer?

Nada; que a vida é uma mó
Que moe a falta de trigo
E que eu fallei só comigo
No Becco do Falla-Só.

9-7-1934



93 [62A-28r]

Becco do Falla-Só...
Quem teria trazido
Do fundo de riso ou dó
Este nome vivido?

Louco? Bebado? Poeta?
Fallava só consigo.
Nessa amplidão completa,
Sufficiente e secreta
Do que não tem amigo.

Becco do Falla-Só...
Qualquer alma é assim.
Que eu tenha de mim dó...
Ninguem o tem de mim.

9-7-1934



94 [62A-28ar]

Côr de rosa vago
Do poente,
Meu coração trago
Doente.

Doente de já não
Sentir bem
Qualquer sensação
Que tem.

Poente côr de rosa
Eu te fito
Como a qualquer cousa.
Dormito.

9-7-1934



95 [62A-28av]

Lagrimas que não chorei,
Pesaes-me no coração.
Não tenho de vós perdão.
Um dia vos chorarei
E serei feliz então —

Lagrimas que foram vindo,
Ás escondidas, de mim,
Lagrimas sem dor nem fim.
Eu vos chorarei sorrindo
Só por vos chorar assim.

Lagrimas de tudo quanto
Perdi ou não pude ter —
Ou sonhei sem esquecer —
Mal sois magua, mal sois pranto
Mas sois meu sonho e meu ser.

9-7-1934



96 [17A-20r]

Veio um corvo negro, negro,
Veio um corvo a negrejar,
A dizer-me que a alegria
Vive para além do mar.

Vive para além do mar
Onde ninguem pode ir ter.
Veio um corvo negro, negro,
Veio só p'ra m'o dizer.

Mas eu tinha um barco feito
Para fins que não sabia
E vou ir naquelle barco
Para onde ninguem iria

E para onde ninguem iria
E por guia eu hei de ter
Esse corvo negro, negro,
Sem que elle o queira ser.

Porque foi ele que disse
Que a alegria por achar
Vive longe, muito longe,
Do outro lado do mar.

11-7-1934



97 [62A-29r]

Ignoro e espero. Passa no arvoredo
Um vento que o faz mar.
Esse outro modo meu far-me-hia medo
Ao sentir sua presença.

Agora não. Dá-me um repouso á alma
Em que penso, a sorrir,
E quanto penso é uma lua calma
No ceu de eu o sentir.

Ignoro e espero, vagaroso e alheio.
E, ao som que me embalou,
Cada vez mais inteiramente creio
No que durmo mas sou.

11-7-1934



98 [33-32r]

Do fundo do fim do mundo
Vieram me preguntar
Qual era o anceio fundo
Que me fazia chorar.

E eu disse, "É esse que os poetas
Teem tentado dizer
Em obras sempre incompletas
Em que puzeram seu ser."

E assim com um gesto nobre
Respondi a quem não sei
Se me houve por rico ou pobre

14-7-1934



99 [33-33r e 33ar]

Tenho em mim como uma bruma
Que nada é nem contem
A saudade de coisa nenhuma,
O desejo de qualquer bem.

Sou involvido por ella
Como por um nevoeiro
E vejo luzir a ultima estrella
Por cima da ponta do meu cinzeiro.

Fumei a vida. Que incerto
Tudo quanto vi ou li!
E todo o mundo é um grande livro aberto
Que em ignorada lingua me sorri.

16-7-1934



100 [62A-30r]

Quando era jovem, quando tinha pena
Quem fazia chorar,
A vida, embora má, era serena
Porque era só sonhar.

Hoje que tenho pena, quando a tenho,
Só por comprehender,
A minha vida é como alguem extranho
Que me visita o ser.

Porque a pena, ou a magua, ou o cansaço
Que acaso surja em mim
É como alguem que pisa, com mau passo,
Canteiros de jardim.

16-7-1934



101 [62A-31r]

Dá só treze badaladas
O relogio que não ha.
Põe-n’o nas encruzilhadas
Onde relogio não está.
E alli as horas que dá
Teem treze badaladas.

É o enguiço e o defunto
Que vem da beira do rio
A fazer mal ao assumpto
Que era p’ra tratar a fio.
Ah, meu coração vazio
É que é o enguiço e o defunto.

16-7-1934



102 [62A-32r]

Quando deixei de dormir
Ainda havia sonhar
Como um resto do existir.
É como a onda do mar
Que recúa e deixa o rir.

Quando deixei de ter somno
Nem por isso dispertei.
Senti um grande abandono.
Um grande sonho entreguei
De que nunca fôra dono.

E fiquei boiando incerto
Entre quem era e quem sou,
De mim nem longe nem perto.
Disperto. Em que sonho estou?
Em que vida estou? Disperto.

16-7-1934



103 [62A-33r]

Se toda a gente trabalha,
Porque não trabalhas tu?
Porque a intelligencia ralha
Ha quem goste de andar nu.

E quando o meu pensamento
Se veste de ter vontade
E, roupa, lhe pesa o intento
De alguma velleidade —

O que quer é só despir-se
E de novo regressar
Àquillo que Deus lhe disse,
Põe-te nu a pensar!

16-7-34.



105 [62A-34]

Essas coisas que escrevi
Quando tinha só vinte annos,
Hoje, hoje, que as reli
Nellas, antigas, não vi
Nenhuns antigos enganos.

Meus enganos são de agora.
Quando jovem, via certo.
Hoje é que a minha alma ignora
Porque a emoção foi-se embora
E a intelligencia é deserto.

Quem me dera nessa edade
Em que a sciencia de dizer
Era uma suavidade,
E eu conheci a verdade
Por nada inda conhecer!

Hoje, que penso, e que sinto
Sómente porque pensei,
Vivo dentro de um recinto
Que me aperta como um cinto
Que demasiado apertei.

Então eu era quem era
Sem pensar nem em sentir.
Bom tempo, quem o tivera
Ainda que como hera
A matar-me de cinjir!

18-7-1934



107 [62A-35r]

Não sei se é triste
Se é de alegrar
Saber que existe
Sob o luar
Poder sonhar.

Sei só que a lua
Nada me traz
Mas a ansia sua
Na agua que jaz
Feliz me faz.

Paira um encanto -
Não sei de quê...
E do meu pranto
Que ninguem vê
Fica uma fé.

21-7-1934



108 [62A-36r]

Tu, de quem o Sol é sombra,
De quem cadaver o mundo,
Meus passos guia, a que ensombra
O sentir-te, ermo e profundo!

Presença anonyma e ausente
De quem a alma é o veu,
A meus passos de inconsciente
Dá o consciente que é teu!

Para que, passadas eras
De tempo ou alma ou razão,
Meus sonhos sejam espheras,
Meu pensamento visão.

22-7-1934



109 [62A-37r]

Quem sabe se o que pensamos
Não é só o que esquecemos.
Vamos, remando, sob ramos
Do rio, assentes nos remos;

E uma visão mais remota
Que as margens e o arvoredo
Torce sem querer a rota
Que se seguia em segredo.

Cada rio tem dois rios,
Por um iamos remando
Sem attenção nem desvios,
Contentes de ir avançando.

Mas quando, tristes e quedos,
Iamos remando a fio,
Sentimos que os arvoredos
Cobriam um outro rio.

26-7-1934



111 [33-36vr]

Teu perfil, teu olhar real ou feito,
Lembra-me aquella eterna occasião
Em que eu amei Semiramis, eleito
Daquella placida visão.

Amei-a, é claro, sem que o tempo e espaço
Tivessem nada com o meu amor.
Por isso guardo desse amor escasso
O meu amor maior.

Mas, ao olhar-te, lembro, e reverbera
Quem fui em quem eu sou.
Quando eu amei Semiramis, já era
Tarde no Fado, e o amor passou.

Quanta perdida voz cantou tam bem
Nos seculos perdidos que hoje são
Uma memoria ireal do coração!
Quanta voz viva, hoje de ninguem!

27-7-1934



112 [62A-38r]

Qual é aquella canção
Que, em vontade do que sinto,
Procuro, e procuro em vão?
Sempre que a escrevo, me minto.

Era melhor não pensar,
Porque assim a cantaria:
Era uma canção a dar
A quem a procuraria.

Halito breve e desnudo
De uma intenção de dizer.
Fallado, calava tudo.
Dito, ficava a esquecer.

27-7-1934



113 [47-31r]

Horas, obrigações... Dêem-me a eira...
A tarde de verão com o sol fechado

[1934]



114 [33-37r]

A lampada nova
No fim de apagar
Volta a dar a prova
De estar a brilhar.

Assim a alma sua
Deveras disperta
Quando a noite é nua
E se acha deserta.

Vestigio que ergueu
Seu ser ao logar
De onde se perdeu...
Nasce devagar!

[3-8-1934]



115 [33-38r]

Vaga saüdade, tanto
Does como a outra que é
A saudade de quanto
Existiu aqui ao pé.

Tu, que és do que nunca houve,
Punges como o passado
A que existir não approuve.

3-8-1934



116 [33-38r]

Concluso a opalas e amethystas,
No fim do haver o fim de tudo,
Virei para o silencio as vistas
Com que me fiz o nome e o escudo.

Depois, ebrio da gloria finda,
Senhor do incognito logar,
No dia se sae a noite finda.
Achei a chave por encontrar.

E fructo do infiel disfarce
Onde o silencio se fechou,
Dei meu socego ao que me nasce
Do coração que se apagou...

[post 3-8-1934]



117 [17-5r]

Outr'ora, antes de tempo e espaço,
Não sei em que região que houve
Antes que o natural abraço
Do mundo ao nada a Deus aprouve,

Vivi entre astros e mysterios
A vida que me lembra agora
Quando me chegam sons aereos
Do que o silencio faz da hora.

E o que o hoje vivo, a pouca vida
Com que me nutro de esquecer,
Cessa como uma coisa ida
Numa victoria instituida
Entre os tambores de morrer.

4-8-1934



118 [17-5r e 5av]

Não: nada quero, nada vou querer.
Só o silencio, que me doe saber
Que nada sou nem quero, me vem dar
A sensação de nada desejar.

Bem sei: ha rosas em jardins de alguem;
No alto do céu a lua brilha bem;
O amor é jovem sempre, e o fado mudo.
Mas nada quero, pois negar é tudo.

Talvez que noutro clima do mysterio,
Sob outro signo de outro ser sidereo,
Se me abra a porta ou se me mostre a estrada...
Neste momento só não quero nada.

4-8-1934



119 [17-5v]

Sorrio porque sonho,
E o sorriso não é
Aquillo que supponho,
Pois nem sequer dei fé

Se sorri de accordar,
Se sorri de dormir
Se sorri de me achar
Assim mesmo a sorrir...

Qualquer coisa haveria
Em sonho ou realidade
Á qual eu sorriria
Só por não ser verdade.

4-8-1934



120 [17-5v]

Dá rosas, rosas, a quem sonha rosas!
Ou não dês nada, que sonhar é tudo.
As flores naturaes e preciosas
São as que eu sonho, transtornado e mudo.

