Wednesday, September 09, 2009

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Fernando Pessoa, Poemas de 1935
Alguns poemas de Fernando Pessoa, datados de 1935. São identificados pelo número que têm na edição INCM, de 2000; o que fica entre parênteses rectos é a cota do espólio de Pessoa na Biblioteca Nacional (Esp. E3).

281 [63-1r]

Colho impressões como se colhem flores.
Desfolho-as por dever de as ter colhido.
Ha quem faça isso aos seus amores
E quem o faça ao amor inattingido...

Isto é difficil de dizer... Eu sou
Aquelle que, tendo sentido isto,
De certo incerto modo o modelou,
E de tal fórma 

7-1-1935



282 [63-2r]

Não quero rosas, desde que haja rosas.
Quero-as só quando não as possa haver.
Que hei de fazer das coisas
Que qualquer mão póde colher?

Não quero a noite senão quando a aurora
A faz em ouro e azul se diluir.
O que a minha alma ignora —
É isso que quer possuir.

Para quê?... Se o soubesse, não faria
Versos para dizer que inda o não sei.
Tenho a alma pobre e fria...
Ah, com que esmola a aquecerei?...

7-1-1935



283 [63-2r]

Foi um olhar casual,
Dado de lado,
Não a mim, mas ao logar
Onde eu, homem, estava sentado.

Senti alegria, mas
Deixei de ter alegria...
Esses olhos são os que as
Que olham assim dão todo o dia...

Ha um romantico imbecil
No melhor do melhor nosso,
Mas muitas vezes é, nullo e pueril,
Só o irmão gemeo do não-ouso.

7-1-1935



285 [63-4r]

Mas tu mulher tu homem, tu criança,
Tu, menino da incognita clareza,
Em que sonhos de sombra e de belleza
Banhaste de ouro e alarme a tua sperança?

Principe falso de dominios idos
Vivendo louco entre o que vive a estar,
Não tinhas aqui casa nem logar,
Senhor pardo dos sonhos esquecidos...

Teu coração batia de outro modo
Que o rhythmo que faz coisas das estrellas.
Para ti as manhãs seriam bellas
Se alli pudesse estar teu sonho todo.

E assim, tomando a vida por brinquedo,
A escangalhaste, ainda se fôsse a tua.
Amuaste porque te não deu a lua
Quem dá a dôr, as formulas e o medo.

E assim partiste, como um cavalleiro
Da Edade Media que só ha em nós
Á procura de anonymos avós
Que fossem donos do universo inteiro.

18-1-1935




286 [63-5r]

O meu menino não dorme.
Não sei como dormirá.
Lá fora a noite é enorme
E não ha lua, não ha...

Meu menino chora, chora,
Não tem socego comsigo.
Voltei-o p’ra mim agora,
Mas não dorme, não consigo...

Já cantei quanto se canta...
Já lhe fallei do papão...
Já lhe disse como encanta
A fada que tem condão...

Mas elle não dorme; vejo
Sempre os seus olhos abertos...
Dou-lhe um beijo e outro beijo
E extende os braços dispertos...

Dorme, meu menino, dorme
Que a mãesinha vae dormir!
La fóra a noite é enorme...
Dorme, meu menino, dorme
Que já te vejo a sorrir...

19-1-1935



287 [33-60r]

Tudo quanto penso,
Tudo quanto sou
É um deserto immenso
Onde nem eu estou.

Extensão parada
Sem nada a estar alli.
Areia peneirada
Vou dar-lhe a ferroada
Da vida que vivi.

Vou dar-lhe o lixo que é
O que deixei de ter,
Deus queira que 


11-3-1935



288 [118-55r]

LIBERDADE

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doura
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tam naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa.

Livros são papeis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando ha bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são crianças,
Flores, musica, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

16-3-1935



289 [33-61r]

Um dia baço mas não frio...
Um dia como
Se tivesse paciencia p'ra ser dia,
E só num assomo
Num impeto vazio
De dever, mas com ironia,
Se desse luz a um dia emfim
Egual a mim,
Ou então
Ao meu coração
Um coração vazio
Não de emoção
Mas de buscar um fim —
Um coração baço mas não frio.

18-3-1935



290 [92U-32r]

Antonio de Oliveira Salazar.
Trez nomes em sequencia regular...
Antonio é Antonio.
Oliveira é uma arvore.
Salazar é só apelido.
Até aí está bem.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem.

29-3-1935



291 [92U-32r]

Este senhor Salazar
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A agua dissolve
O sal,
E sob o céu
Fica só o azar, é natural.

Oh, c’os diabos!
Parece que já choveu...

29-3-1935



292 [92U-32r]

Coitadinho
Do tiraninho!
Não bebe vinho,
Nem sequer sòsinho...

Bebe a verdade
E a liberdade,
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.

Coitadinho
Do tiraninho!
O meu visinho
Está na Guiné,
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé,
Mas ninguem sabe porquê.

Mas, enfim, é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé:
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até
Café.

[29-3-1935]



293 