Dá rosas, rosas, só em pensamento,
A quem não tem no mundo mais jardim
Que aquelle que ha entre o desejo e o intento
E onde haja as rosas que me dás a mim.

4-8-1934



121 [17-5ar]

No alto da torre está o relogio,
Mais alto ainda o sol está.
Hora a hora um diz meu necrologio
O outro não falla: brilha e ha.

Não sei quem mede o tempo aqui:
Se o que dá horas na alta torre
Se o que só allumia, e ri
De alguem poder suppor que morre.

4-8-1934



122 [17-5ar]

Meu coração, se alguem o quiz,
Não se lembra de que o queria...
Porisso sou só e feliz.
Pois minha vida é fria.

Mas tenho aonde me aquecer.
Ha uma chamma involuntaria
No fundo ignoto do meu ser.
Que importa a vida, alheia e varia?

4-8-1934



123 [62A-39r]

Ao som da musica adormeço
Sem dormir.
O que fui e o que sou esqueço
Por sorrir.

Ao que não ha e me é aragem
De som
E que do fundo da viagem
Do nada, é bom.

São uns ventos ao acaso.
Bem sei...
Mas são sonhos, e eu amo o atrazo
Do que sonhei.

4-8-1934



124 [62A-39r e 39ar]

No fim do fim de tudo,
Onde nada ha nem vive,
Um grande idolo mudo
Está hoje onde estive.

Vão crentes dar-lhe incenso.
Amam-o a elle só.
E o incenso é o que penso,
E o amor é quem eu sou.

Foi num templo esquecido
E num sacrario incerto
Longe de todo ruido
D’este mundo disperto.

4-8-1934



125 [62A-39ar]

Por mais que a penumbra seja
O sentido d’este mundo,
A sombra da arvore beija
Meu esquecimento profundo

Sob ella jazo, dormente,
Sonho não star a dormir...
E sigo, anonymo e crente
O que me sinto sentir...

Que vago sem pensar!
Que sensações sem querer!
E goso o nada do ar
Que nada me vem dizer.

4-8-1934



126 [33-39r]

Onde quer que o arado o seu traço consiga
E onde a fonte, correndo, com a sua agua siga
O caminho que, justo, as calhas lhe darão,
Ahi, porque ha a paz, está o meu coração.
Bem sei que o som do mar vem de além dos outeiros
E que do seu bom som os impetos primeiros
Toldam de ser diverso o natural da hora,
Quando o campo a não ouve e a solidão a ignora.
Mas qualquer cousa falsa e vera se insinua
Nas arvores que são vestigios sob a lua.

5-8-1934



127 [62A-40r]

Era agua corrente.
Não tinha sentido.
Ia lentamente
Com pouco ruido,

Salvo onde uma pedra
Fazia a agua dar
Um som bom que medra
Para se apagar...

Assim a emoção
Engana, a sentir,
Nosso coração —
Agua sempre a ir.

6-8-1934



128 [62A-40r]

O louco endoideu
Por ter tido juizo.
Correu, correu, correu
Até ao paraiso...

Que era só estar cansado
Porque quando se corre
O cansaço é-nos dado
Quando o correr-bem morre.

De ahi essa loucura
Do louco com juizo
Que viu a noite escura
E saltando por cima d’ella
Cahiu no paraiso.

6-8-1934



129 [62A-40r]

Tive quem me amasse,
Tive quem amei...
Hoje em minha face
De quem fui corei.

Tive essa vergonha
De ser hoje e aqui,
O que sempre sonha
E não sahe de si,

E de recordar
Que não posso haver
Mais que assim sonhar
O que pude ser.

6-8-1934



130 [62A-40r]

Nevoa... A manhã é nevoa e o dia é este...
Que quero eu d’elle ou elle quer de mim?
Quero que a minha angustia nada atteste
De si, nem de quem quere um fim...

Quero que a manhã seja como é,
Porque o seria sem o eu querer;
E que eu tenha esse resto vil da fé
Que é querer ainda viver.

6-8-1934



131 [62A-40v]

Quero, antes que me cesse o dia,
E o sol se apague em noite minha,
Ter ainda uma placida alegria,
Que em mim coroarei a rainha -

A de, a uma mesa de taberna,
Com os que foram camaradas
Da minha boa companhia externa,
Comer umas coisas assadas,

E, ao som interior do vinho,
Rir com elles, sem ter talento,
Ante a porta entreaberta, onde adivinho
O frio do ultimo vento.

6-8-1934



132 [62A-41r]

Musica, ao contrario de tudo...
Cá fóra a vida — noite e luar...
E eu, a ouvir e a sonhar,
O irmão ausente e mudo
De quanto amei e tive que deixar...

Sim, musica, o cruel avesso,
Suave, comtudo, de sentir
Que quanto mais eu quero ir
Para onde tudo vejo e esqueço,
Mais pesa em mim a ausencia de o fruir...

Musica, sim, musica, um lago
Em silencio sob o luar
E só o prazer de o olhar
Naquelle vestigio de affago
Que do sentir faz modo de pensar...

Musica, sempre musica: dá
Mais que sentir ao coração...
Não me deixes só a emoção...
Não ha, onde ha — nada ha...
Dá-me um aceno que seja só perdão...

Musica! E cessa porque tudo
Cessa... E ha só a noite e o luar...
E eu, dispertando de sonhar,
Jazo, contemplativo e mudo,
E nem do que sabia me sei lembrar.

6-8-1934



133 [62A-42r]

Soam doze horas. É o fim...
E é o principio de outro dia!...
Ó coração, aprende assim
Que a vida, que se sente em mim,
Quando acabar é que principia...

Não ha morte. E o som breve e lento
Do relogio a dar horas que ha
Tem só a corda, sem alento.
Não conta com o pensamento
Nem com as horas que haverá.

6-8-1934



134 [62A-42r]

A criança e o seu brinquedo
São, ao meu olhar de dó —
Um dó de saudade e medo —
Uma coisa só:

A dupla fragilidade
Da innocencia e do fingir
São uma e outra metade
Da vida a sorrir.

Deus te mate sem demora,
A morte te leve cedo
Antes que a vida ou a hora
Te quebre a alma que ignora
Ou o brinquedo!

6-8-1934



135 [62A-43r]

Ah, como eu quereria
Ser como aquelles em quem
A inspiração é já poesia
E a fórma toda a alma tem!...

Meu mestre Camillo Pessanha!
Como sentias? Por que modo
O que em ti é materia extranha
Era teu natural, teu todo?

Ninguem sabe. E teus versos são
Como o que passa no sonhar
E que é melhor que uma visão
Sem que haja de que dispertar.

7-8-1934



136 [62A-44r]

Bem sei... Um leve sorriso
Que, porque tardou,
Ficou mais impreciso
Do que ficou...

Um intervallo: sentir
E saber que se sente,
Fal-o a sorrir
Quem é intelligente.
Mas quem é só gente

Sente deveras magua
Por aquelle sorriso
Não ser senão como a agua,
O Impreciso...

7-8-1934



137 [62A-44r]

O pavão no parque morto
Sobrevive a quem viveu.
Abre a cauda, bruto e absorto,
Sob o silencio do ceu.

E a sua cauda espalhada
É o indicio resignado
De que a vida não é nada
Mas tem um leque mostrado.

7-8-1934



138 [62A-45r]

Como criança, ou como condemnado,
Livre de culpa ou cheio de peccado,
Dorme teu ser cansado.

Quem dorme, porque é nada e é ninguem,
E sua essencia de dormente tem
Direito a qualquer bem.

Ao menos á renuncia e ao perdão
Que, ambos, vestigios ignorados são
De uma maior visão.

Quem dorme é innocente e volta a ser
O que em criança foi sem perceber —
O que sonha sem ter...

Dorme. Inda que te odiasse, nesta hora
Nada em mim odiaria, que a pastora
As idas vezes chora...

Sim: ha um monte para além de aqui
Onde um rebanho passa, e alli, alli,
Esta vida sorri.

7-8-1934



139 [62A-46r]

Quem fez de mim aquillo que hoje sou?
Que força extranha, occulta dentro em mim,
No que nunca quiz ser meu ser fixou?
Fosse qual fosse, sou quem é assim.

Os vestigios do ultimo remorso
Ergueram asas de onde estou sonhando,
E o meu ser é como um bandido corso
Que a policia de França vae caçando.

7-8-1934



140 [62A-46r]

Que bebedeira! Mas no fundo
Ha quem eu sou...
Uma visão anonyma do mundo
Visto de onde estou.

Que bebedeira! Mas que bem que vejo
Todos perder
Aquelle antigo e natural ensejo
Que os faria viver...

Que bebedeira... Mas os outros são
Mais bebados do que eu...
Porque trazem nas mãos o coração
E perguntam se é seu...

7-8-1934



141 [62A-47r]

Annos e annos do que não foi eu
Vivi recluso no ser que era o meu.
Annos e annos de quem nunca fui
Vivi submisso do meu ser que flue.

Agora, que a viagem é regresso
Ao que deveras sou, deveras peço
Que eu tenha num momento da viagem
Remorsos de mim mesmo ou da paisagem.

Porque, por muito que se a alma tenha
Afastado do mar que as praias banha
Da sua solidão universal,
Volta, de noite, sem que o luar venha,
Alli, num passo antigo e natural.

8-8-1934



142 [62A-47r]

Como um grande rochedo debruçado
Sobre o mar,
Sobre meu ser anonymo e agitado
Stou a pensar...

Vejo a emoção que como uma onda deita
Orlas a rir
Numa minuscula mixtura feita
Para se ouvir...

Vejo a vontade, como um som de vento
Fazer erguer
A spuma inutil, a emoção,
Para se ver...

E sempre forte, sobranceiro e inutil
O rochedo á
Praia que vê dá a protecção futil
Do que só está.

8-8-1934



143 [62A-48r]

Estou cheio de tedio, de nada. Estendido na cama
Leio, com uma minuciosidade atomica,
Lentamente, com uma attenção sem chamma,
A Nova Encyclopedia Maçonica.

Penso no que fui (não me escapam as entrelinhas),
E o que a minha alma quiz e a minha vida fez
Cahe-me, como a uma senhora um carrinho de linhas,
No meio do Grau 32 do Rito Escocez.

O que quiz de grande qualquer brisa o esfolha,
O que pude de occulto teve a tempo medo;
E olho a sorrir o titulo ao alto da folha:
Sublime Principe do Rial Segredo...

8-8-1934



144 [62A-49r]

Passa um silencio sobre a herva alta.
Cessam seus topos de cabecear...
O vento esconde-se, e a sua falta
Dá uma tristeza ao ar.

Assim quando cessou o sentimento
Que faz mover os cimos do meu ser
Não se me melhorou o pensamento
E fiquei sem querer.

Vento que dormes, ergue-te e caminha!
Emoção tarda, sente-te e revive!
E a herva volta á commoção que tinha
E eu ao amor que tive...

8-8-1934



145 [62A-49r]

No silencio da noite te chorei...
Eu, que já te esquecera...
Inevitavel rei
De um povo feito de cera.

Sim, dono só de falsos
Entre os quaes, regio, ergui,
Prolixos cadafalsos
Para ninguem morrer alli.

E ahi fui eu buscar essa emoção
E alli a encontrei
Com que, sem coração,
No silencio da noite te chorei.

8-8-1934



146 [62A-49v]

Tragam-me tedio para divertir-me!
Tragam-me flores, para as recusar!
Quero de quanto quiz ou pude rir-me,
Do quanto amei fallar...

Fallar, dizendo o que se nunca diz,
O que a alma a si occulta e a outros nega.
Quero a mim mesmo parecer feliz
Como a creança que sem agua rega.

Tragam-me rosas, — rosas, sim, ou lirios —
Para que eu sinta em mim o Imperador,
Até que enfim os meus proprios delirios,
Suaves, se voltem contra o seu senhor.

8-8-1934



147 [62A-50r]

Tenho somno. Depois de não sentir
Em tam longos momentos de pensar,
Cansei-me de saber que era sonhar,
E só sonhar, o que era eu existir.

E, assim, recluso entre os errados muros
Das conclusões a que ninguem chegou,
Abdiquei minha sombra e o que sou
Em grandes, vagos, gestos só obscuros...

Puzeram os taipaes no que perdi.
Negaram a verdade ao que sonhei.
E então, então, me coroaram rei
E senti a coroa que não vi.

8-8-1934



148 [62A-50r]

As meninas que ha na feira
Nas barracas a espreitar
São, de uma outra maneira,
A minha alma a desejar.

Ellas vão, a reparar,
Sempre no rastro da esteira
Do povo, e se ha um tardar
Tomam logo a deanteira.

Vão ás barracas da feira
E riem por espreitar.
Ah, quebram-me a alma inteira
Porque a não posso pensar!

8-8-1934



149 [62A-51r]

Eram todos mascarados
Porque eram todos gente...
Iam mixtos, mixturados,
Iam mixturadamente...

E sem haver entender
Entre o que um ou outro era,
Ia tudo num viver
Como dentro de uma esphera...

Era um globo de ninguem
Toda aquella mascarada,
Como uma bola que tem
A superficie pintada,

E que rola monte abaixo
Só pelo declive que ha.
Se a procuro, não n'a acho,
Porque rolou para lá...

Para lá onde acabou
O monte que alli começa...
E em busca della me vou
Até que o buscar me esqueça.

9-8-1934



150 [62A-52r]

Quem me poz nodoas no vestido d'ella?
Quem me roubou o que não era meu?
Que nuvem veio interromper a estrella
Que me era todo o ceu?

Que insulto absurdo da maré da sorte
Me leva na ressaca o sonho e a gloria,
Que, porque os tive ao desprezar a morte,
Seriam minha historia?

Quem, depois, no silencio de eu pensal-o,
Tudo me restituiu, em maré cheia,
Como um rei que a um cego, se seu vassalo,
Restitua a candeia?

9-8-1934



151 [62A-52r]

Pouco, pouco, pouco...
Só sob o luar
Senti-me um pouco louco,
Um pouco por achar...

Havia um labyrintho
Para se descobrir.
Não sei se penso ou sinto,
Se devo ir ou não ir.

Havia um procurar...
Havia um grande enredo
De altos buxos ao luar
Em ruellas de medo.

Alli, depois de voltas
Que vinham para lados
(Que gargalhadas soltas
Dos outros enganados!)

Chegava-se ao seu centro
Depois de idas erradas
E falso ir para dentro.
No centro não ha nada.

9-8-1934



152 [62A-53r]

As fadas são pensamentos,
Mas pensamentos são gente...
No intersticcio dos momentos
Vivem a vida contente,

Com que, se nada sentimos
E nada sequer pensámos,
Nós as vimos, nós as vimos...
Depois dizemos que errámos.

De um lado, a rua é vazia
Do outro ha campo, agro e mixto.
Mas, enfim, não haveria
Qualquer coisa mais do que isto?

De onde vem esta saudade
Que não deixa o coração
E meu pensamento invade
Sem que lhe eu saiba a razão?

Foi só a rua deserta
Ou só o campo sem fim,
Que me deu a paz incerta
Que chora dentro de mim?

10-8-1934



153 [62A-54r]

De tanto me fingir quem sou deveras,
Já desconheço quem deveras sou.
Trago, talvez, desde longinquas eras,
Não quem eu sou, mas só para onde vou...

E assim, inevitavel e mesquinho,
Fiel a um rhythmo cuja lei ignoro,
De mim sei só qual é o meu caminho
E que na estrada, de cansado, chóro.

Pobre de tudo, salvo de ir seguindo,
Tenho comtudo uma esperança ainda:
É que Deus dê, a quem assim vae indo,
Uma estrada que nunca seja finda...

10-8-1934



154 [62A-54v]

Sorrindo, com as mãos ainda estando
Sobre o teclado do piano findo,
Olhas os que te ouviram, convidando
Cada um d'elles a sorrir, sorrindo...

Não queres que te digam que tocaste
Com arte, ou segurança, ou emoção.
Sorriste... E assim, sem o sentir, ficaste
Captiva de nenhuma sensação...

Quando a musica acaba, acaba o mundo,
E o que ha de tudo é nada valer nada...
E ninguem sente senão um profundo
Desejo de uma coisa já acabada...

Mas tu sorris... E todos dispertamos
E todos somos gratos e o dizemos...
Mas entre nós ha um rio, e escutamos...
O barco voga sem o som de remos.

10-8-1934



155 [62A-55r]

Já que por sonhos posso ser quem quero
E por vontade posso ser quem sou,
Solemne e alheio, minha vida espero,
E nem sonho, nem quero, nem me vou.

Firme em ser nada, placido de tudo,
Sem outro anseio que o de conseguir
Um solitario eremiterio mudo
Onde me morra o modo de sentir,

Serei rei proprio, governando nada,
Da mais alta janella do meu ser,
Fitando, em trajo ritual, a estrada
De onde ninguem virá para me ver.

10-8-1934



156 [62A-56r]

Um insecto feio
Cuja cor agrada
Paira sobre a agua
A não fazer nada...

Se não fosse feio
Nem tivesse côr
Era um outro insecto.
Assim é melhor.

Assim é que o vejo,
Assim é que é;
E assim é que ensino
O olhar a ter fé.

10-8-1934



157 [62A-56r]

Traze — não negues nem um só botão! —
As rosas todas do jardim desfeito!
Aperta-as todas contra o coração
Pois que as trazes oppressas sobre o peito!

Traze até onde o limiar aberto
Aguarda morto tua vida viva;
E, entrada, e o olhar do sonho teu disperto,
Depõe tudo no chão ante o conviva...

Braços abertos, avental descido,
E as rosas todas a juncar o chão,
Sem razão, sem conviva e sem sentido,
No silencio deserto do salão...

10-8-1934



158 [62A-57r]

Sem fim oscilla quanto é herva ou trigo
Ao vento vario, que se lembra e esquece.
No coração não sou commigo.
Minha alma entenebrece —

Não como a nuvem que viesse e desse
Ao campo a cor cinzenta de um castigo,
Mas como um vento vão que se esquecesse
Da sua oscillação da herva e do trigo,

E assim, prolixo de não ser, viesse
Por ausencia tornar-me seu amigo.
A aranha eterna sua teia tece


12-8-1934



159 [62A-58r]

Poema após poema, intimo, escrevia
Aquela grande obra do seu ser
Que nunca em tempo algum alguem leria
E que elle via o universo a ler

Era mais que poeta: era propheta,
E em seus versos errados e divinos
Carrilhonava o que nelle era poeta,
Mas numa torre que não tinha sinos.

Viveu assim, feliz do que escreveu.
Morreu, deixando a obra como sobra
Da alma que fora... Mas, meu Deus, e eu?
Eu que nem tenho a fé nem tenho a obra?

13-8-1934



160 [62A-59r]

Ninguem me disse quem eu era, e eu
A ninguem perguntei.
Vi-me vivendo sob um vasto céu
E senti uma lei.

A infame natureza, desdobrada
Em terra e rio e mar,
Deu-me um indicio, como que uma estrada
Para eu caminhar.

Mas o caminho era para quem sou,
E tinha por seu fim
O saber que o caminho por que vou
Sta só dentro de mim.

16-8-1934



161 [62A-60r]

Tenue, uma brisa ou não vem ou esquece.
Tudo parece
Mais leve e brando só de ella ser
Um parecer.

Tam vago é tudo que se a brisa vem
Não ha ninguem
Que a note, todos conversando, mas
Ha comtudo as

Palavras que ficaram por fallar
E que nesse ar
Que é brisa, ou quasi brisa, se quebrou
Contra o que não ficou.

16-8-1934



163 [62A-61r]

Quem foi que, em minha ausencia, regou flores
E me foi bom limpando a casa amiga?
Quem arrumou meus livros — os melhores
Postos no centro — em minha estante antiga?

Quem poz em seu logar essas cadeiras
Que desde muito o procuravam quedas,
E, com boas e anonymas maneiras,
Accomodou cortinas como sedas?

Foi qualquer fada, que me amasse outrora
Antes que o tempo e o espaço fossem Deus?
Não sei, mas tenho a minha casa agora
Limpa e fechada contra a terra e os ceus.

17-8-1934



164 [17-6v]

O louco olhou-me de frente.
Olhei o louco que olhava.
E eu, supposto intelligente,
Senti que já não pensava.

Que vulcão naquella calma
Com que me olhava a olhar
O outro lado da minha alma
Em que penso sem pensar...

Por seus olhos mudos fita
A meu coração postiço
Uma certeza infinita
Cheia de nada e de viço...

E eu, humilhado, conheço
No absurdo d'esse fitar
Que me olha o que sonho e esqueço
Transportado a esse olhar.

Sou eu que me fito e humilho.
Esse louco é a loucura
De que meu ser mudo é filho,
Surgida da sepultura.

18-8-1934



165 [62A-62r]

Colhe todas as rosas que encontrares!
Colhe até as que sonhas; com um laço
De herva comprida prende-as regulares,
E, assim em feixe, traze-as no regaço!

Vem até mim com essas rosas plenas
E eu saberei, entre ellas, distinguir
As que são reaes, porque são mais pequenas,
E, maiores, as fóra de existir.

Que é com realidade e illusão,
Como num feixe de flores vindo e dado,
Que conseguimos dar ao coração
O premio inutil que lhe nega o fado.

18-8-1934



166 [62A-62r]

A tua voz e o que ella diz,
Ao meu ouvido desattento
São duas coisas. Nada fiz
Neste momento

Senão sentir que o que dizias
E tua voz
Eram duas coisas vazias
Jazendo sós,
Como num caes mercadorias...

18-8-1934



167 [62A-63r]

Dorme, fluindo lentamente, a agua,
Comtudo dorme, fluida lentamente,
Como quem, porque vive, sente magua,
Mas, por cansado, sente que não sente.

As arvores e as hervas da ribeira
Vêem que corre a agua adormecida,
E ellas tambem, que um vento irreal peneira,
Dormem na paz anonyma e tremida.

E eu, que ambas coisas perto de longe ólho,
E nas mãos tenho as flôres que colhi,
Lentamente as não vejo e as desfolho,
E tudo passa e tremulo sorri.

É um dia succedente a outro dia,
É uma hora antes da hora que ha a seguir.
Que voluntariamente o esqueceria
Se tivesse vontade de o fingir!

Tenue torvelinhar da agua branda,
Vago murmurio quasi não ouvido
Das folhas tremulas, que Deusa anda
Tecendo em nós a iniciação do olvido?

18-8-1934



168 [62A-64r]

Ha um lago para barcos de crianças
No fim do meu sonhal-o?.
Quero cercal-o de ocios e esperanças
Para poder creal-o?.

Um lado como se o puzesse alli
Quem alli o não poz,
E onde um pequeno barco alacre vi
Puxado com retroz...

Depois, a esquadra que a ninguem faz mal...
(Vieram mais brincar)
Quem me dera na vida
Ter uma alma exactamente egual
A essa esquadra que, ao irem merendar,
Ficou, como eu, calma e esquecida...

18-8-1934



169 [62A-64r]

Nas voltas todas da dança
Fica uma volta por dar:
É a que faz a tardança
Entre sentir e pensar...

Essa dá-se só depois
De, acabando de, ao dançar,
Não saber se somos dois,
Sermos dois ao apartar.

Mas a dança continúa
No que sentimos de achar
Que a minha alma é só tua
E a tua é para me dar.

18-8-1934



170 [62A-65r]

Os ranchos das raparigas
Vão pela estrada a cantar.
Cantam cantigas antigas,
D'aquellas, que, de as lembrar,
Fazem a gente chorar.

Cantam porque outras cantaram...
Cantam por cantar sómente...
E o canto que recordaram,
Cantando-o constantemente,
É sempre velho e presente.

Ha qualquer cousa de eterno -
A alegria, a vida, ellas —
Que vem no tom alto e terno
Que faz chegar ás janellas
As que não cantam — aquellas

Que, na penumbra do amor,
Ou sperado ou promettido,
Sentem sua voz de dor
Vinda naquelle sentido
Que alli é gritado e rido.

Porque esse canto que passa,
Sem querer, vem figurar
A grande e humana desgraça
Que é amar ou não amar —
A mesma, sem acabar...

18-8-1934



171 [62A-66r]

Por tantos e tam asperos caminhos!
Por tanta infiel vereda,
Que para os pés tinha só pedras duras,
Pedras e espinhos,
Em vez de aquella areia, como seda,
Que os sonhos dão ás aventuras...

Por tantos e tam asperos caminhos
Cheguei aqui, inutil e perdido,
Sem razão de aqui estar ou por que ser...
Somos todos sòsinhos...
Mas no meu coração tenho o sentido
De aquillo, o outro, que quiz ter.

Por tantos e tam asperos caminhos!...
Morreram os principes de ballada,
Os bobos choram quedos...
Que foi da festa por de traz dos moinhos?
E a princeza encantada —
Porque é que a sua mão largou meus dedos?

18-8-1934



[62A-67r]

Como a noite chegasse e ninguem vinha,
Tranquei a porta contra todo o mundo;
E a minha casa placida e mesquinha
Ficou commigo num silencio fundo...

Ebrio de só, fallando a sós commigo,
Despreoccupadamente passeando,
Fui verdadeiramente aquelle amigo
Que em cada amigo já me vae faltando.

Mas bateram-me à porta de repente
E todo um poema se apagou num salto...
Era o visinho, que o almoço assente
Para amanhã me lembrou. Não, não falto.

E, de novo trancados porta e ser,
Tentei restituir ao coração
O passeio, o enthusiasmo e o desejo
Com que era ebrio do que as outros são.

Mas nada... Os moveis naturaes da casa,
As paredes certeiras a me olhar,
Como alguem que deixou de olhar a brasa
E não viu braza já ao ir olhar.

19-8-1834.



173 [62A-68r]

Releio, triste e com um tedio feio,
Meus versos feitos nestes quatro dias.
Quasi irritadamente leio...
Que coisas ocas, que coisas frias!

Com que febre contudo os escrevi
Com que immediata supposição
De que escrevia o que deveras vi
Nesse momento no meu coração...

Mas que cordeis desatados
Esses versos, os bocados
De pão de uma refeição
Em que não prestava o pão!...

E é com isto que sou poeta?
Será com estas linhas a rimar
Que serei amanhã artista e estheta?
Nunca serei senão a setta
Que os Deuses não souberam atirar...

20-8-1934



174 [62A-69r]

As coisas que errei na vida
São as que acharei na morte,
Porque a vida é dividida
Entre quem sou e a sorte.

As coisas que a Sorte deu
Levou-as ella comsigo,
Mas as coisas que sou eu
Guardei-as todas commigo.

E porisso os erros meus,
Sendo a má sorte que tive,
Terei que os buscar nos céus
Quando a morte tire os véus
Á inconsciencia em que estive.

21-8-1934



175 [62A-69r]

Cansaço... Sim, cansaço do que fui
E do universo inteiro; sim, cansaço,
Não um cansaço morto, pois que flue...
Não qualquer coisa que haja em tempo e em espaço...

Não: um cansaço intermino de tudo
Que, como um rio, vae por margens mudas
Num grande, antigo movimento mudo
Sob strellas silenciosas e agudas.

Um cansaço de quanto possa haver,
De quanto, até, eu possa desejar,
Lentamente indo, sem se ver correr,
Para a esperança de não haver mar.

21-8-1934



176 [33-40r]

O sol que doura as neves afastadas
No inutil cume de altos montes quedos
Faz no valle luzir rios e estradas
E torna as verdes arvores brinquedos...

Tudo é pequeno salvo o cume frio,
De onde quem pensa que de alli nos vê
Vê tudo minimo, num desvario
De quem da altura olhe quanto é.

22-8-1934



177 [33-40v]

Ah, quero as relvas e as crianças!
Quero o coreto com a banda!
Quero os brinquedos e as danças —
A corda com que a alma anda.

Quero ver todas brincar
Num jardim onde se passa
Para ver se posso achar
Onde está minha desgraça.

Ah, mas minha desgraça está
Em eu poder querer isto —
Poder desejar o que ha


[post 22-8-1934]



178 [33-40v]

Deixem-me o somno! Sei que é já manhã.
Mas se tam tarde o somno veio,
Quero, disperto, inda sentir a vã
Sensação do seu vago enleio.

Quero, disperto, não me recusar
A estar dormindo ainda,
E, entre a noção irreal de aqui estar,
Ver essa noção finda.

Quero que me não neguem quem não sou
Nem que, debruçado eu
Da varanda por sobre onde não estou,
Nem sequer veja o céu.

[post 22-8-1934]



179 [33-41r]

Deixei atraz os erros do que fui,
Deixei atraz os erros do que quiz
E que não pude haver porque a hora flue
E ninguem é exacto nem feliz.

Tudo isso como o lixo da viagem
Deixei nas circunstancias do caminho,
No episodio que foi cada paragem,
No desvio que foi cada visinho.

Deixei tudo isso, como quem se tapa
Por viajar com uma capa sua,
E a certa altura se desfaz da capa
E atira com a capa para a rua.

23-8-1934



180 [33-41r]

Não digas nada!
Não, nem a verdade!
Ha tanta suavidade
Em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ser...
Não digas nada!
Deixa esquecer.

Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda esta viagem
Até onde quiz
Ver quem me agrada...
Mas alli fui feliz...
Não digas nada.

23-8-1934



181 [62A-70r]

Os reis que fôra quando o sonho o tinha
Pesavam já em sua fronte baixa.
E a sensação de nunca haver rainha
Fechava-lhe a alma numa caixa.

Tivera, como todos quantos são,
Um reinado e um reino e um diadema,
Mas a verdade é um ovo que, no chão
Cahindo, espalha clara e gemma.

E assim o espio, no café do imbelle
Sorvendo absorto a chavena em que o mólho,
E não deixo de olhal-o, não vá elle
Olhar-me a mim como eu o olho...

24-8-1934



182 [62A-70r]

No poço que ha no fim do mundo
Vão as crianças procurar
Tirar d'esse poço sem fundo
A agua que se não pode achar.

E uma após outra o balde deita
Preso por uma corda fina
E nada sahe, e tudo espreita,
E a humanidade é pequenina.

No mundo que ha aqui na vida,
Do poço que ha onda ha haver,
Sahe agua, sem grande descida,
E todos podem agua ter.

Mas eu, que a vida sinto má,
Acho, em meu sentimento fundo,
Que mais vale a agua que não ha
No poço que ha no fim do mundo.

24-8-1934



183 [62A-70v]

Que torpor vela o olhar que quero ter?
É um somno que me obriga
A não saber quem sou ou sonho ser,
Ou qualquer vaga coisa antiga,

Que está pensando, ebria de memoria,
Numa vida que teve
Antes que a vida que ha tivesse historia
E que essa historia fosse breve?

Nada: um cansaço que me pesa sobre
Cada orbita que vê
Na involuntaria palpebra que a cobre
O calor cego de uma fé.

[24-8-1934]



184 [62A-71r]

Que é feito de Jules Laforgue
E de Gustave Kahn?
Quem se lembra do Jean Moréas?
Ah, quanta coisa vã

Foi vasta em minha juventude!
Senti-as e amei.
Hoje nem quero saber se as lembro.
Porquê não sei.

Tambem, se vamos a isso,
As princezas das balladas —
Que é feito d'ellas no silencio
De onde se foram as fadas?

E, no meio d'isto tudo,
Que é feito de mim,
Principalmente, principalmente,
Sem dó nem fim?...

24-8-1934



185 [62A-71v]

Tudo acabou: os campos e os pinhaes
Desde que enfim fechei janella e porta.
Agora não sou mais
Que quem não vê e a quem a vida é morta.

Mas que bom o socêgo de quem tem
A casa sua e a fecha contra o mundo!...
Estar só é um bem
Se de estar só ha um sentimento fundo.

Tirar da consciencia a natureza!
Fechar a alma contra o ceu e a terra!
Basta uma tabua dupla em gonzos presa
E pôr p'ra cima um fecho que se enterra...

Assim se apaga de quem vive a vida,
Assim o sonho tem o seu logar
Naquella estagnação indefinida
Que está em ficar só por só ficar...

Mas, ah, fechada a casa e eu sòsinho,
O que sou e o que fui, em furia nua,
Vem ter commigo, porque o seu caminho
Não ha porta fechada que o obstrua.

E eu, que que queria ser só, vejo dansando
Ante meus olhos de quem sou em mim
Um vil, irrepellivel bando
Que não tem meio mas tem fim.

Não ouso abrir de novo o que fechei.
Aqui, escravo dos sonhos que pedi,
Sou verdadeiramente rei,
Ah, mas sou rei de aquilo que perdi:

E oiço lá fóra o arvoredo e o vento
Fazer barulho, rir, só rir, de quem
Quiz contra elles fechar seu pensamento
Mas não o soube fechar bem.

Imagens destroçadas do passado,
Futuros frustes, ebrios de arremedo
Num rhythmo falso e desdobrado
Em amplas aleas de illusão e medo.

Porque fechei meu pobre ser commigo?
Porque vendi a natureza a quem
Não tem nem amor nem amigo?
Porque sem paz me tornei em ninguem?

[post 24-8-1934]



186 [17-8r]

Aquellas danças de roda
A que, menino, eu sorria,
Foram-se, e com ellas toda
A meninice que as via.

Ha coisas que somos nós.
Vão-se, e nós vamos com ellas.
Não são nós, mas somos sós
Se ellas já não são aquellas.

Eram outros a dançar
Os que não dançam agora.
Estes fazem-me chorar
Porque quem fui a os olhar,
Porque já não é, não o chora.

[25-8-1934]



187 [17-8v]

Estamos sempre na encruzilhada.
Cada dia é varios caminhos
Possiveis. Cada hora é mais que uma estrada.
Nós, os sosinhos
De nada,

Nem escolhemos, nem queremos:
Vamos...
E, seja a via pelo areal que vemos
Ou na floresta pela qual andamos,
Vamos para onde não sabemos,
Nunca sabemos onde estamos.

E a cada hora, a cada hora,
Ha que virar para a direita ou esquerda
Segundo uma lei que se ignora
Ou um impulso cujo instincto se não herda.

Sempre tantos caminhos!
E nós, sem tempo para os escolher,
Apressados, ignaros e sosinhos,
Seguimos o que tem que ser.

Se é bom, se é mau o por onde ir,
Ninguem o sabe ou saberá...
Tudo é não saber e seguir:
O resto Deus dará, ou não dará.

25-8-1934



188 [62A-72r]

A preguiça de pensar
É uma grande alegria,
Porque pensar é achar
Que a lareira já está fria.

Não quero pensar em nada.
Quero aquecer-me a sentir
Que na lareira apagada
Arde uma lenha de ouvir.

Que lareiras e alegrias
São coisas só de sonhar...
Aquecem por fantasias,
Mas, se pensar, são frias -
São frias por se pensar.

25-8-1934



189 [62A-72r]

Debaixo de onde altos ramos
Fazem grande o arvoredo
Solitariamente vamos
Num colloquio que calamos,
Cada um com seu segredo.

Fallam por nós, que, calados,
Seguimos mutuos e lentos,
Os altos ramos fallados
Por ventos desencontrados
Com os nossos pensamentos.

Vamos e achamos que é uma
A dupla emoção que temos.
Os ramos têm som de espuma.
O som tem ondas de bruma.
A emoção? Já a esquecemos...

25-8-1934



190 [62A-72v]

Qual foi a supposição
De anseio ou felicidade
Que veio ao meu coração
Trazer-me mais ansiedade?

Foi o suppor que, se eu fôra
Quem nunca poderei ser,
Seria mais calmo agora
O ser que me sinto ter?

Foi o pensar que talvez
Um futuro imaginado
Teria em si uma vez
Em que eu fosse bem fadado?

Seja o que fôr, qual foi ella -
Aquella supposição
Que me foi como uma estrela
Dentro do meu coração?

Talvez, afinal, não fosse
Mais que uma nuvem passar
Restituindo ao sol que a trouxe
A luz que elle sabe dar.

[post 25-8-1934]



191 [62A-73r]

O riso da tua bocca
É uma fita desatada
Cuja ponta solta toca
Na cara de a quem agrada.

É como um tirar de chaile
Quando se tira num geito
Em que uma alegria baile
Por o geito se ter feito...

É um riso que faz cantar
A vontade de sorrir
Que teu riso sabe dar
A quem, sob o rir do olhar,
Vê tua bocca a sorrir.

25-8-1934



192 [62A-74r]

Quero dormir. Não sei se quero a morte,
Nem sei o que ella é.
O que quero é não ser submisso à sorte,
Seja ella lei ou fé.

Quero poder nos campos prolongados
Meu ser abandonar
Aos seus verdes silencios afastados,
Que amo só de os olhar.

Quero poder imaginar a vida
Como ella nunca foi,
E assim vivel-a, vívida e perdida,
Num sonho que nem doe.

Quero poder mudar o universo
De um para outro lado,
Como quem junta o seu viver disperso
E o ata com o fado.

Quero, por fim, ser coroado rei
Do nada a que enfim vou.
Será minha coroa o que serei,
E o meu sceptro o que sou.

26-8-1934



193 [33-42]

Ah, verdadeiramente a deusa! —
A que ninguem viu sem amar
E que já o coração endeusa
Quando a só sabe adivinhar.

Por fim magnanima apparece
Naquella perfeição que é
Uma estatua que a vida aquece
E faz da mesma vida fé.

Ah, verdadeiramente aquella
Com que no tumulo do mundo
O morto sonha, como a estrella
Que ha de surgir no céu profundo.

3-9-1934



195 [62B-1r]

Cessa teu canto! Cessa o que elle traz
De outras memorias, de outros sentimentos!
O mal molle que elle me faz
Torna confusos os momentos
Que julguei que fossem de paz.

Cessa teu canto! Basta haver
O coração; basta sentir
Só por sentir ser existir.
Para que cantas sem saber
O mal que faz a quem te ouvir?

Não és tu, que não és ninguem.
Não é o canto, porque é nada.
É o mal que toda a alma tem:
Sente o desejo de encontrar o bem
E não sabe saber qual é a estrada.

5-9-1934



196 [62B-2]

Depois de não ter dormido,
Depois de já não ter somno,
Interminavel madrugada em que se pensa sempre sem se pensar,
Vi o dia vir
Como a peor das maldições —
A condemnação ao mesmo.

Comtudo, que riqueza do azul verde e amarello dourado de vermelho
No céu eternamente longinquo -
Nesse Oriente que estragaram
Dizendo que veem de lá as civilizações;
Nesse Oriente que nos roubaram
Com o Conto do Vigario dos mythos solares.
Maravilhoso oriente sem civilizações nem mythos,
Simplesmente ceu e luz,
Material sem materialidade...
Todo luz, mas assim
A sombra, que é a luz da noite dada ao dia,
Enche por vezes, immutavelmente natural,
O grande silencio do trigo sem vento,
O verdor esbatido dos campos afastados,
A vida e o sentimento da vida.
A manhã innunda toda a cidade.
Meus olhos pesados do somno que não tivestes,
Que manhã innundará o que está por traz de vós,
Que é vós,
Que sou eu?

5-9-1934



197 [62B-3r]

O mar, o mar, o mar...
O mar de sempre e agora
As ondas vêm quebrar
Num som só de chiar
Que parece que chora.

O mar... Vejo-o e medito
Mas essa meditação...
É o mar infinito?
Não sei. O mar que fito
São as ondas que são.

Vem uma, e outra, e tem
O mesmo quebrar quedo
Que chia e estruge bem.
E vão-se todas sem
Que eu saiba o seu segredo

5-9-1934



198 [62B-4r]

Se alguem bater um dia à tua porta,
Dizendo que é um emissario meu,
Não acredites, nem que seja eu;
Que o meu vaidoso orgulho não comporta
Bater sequer à porta irreal do céu.

Mas se, naturalmente, e sem ouvir
Alguem bater, fores a porta abrir
E encontrares alguem como que à espera
De ousar bater, medita um pouco. Esse era
Meu emissario, e eu, e o que comporta
O meu orgulho que já desespera.
Abre a quem não bater a tua porta!

5-9-1934



199 [62B-4r]

Sim, vem um canto na noite.
Não lhe conheço a intenção,
Não sei que palavras são.

É um canto desligado
De tudo que o canto tem.
É algum canto de alguem.

Vem na noite independente
De me dizer bem ou mal.
Vem absurdo e natural.

Já não me lembro que penso.
Oiço; é um canto a pairar
Como o vento sobre o mar.

Oiço, oiço; mas elle cessa...
Tinha que ser, porque foi.
Que mais que a alma me doe?

5-9-1934



200 [62B-5r]

Todas as coisas são
Uma coisa qualquer...
Redemoinho
Ou malmequer...

Futilidade enfim...
Ou nem isso até...
Nunca se chega ao fim
Sem ter fé...

O fim, claro, é nada,
Mas o lá chegar
Sempre é ter tido a estrada
Por onde andar.

5-9-1934



201 [62B-5r]

Falsas, amor, as coisas que dizias...
Mas quem diz que não fora realidade
O que inconscientemente me dirias
Se tivesses mentido com vontade?
Não pensavas nas vagas que trazias
Á superficie da vulgaridade.

Fallavas como quem a isso obriga
A condição de ter de responder,
Mas essa condição não é amiga
De se pensar antes de se dizer...
É falso quanto tua bocca diga,
Mas dize, dize, só para eu saber.

5-9-1934



202 [62B-6r]

Tudo que amei, se é que o amei, ignoro,
E é como a infancia de outro. Já não sei
Se o chóro, se supponho só que o chóro,
Se o chóro por suppor que o chorarei.

Das lagrimas sei eu... Essas são quentes
Nos olhos cheios de um olhar perdido...
Mas nisso tudo são me indifferentes
As causas vagas d'este mal sentido.

E chóro, chóro, na sinceridade
De quem chora sentindo-se chorar.
Mas se choro a mentir ou a verdade,
Continuarei, chorando, a ignorar.

5-9-1934



203 [903-32r]

VERDADE DE PROVAR

Às vezes depois do almoço
Medito nos jornaes.
Medito quanto posso,
E depois medito mais...

Ha tanta gente a pensar neste modo que ninguem se entende.
Nem dentro de si mesmo...
E quem diz jornaes diz livros, diz theoria
Diz philosophia e religião,
Diz tudo quanto se pensa.

Traga-me ainda mais vinho.
Não é por ter sêde; é por não ter nada.

5-9-1934



204 [62B-7r]

Oiço fallar onde na rua
Estão parados a fallar...
Fallem, fallem: a falla é sua!
Não sabem que a conversa é nua
Porque a estou a escutar...

Mas afinal não ouvi nada...
Era um conjuncto de mais que um
Fazendo a noite conversada...
Gostei de ouvir esse nenhum
Da conversa pegada...

Assim é tudo que ha na vida.
Julgamos, só por escutar,
Que ha qualquer coisa que é ouvida...
Mas a conversa é só sentida
Sem uma phrase a destacar.

6-9-1934



205 [62B-8r]

Tudo, menos o tedio, me faz tedio.
Quero, sem ter socego, socegar.
Tomar a vida todos os dias
Como um remedio,
D'esses remedios que ha para tomar.

Tanto aspirei, tanto sonhei, que tanto
De tantos tantos me fez nada em mim.
Minhas mãos ficaram frias
Só de aguardar o encanto
D'aquelle amor que as aquecesse enfim.

Frias, vazias,
Assim.

6-9-1934



206 [62B-9r]

Sim, tens razão...
Esqueci ha muito
Meu coração
E o meu intuito.

Ando perdido
Sem perceber
Se ha um sentido
Em comprehender.

Mas se um momento
O sol aquece,
Meu pensamento
Dorme e conhece.

7-9-1934



207 [62B-9r]

Foi hontem ou foi nunca ou foi ninguem
O que me aconteceu
Quando esperava a illusão ou o bem,
O mysterio ou o ceu...

Foi qualquer cousa que me esqueceu já
Por entre as nuvens do mysterio dado
Alguns lagos do não-dado ha
Que são cheias do Fado —

Do Fado, do Destino, do que é Tudo.
E, entre o menor mysterio de viver,
Opera, entre quem falla, o rito mudo
De nada se saber.

7-9-1934



208 [62B-10r]

A vida inutil que vivi e vivo
Levo-a nos braços como um peso morto,
Com um exforço desnatural e esquivo,
Como um navio que não quere um porto,

E como um fardo que não era meu
Deponho-me ao onde-calha do caminho
Fiel ao principio de que sou só eu
E de que o mais é só com o visinho.

Mas de entre os ramos do arvoredo nasce
Um canto de ave que me não conhece.
Oiço, sorrio, em mim meu ser renasce,
E ergo de novo o fardo, ainda que me empece.

9-9-1934



209 [62B-10r]

Sobe a grande escada
A que vae vestida
De ser adorada.

Seu cabello louro
É coisa vivida
Pela vida do ouro.

Seu passo a subir
É coisa sentida
Por poder sentir.

Sobe a escadaria
Como quem convida
A nascer o dia.

Não leva ninguem.
Ella é toda a vida
Como o mal e o bem.

9-9-1934



210 [17-11r]

Já decifrei a cifra sem sentido
E achei a conclusão que nada é.
Assim ganhei direito a ser ouvido
Pelos outros de pé.

Proclamarei a minha lei inutil
A essa assembleia de concordos mudos
Prolixa, natural, rigida e futil,
Farta de estudos

Que me ensinaram que são falsas todas
As leis e falsos todos os caminhos,
E que todas as coisas são só rodas
Ou só moinhos.

10-9-1934



211 [62B-11r]

A nuvem veio e o sol passou.
Foi vento ou occasião que a trouxe?
Não sei: a luz se me velou
Como se luz a sombra fosse.

Ás vezes, quando a vida passa
Por sobre a alma, que é ninguem,
A sensação torna-se baça
E pensar é não sentir bem.

Sim, é como isto: pelo ceu
Vae uma nuvem destroçada
Que é veu, mau veu, ou quasi veu,
E, como tudo, não é nada.

10-9-1934



212 [62B-12r]

Sonho. Como uma asa que tocasse
O onde estou, ou só o vento viesse
Porque essa asa, rapida, passasse,
O seu enleio assim se tece.

Sonho. Não sei quem sou, nem o que fui.
Assim se sonha. Durmo sem dormir;
E ha como um rio que indistincto flue
Entre eu pensar e eu sentir.

E nesse rio como algas mortas
Vae o que quiz fazer de quem eu sou...
Memorias, sonhos, sombras, como, ás portas,
Murcham as folhas entre o pó.

10-9-1934



213 [62B-12r]

Divido o que conheço.
De um lado é o que sou
Do outro quanto esqueço.
Por entre os dois eu vou.

Não sou nem quem me lembro
Nem sou quem ha em mim.
Se penso, me desmembro.
Se creio, não ha fim.

Que melhor que isto tudo
É ouvir, na ramagem
Aquelle ar certo e mudo
Que estremece a folhagem.

10-9-1934



214 [33-44r]

Começa, no ar da antemanhã
A haver o que vae ser o dia.
É uma sombra entre as sombras vã,
Mais tarde, quente, é a manhã.
Agora é nada, noite e fria.

É nada, mas é differente
Da sombra em quem a noite está;
E ha nella só a nostalgia
Não do passado, mas do dia
Que é afinal o que será.

12-9-1934



215 [17-14r]

A menina dorme.
Socega enfim.
A noite é enorme.
Não chega p'ra mim...

Quero inda mais grande
A noite que ha
Para que eu não ande
Onde nada está.

Que a menina quer
Dormir socegada...
Sonha — malmequer,
Muito, pouco, nada.

13-9-1934



216 [62B-13r]

Que dia este! Quantas coisas foram
Irregulares no acontecer!

[13-9-1934]



217 [62B-13r]

Deslembro incertamente. Meu passado
Não sei quem o viveu. Se eu mesmo fui,
Está confusamente deslembrado
E logo em mim inobservado flue.

Não sei quem fui nem sou. Ignoro tudo.
Só ha de meu o que me vê agora —
O Campo verde, natural e mudo
Que um vento que não vejo vago afflora.

Sou tam parado em mim que nem o sinto.
Vejo, e onde o valle se ergue para a encosta,
Vae meu olhar seguindo o meu instinto
Como quem olha a mesa que está posta.

13-9-1934



218 [62B-14r]

Se ha arte ou sciencia para ler a sina
Ao que em nós o Destino faz de nós,
Dá-me que eu a não saiba, e que, indivina,
Me corra a vida vagamente e a sós.

Que quero eu do futuro que não tenho?
Que me pesa hoje, ou alegra, o que serei?
Sei, por lembrar, de que passado venho,
E onde hoje estou incertamente sei.

O mais, o que o futuro me dará,
Deixo a quem dê e à fórma como o der.
Basta a sombra que esta arvore me dá
E a sensação de nada mais querer.

13-9-1934



219 [62B-15r]

A febre do que me supponho
Tolda-me a fronte de o pensar.
Mas, se penso, sòmente sonho,
Porque a febre me faz sonhar.

Num intervallo de mim mesmo
Durmo disperto sem razão,
E sou um encontrar-me a esmo
Entre silencios em desvão.

Declinio de quem o não tem,
Sonho que não me faz dormir —
Isto não é nem mal nem bem,
Não é pensar nem é sentir.

15-9-1934



220 [62B-15r]

O sol
Nasceu.
Começou
No céu
A ser
Visto.
Passou
A ter
Isto:
Luz
Altura
Certeza
Seduz.
Mattura
Embeleza.
A meu ver
É nada.
Não é commigo.
Vejo-o da estrada:
É um postigo.

15-9-1934



221 [62B-16r]

A pompa inutil de teus gestos quedos,
Como que á espera do ritual a dar,
Não traz ainda os segredos
Que ninguem tem para entregar.
Mas é como um preludio entre rochedos
Ao que é o som do mar.

Deram-me rosas para que eu viesse.
Deram-me lirios para que eu sonhasse
A rosa murcha e esquece,
E o lirio cahe antes que amarellasse.
Mas isso tudo é a teia que nos tece
Uma aranha que nos amasse.

Ah, em vez de rosas, lirios, ou o que seja,
Que me dêem o céu e o mar sem fim
E o que da aragem vaga seja
Tudo o que faz dormir assim.
E o que de tudo eu sonhe ou até veja
Que seja sempre só em mim!

15-9-1934



222 [62B-17r]

Bem sei que estou endoidecendo.
Bem sei que falha em mim quem sou.
Sim, mas, enquanto me não rendo,
Quero saber por onde vou.

Inda que vá para render-me
Ao que o Destino me faz ser,
Quero, um momento, aqui deter-me
E descansar a conhecer.

Ha grandes lapsos de memoria,
Grandes parabolas perdidas,
E muita lenda e muita historia
E muitas vidas, muitas vidas.

Tudo isso, agora que me perco
De mim e vou a transviar,
Quero chamar a mim, e cerco
Meu ser de tudo relembrar.

Porque, se vou ser louco, quero
Ser louco com moral e sizo.
Vou tanger lyra como Nero.
Mas o incendio não é preciso.

15-9-1934



223 [62B-18r]

Eu caminhava, anonymo e distante
Do que via e ouvia,
Quando, sem eu esperar, surgiu deante
D’essa minha apathia

Uma criança a rir e a correr
E a olhar para mim;
E dispertei do enigma do meu ser
Como que num jardim...

Foi como se uma flor se destacasse
Ao meu olhar casual
E de seu sonho subita o acordasse
E o tornasse normal.

Flor de ser pequenina! Como tudo
Quanto estava pensando
Se me achava nitidamente mudo
Só de sentir-me olhando.

Riu, e deu pulos e ainda riu mais
E outra vez me olhou
E fez, com um adeus, grandes signaes
Àquillo que não sou.

15-9-1934



225 [62B-19r]

Nada é: o Chaos dorme, e a Noite é muda.
Ambos são um, e o mundo é o que são
Quando a illusão seu proprio ser transmuda
Em parecer que é illusão.

Nada ha; o Mundo fugiu e a Alma é queda.
Ambos são tudo, e o que ha não é ninguem,
Porque o universo é um sonho que arremeda
O sonho que elle mesmo tem.

Nada está: o Ser falta e o Não-ser sobra.
Ambos são nada, e passa quanto ha,
E tudo é como o rasto de uma cobra -
A antiga, que diz: Nada está.

15-9-1934



226 [62B-20r]

Quando se está cansado e apraz ser outro
Só porque isso é impossivel, ha vagar
Para pensar que ha um genero que é neutro
No latim virgem do sonhar.

Sim, ha cançaços sem saber de quê
Que tomam toda a vida e a sua sina
Numa coisaindecisa que não é
Masculina ou feminina

Ha estados de sua alma que se alastram
Pelos dominios quedos da razão
Com cheias de rios que desbastam
Com a sua fecundação.

Depois regressa ao leito o rio antigo
E a alma volve á quietação que teve.
E o que nos foi amigo e inimigo
Nem homem nem mulher esteve.

Foi um androgyno da noite muda
Que transmudou em nós o que pensou...
E a alma se ergueu do leito em que foi surda
E já não sabe o que sonhou.

15-9-1934



227 [62B-21r]

Vinha bebado sempre para casa
Resmungando uma cousa só metade.
Mas os que não vêm bebados p’ra casa,
Trarão consigo mais verdade?

Sim, o que é vinho tolda a intelligencia:
O homem sonha e suppõe que isso é pensar.
Mas o não beber vinho dá sciencia?
O andar direito é acertar?

Não, não dou a sentença... O que importa
Não é, neste r
Que o homem não saiba encontrar a porta
Logo que encontre o coração.

Não, o criterio é outro; que o que importa
Não é saber, cá neste mundo vão,
Se se pode encontrar a casa e a porta,
Mas se se encontra o coração.

15-9-1934



228 [62B-22r]

Tarda, tarda, tarda,
Tarda-me a vida toda,
E a cabeça, porque arda,
Anda-me toda á roda.

Se eu tivesse juizo
Andava-me a cabeça,
Assim como é preciso
Ao contrario, e depressa.

Mas como sou quem sou
E não sei quem sou eu,
Vou assim como vou,
E o resto Deus o deu...

18-9-1934



[62B-23r]

Não quero pedir nada ao fado e á vida.
Nada vale pedir-lhes, porque são
Dependentes de uma outra coisa ida
Que não lhes deixou forma nem razão.

Para que hei eu de pedir gloria ou esmola
A quem não tem licença para ser?
O ar sufficientemente me consola
Com existir, e o campo por o ver.

Não, nada quero. Quando a prece é inutil
É prolixo o mais curto do resar.
Se a natureza é assim tam falsa e futil
De que serve sentir, crer ou pensar?

Ha ramos altos cuja sombra espalha
Um socego de fresco sobre nós,
E ha um som de agua, que ao cahir da calha,
Nos faz mais somnolentos e mais sós.

Isso sim, isso... O resto é o que o mundo
Tem por Gloria ou amor ou isenção.

19-9-1934



230 [17A-2r]

Domingo, Maria,
Domingo...
A tua mania!..
Eu distingo
Entre quem me quer
E quem me quer ver.
Faze isso...

20-9-34



231 [62B-24r]

Ah, que maçada o piano
Eternamente a tocar
Lá em cima, no outro andar!

Ah, que tristeza o cessar!
Sempre era gente a tocar!
Sempre tinha companhia
Nessa constante arrelia.

Visinha, se não morreu,
Que aquelle piano seu
Volte de novo a maçar!
Sem elle penso e sou eu,
Com elle esqueço a sonhar...

Má musica? Sim, mas ha
Até na musica má
Um sentimento de alguem.
Não sei quem o sente ou dá,
Não sei quem o dá ou tem.

Não deixe de me maçar
Com o continuo tocar
Do seu piano frequente
Ah, torne-me a arreliar
E mace-me eternamente!

A quem é só, tudo é mais
Que o que está naquillo que é.
Notas falsas, deseguaes -
Não se importe: a minha fé,
Meu sonho, vão a reboque
Do que toca mal e até
Do piano, do não sei quê...
Toque mal; mas toque, toque!

20-9-1934



232 [62B-25r]

Bem sei que ha ilhas lá ao Sul de tudo
Onde ha paisagens que não pode haver.
Tam bellas que são como que o velludo
Do tecido que o mundo pode ser.

Bem sei. Vegetações olhando o mar,
Coral, encostas, tudo o que é a vida
Tornado amor e luz, o que o sonhar
Dá á imaginação anoitecida.

Bem sei. Vejo isso tudo. O mesmo vento
Que alli agita os ramos em torpor
Agora passa no meu pensamento
E o pensamento sente que é amor.

Sei, sim, é bello, é luz, é impossivel,
Existe, dorme, tem a côr e o fim,
E, ainda que não haja, é tam visivel
Que é uma parte natural de mim.

Sei tudo, sim, sei tudo. E sei tambem
Que não é lá que ha isso que lá está.
Sei qual é a luz que essa paisagem tem
E qual a rota que nos leva lá.

20-9-1934



233 [62B-26r]

Chega-me a dança rustica por som:
Harmonio, risos, baralhada ao luar.
E isso, indeterminadamente bom,
Suspende minha penna em seu riscar
O que talvez suppuz que ia pensar.

Que verdade ha em mim? Melhor que aquillo
Que é dança e rumor vario e rir ao vento?
Não: não ha nada... Tenho um certo estylo
Quando não escrevo com o pensamento
E o que é melhor depende do momento.

Mas elles dançam, fazem qualquer cousa.
É uma maneira natural de ser
Que em mim nada deseja e nada ousa.
Sinto-me na vida só para escrever.
Quem me dera dançar e não viver!

20-9-1934



234 [62B-27r]

Dias tam gastos em se não gastar
Nelles mais nada que não gastar nada...
Hei de fazer de vós as bolas no ar,
Que o sabão dá a uma palhinha dada...

Tambem, pensando bem, que vida tive
Melhor que isso que sobe sob o sol
E é um ser redondo que soltado vive
Com um proprio silencio e arrebol.

Sim, são côres aereas, matutinas,
Que subitas se quebram ante o céu
E não deixam saudades nem ruinas,
O resto, o resto sou apenas eu.

20-9-1934



235 [62B-27r]

Pouco da vida que tive
Foi a que devera ter.
O que em mim ainda vive,
Deseja poder querer.

Deseja, sim, mas não sabe
Se na grande loteria,
É a vontade que lhe cabe
Ou só o que ella seria.

Mas, enfim, o que é que importa
O que ha ou o que não ha?
A vida é só estar á porta.
Só passa quem passará.

20-9-1934



236 [62B-28r]

Não, não é esta astucia do luar,
Nem este aroma vindo, ou do arvoredo,
Ou das flores que entre elle desfolhar
Um vento incerto e quedo,
Que há de arrancar-me o meu segredo.

Sim, tudo isso, traduzido na alma,
É uma figura abstracta de mulher
Que acaricia, perigosa e calma,
É um oasis longinquo, alvor de palma,
É o que toda a gente quer.

Mas não saio do meu assombro
De quem ouviu os astros a cantar.
E isso me vela e inhibe.
É tudo o amor: visão, mulher, palmar.
Mas vou a ver e toca-me no hombro,
Para eu p’ra traz olhar
O Mestre que dá tudo o que prohibe.

20-9-1934



237 [62B-29r]

Ninguem me disse quem tu eras,
Ninguem fallou de que virias...
Vieste, e havia primaveras
Em que só tu florias...

Não sei ainda se vieste
Pois não distingo o sonho e a vida.
Sei qual o bem que me trouxeste,
Mas não me foi guarida.

Era um desejo começado,
Era um anseio por achar.
Só me resta do teu agrado
O sonhar-te a lembrar.

20-9-1934



238 [62B-30r]

O sol que está onde a montanha está
É um pincaro onde ha
Toda a luz concentrada que o sol dá.

A noite que entra quando o dia finda
Esse pincaro ainda
Com uma vaga luz, por alto, alinda.

Na noite inteira, o pincaro apparece
Que o seu sentido é esse,
Alto, e só de ser alto resplandece

20-9-1934



239 [62B-30r]

Passa uma nuvem ligeira
No ceu sem ella vazio.
Esta nuvem passageira
Traz um momento de frio.
A nuvem tem um arrepio.

De novo o sol, que não foi
Senão troçando, apparece
E o frio já nos não doe.
A nuvem que foi esquece
E, passada, o sol a aquece.

Vae distante, perseguida
Pela luz que já velou,
E vae por isso luzida.
Envolve Deus nessa ida
E Elle doura-a na partida.

20-9-1934



240 [33-45r]

A montanha por achar
Ha de ter, quando a encontrar,
Um templo aberto na pedra
Da encosta onde nada medra.

O sanctuario que ter,
Quando o encontrar, ha de ser
Na montanha procurada
E na gruta alli achada.

A verdade, se ella existe,
Ver-se-ha que só consiste
Na procura da verdade
Porque a vida é só metade.

21-9-1934



241 [62B-31r]

Grande é a noite que me cerca,
E negra a duvida que sinto,
Mas, antes que minha alma perca
A consciencia em que me minto,

Quero que alguma coisa minha
Possa ter mais que nada ter.

21-9-1934



242 [17-18r]

Pobres das hortas
Perdidos sem ser
Por entre os caminhos
Do acontecer.

São grandes armadas
Que a bruma formou.
Foram derrotadas
E por isso eu sou.

Eu sou a derrota
Daquelle passado
De que não me lembro
E de quem sou nado.

23-9-1934



243 [62B-32r]

Não sei qual o caminho — se o que passa
Por onde entre o arvoredo o atalho vae,
Se o que é a estrada extensa, que se traça
Como um vinco na terra, de onde sahe.

Não sei, não sei. Porque ou atalho ou estrada
São terra, e o que importa é como andar;
Nem pesa muito a estrada ir dar a nada,
Nem o atalho a nada ir a dar.

Vale só o quem anda, que é quem vive.
Assim, adulto do que quiz fazer,
Vou caminhando para o que só tive
Sabendo bem que o não poderei ter.

23-9-1934



244 [62B-33r]

Ao certo não sei...
Não sei se é verdade
Se é sòmente lei...
Depois te direi...
Ou talvez não diga...
Que vale o dizer?

28-9-1934



245 [62B-34r]

Paira na noite um som de agua
Que me ajuda a não pensar...
Não sei se é agua, se é magua,
Dentro em mim a divagar.

O certo é que o som se sente
E que é agua o que nelle ha,
E é fluido, triste, insistente,
E sonoro, pois nada dá.

Sim, oiço-o, e de bicas corre
Invisiveis esse som...
Mas na noite elle decorre
E, por não ser nada, é bom.

2-10-1934



246 [62B-34r]

Não distingo se sou eu
Que estou ouvindo, ou se é
Só um som de agua que é meu
Porque está aqui ao pé.

Mas o som da agua persiste
Para além de quem eu sou.
Penso: sou dormente e triste.
Oiço: quem fui dispertou.

2-10-1934



247 [62B-35r]

O sol, ausencia de Deus,
Alli presente,
Enche de luz estes ceus
Que são gente
Veladamente.

Mas não me dá a palavra
Que com haver sol perdi.

3-10-1934



248 [62B-35r]

Porque dormes, porque dormes,
Porque dormes sem razão
Sob ceus ficticios e enormes
Sem nenhuma sensação?

Disperta! Ha aurora no mundo
O sol doira o que se vê,
E ha um sentimento profundo
Que se não sabe o que é.

Mas tu dormes, dormes... Ah,
Quem sabe se dormes bem
E se o que em teu somno ha
Não é mais que o que o sol tem.

3-10-1934



249 [33-46r]

A sciencia, a sciencia, a sciencia...
Ah como tudo é nullo e vão!
A pobreza da intelligencia
Ante a riqueza da emoção!

Aquella mulher que trabalha
Como uma santa em sacrificio
Com quanto exforço dado ralha
Contra o pensar, que é o meu vício!

A sciencia! Como é pobre e nada!
Rico é o que alma dá e tem

A criança que ri na rua,
A musica que vem no acaso,
A tela absurda, a estatua nua,
A bondade que não tem praso -

Tudo isso excede este rigor
Que o raciocinio dá a tudo,
E tem qualquer coisa de amor
Ainda que o amor seja mudo.

4-10-1934



250 [33-47r]

Sim, já sei...
Ha uma lei
Que manda que no sentir
Haja um seguir
Uma certa estrada
Que leva a nada.

Bem sei. É aquella
Que dizem bella
E definida
Os que na vida
Não querem nada
De qualquer estrada.

Vou no caminho
Que é meu visinho
Porque não sou
Quem aqui estou.

4-10-1934




251 [33-48r]

Era isso mesmo —
O que tu dizias,
E já nem fallo
Do que tu fazias...

Era isso mesmo...
Eras outra já
Eras má deveras
A quem chamei má.

Eu não era o mesmo
Para ti, bem sei
Eu não mudaria,
Não — nem mudarei...

Julgas que outro é outro.
Não: somos eguaes.

6-10-1934



252 [47-39r]

Eu ia p'ra casa bebado
Quando encontrei a verdade.
Como ia p'ra casa bebado
Percebi só a metade.

Era que amor nos engana,
E que razão nos não vale
E que a quem lhes der na gana
Que vença e se deseguale.

A bebedeira foi esta
Que a festa fez que eu tivesse.
Mas eu não estive na festa.
Antes eu lá estivesse.

8-10-1934



253 [62B-36r]

Que futil toda essa tristeza
Que uns vagos versos vacuos dão,
Num modo de nem sim nem não,
Á quente e abstracta singeleza
De se sentir o coração!

8-10-1934



254 [62B-36r]

Bem sei que ella era a Rainha.
Tantas vezes a sonhei
Que julguei até que a tinha
Com quanto a imaginei...

Porque a gente, por pensar,
Julga que pode querer,
Até sentir que sonhar
É pensar sem poder ter.

Bem sei. Mas era a Rainha
E não abdico encontral-a.
Faltam-me o ser ella minha
E as condições e a salla.

8-10-1934



255 [62B-37r]

Bem sei que todas as maguas
São como as maguas que são
Parecidas com as aguas
Que continuamente vão...

Quero, pois, ter guardada
Uma tristeza de mim
Que não possa ser levada
Por essas aguas sem fim.

Quero uma tristeza minha
Uma magua que me seja
Uma especie de rainha
Cujo throno se não veja.

9-10-1934



257 [33-50r]

Na vespera de nada
Ninguem me visitou.
Olhei attento a estrada
Durante todo o dia
Mas ninguem vinha ou via,
Ninguem aqui chegou.

Mas talvez não chegar
Queira dizer que ha
Outra estrada que achar,
Certa estrada que está,
Como quando da festa
Se esquece quem lá está.

11-10-1934



258 [62B-38r]

Não digas nada a quem te disse tudo —
Tudo, esse tudo que se nunca diz...
Essas palavras feitas do velludo
A que se não sabe o matiz.

Não digas nada a quem te deu a alma...
Que a alma não se dá. O confessar
É feito só para se obter a calma
De nos ouvirmos a fallar.

Tudo é inutil e tambem mentira.
É um pião que um garoto na estrada
Deita só para ver como elle gira.
Elle gira. Não digas nada.

11-10-1934



259 [62B-39r e 40r]

A reunião foi marcada
Para a vespera de nada.
Todos traziam segredos;
Os de alguns eram só medos,
Os de outros a vida errada
Ou a esperança perdida
A que chamamos a vida.

Mas ninguem appareceu.
Uns iam a achar o ceu,
Outros a cahir no inferno,
E outros, num rhythmo mais seu,
Num caminho mais eterno.

Appareci eu, só eu;
E á sessão, que não havia,
Presidi, e nomeei-me
Secretario, e fallei-me.
Entrei na ordem do dia.

Se isto aconteceu agora,
Ou fora de toda hora
Que possa haver neste mundo,
Não sei, nem quero saber.
Soffro um descanço profundo
Da reunião por haver.

18-10-1934



260 [47-19r]

Como é que qualquer cousa pode ser,
Como é que existe o ser e o haver,
Como é que ha o que ha um ser qualquer —
Isto nem eu nem Deus sabe dizer.
Porisso, attento de ignorar tudo,
O melhor é ser solemne, calmo e mudo
Cheio de tudo, e vida e espanto.
Pobre, que r

21-10-1934



261 [62B-42r]

Bate dura na vidraça
A chuva que o vento açula.
Bate, cessa; bate e passa.
Minha sensação é nulla.

Accostumado a sentir
O que os outros já sentiram,
Não sei com que alma hei de ouvir
Aquillo que outros ouviram.

Não sei se hei de achar-me bem
Em casa, ouvindo chover,
Ou chorar que a chuva tem
Um pranto por esquecer.

E assim me vou distrahindo
Da chuva que bate ou cessa,
Sem saber se estou sentindo,
Com a intima alma possessa

De não saber se hei de ser
Quem sou ou quem eu seria
Se eu fosse quem o chover
Convencesse que chovia.

1-11-1934



262 [62B-43r]

Bem sei, bem sei: eu sou essa criança
Que encontraram na estrada
Após aquella intermina tardança
Que não quer dizer nada.

Sou a criança que não pude ser.
Dormem mundos em mim.
E ergo a cabeça que não sei erguer
Para mais que o meu fim.

Sim, tenho alma para os astros todos,
Eu sei o que é sonhar,
Com todos os sentidos e os modos
De nada vir a achar.

20-11-1934



263 [33-51r]

Sob olhos que não olham — os meus olhos —
Passa o ribeiro, que nem sei se é
Rapido ou lento, passa incerto ao pé
Dos invisíveis spinhos e abrolhos
Da margem, minha estagnação sem fé.

É como um viandante que passasse
Por um muro de quinta abandonada
E, por não ter que olhal-o, por ser nada
Para o seu interesse, o não olhasse,
Fiel sòmente ao nada seu — a estrada.

22-11-1934



264 [33-51v]

Não tenho que sonhar que possam dar-me
Um dia, vero ou falso, as rosas vãs
Entre que em sonhos mortos fui achar-me
No alvorecer de incognitas manhãs.

Não tenho que sonhar o que renego
Antes do sonho e o recusar a ter.
Sou no que sou como na vida é um cego
A quem causou horror o poder ver.

Isto, ou quasi isto... Só do sonho morto
Me fica uma imprecisa hesitação —
Como se a nau 

22-11-1934



265 [17A-3r]

Nunca faz mal o que escrevas
Desde que não escrevas nada
Como não faz mal que bebas
Se não bebes à canada.

Vinho ao copo é muito pouco,
Vinho aos copos é ou não.
Eu vou fingir-me de louco
Que bebado já eu sou.

28-11-1934



266 [62B-44r]

Não! Isso não!
Não tragas com essa cantiga —
Esse mero som de canção —
A tristeza de uma alegria antiga
Ao meu coração.

Essa cantiga de Lisboa
Era a que me cantava
Minha mãe quando eu mal andava.
A vida então era eu bébé e boa
E dia a dia a mesma estava.

Porque foste cantar
O que veio recordar
Em meu coração, que aquecia!
Como que um som de mar
Como que um ar de maresia?

Já sou triste bastante —
Para que precise
Que a tua voz, a distrahida, cante,
Sem que com o canto encante
O antigo, o amigo. Ah, dize, dize...

Dize, ainda que eu soffra... Canta bem -
Ou nada — nada me importa — essa canção
Com que me embala minha mãe,
Longe, longe, quando eu era ninguem
E andava ao collo, e tambem
Não tinha que pensar nem ter razão.

28-11-1934



267 [62B-45r]

Quando os anjos são gente são crianças,
Crianças pequeninas que não crescem
Porque, como aqui são
Visitas, só, das nossas esperanças,
Sorriem ante o nosso coração
Pouco tempo e depois desapparecem.

Será que o ceu não póde aqui deixal-as
Mais que o tempo, tam pouco!, que ha que dar
Para que o coração aprenda a amal-as,
E assim possa aprender a tudo amar?

Não sei... Talvez saudades da outra vida
As faça regressar depressa ao céu
Depois de estar sua missão cumprida —
Qualquer missão, a nós desconhecida,
De amor e paz que Deus nos deu.

Veem, sorriem, passam, como a flor
Deixa cahir as petalas já fanadas...

Ai, Maria Leonor
Teus olhos cujo azul era o amor,
E as tuas pequenas mãos tam lindas!

29-11-1934



268 [62B-45v]

Sonhei — quem não sonhara? — porque a tarde
Baixou o azul do ceu e já se via
Uma estrella pequena, sem alarde,
Ainda em dia a desmentir o dia.

Tudo quanto mal fiz ou não queria
Numa fogueira que não vejo arde,
Meu coração, que espera e não confia,
É como um poço aonde a agua tarde.

Sonhei. Pois não havia de sonhar
Vendo ante mim este ceu brando e o mar,
Ao longe um lago, parecer parado...

Sonhei... Não sei de quê, mas foi de um bem
Que não sei se era algum ou se era alguem
E que só conheci como ignorado.

29-11-1934



270 [33-52r]

Exigua lampada tranquilla,
Quem te allumia e me dá luz,
Entre quem és e eu sou oscilla.

[30 de Novembro de 1934]



271 [33-52r]

Eu quizera pensar,
Mas uma musica
Subita, fez-me parar...
Seguiu, tal como era
Popullar e seguida.

[30 de Novembro de 1934]



272 [33-52r]

Não, não sou nada, nem o quero ser.
Basta-me o ar que desce da montanha
E que me faz sentir que ha esse viver

[30 de Novembro de 1934]



273 [33-49r]

O som continuo da chuva
A se ouvir lá fóra bem
Deixa-nos a alma viuva
D'aquillo que já não tem.

Quando era dia gosava
O sentimento da vida
Da interrupção que se dava
Entre cada 

[post Outono de 1934]



274 [62B-46r]

Sou muitos; todos são caminhos

Depois de ter seguido
A estrada que não via,
Fiquei na encruzilhada,
Accordei da enganada
Confusão em que eu ia
Firmemente perdido.

Não sei que vida é esta
Em cujo meio estou,
Que tem tantos caminhos
Que são como escaninhos
Em que se me arrumou
A força que me resta.

Hesito, porque ha tanto
Que não posso escolher.
Tanto caminho, e eu
Sem saber qual o meu!
Tanto, e eu sem saber
O quanto, o quanto, o quanto...

O quanto me valera
Ir por este ou aquelle
Dos caminhos que estão.
Elles para onde vão?



Se ao menos eu soubesse
Para onde quero ir,
Se ao menos morte ou sorte
Me dissesse onde é o norte,
Para eu poder seguir
Entre a sombra e a prece.

1-12-1934



276 [33-58r]

Musica... Que sei eu de mim?
Que sei eu de haver ser ou estar?
Musica... Sei só que sem fim
Quero saber só de sonhar...

Musica... Bem sei que faz mal
À alma entregar-se a nada...
Mas quero ser animal
Da insufficiencia enganada.

Musica... Se eu pudesse ter
Não o que penso ou desejo
Mas o que não pude haver
E que até nem em sonhos vejo,

Se também eu pudesse fruir
Entre as algemas de aqui estar!
Não faz mal. Flue,
Para que eu deixe de pensar!

[1934]



277 [33-59r]

A mão posta sobre a mesa,
A mão abstracta, esquecida,
Imagem da minha vida...
A mão que puz sobre a mesa
Para mim mesmo é surpreza.
Porque a mão é o que temos,
Que define quem não somos.
Com ella aquillo fazemos


11-12-1934



278 [62B-47r]

Num diminuendo que vem
Desde o principio do mundo,
Meu coração não contém
Já mais que o seu proprio fundo.

Como quem vem dando esmola,
A quem vem sendo roubado,
Neste caminho, que é escola,
Do mundo que nos é dado,

Chego quasi nu de mim
À hora de ser quem sou.
Não sei se é isto o meu fim.
Aqui conheço: aqui estou.

17-12-1934



279 [62B-48r]

Não deixes de fallar, inda que tarde
O sentido no que dizes. Só dizeres
Em meu anonymo coração arde
Como se fosses mulheres...

Não deixes de fallar. Em ti ha tudo
Desde que eu sinta nada no que dizes.

26-12-1934



280 [62B-49r]

O burro vae nos caminhos
Do modo que os burros vão.
Eu vou na vida que vivo
Como os burros que aqui estão.

Sou como os inconscientes
Que andam só por ter andar.
Penso, mas pensar não serve
Para chegar a um logar.

Mas chego, e elles tambem,
Porque chegar é viver.
Deem-me com que eu me entenda
E deixarei de entender.

26-12-1934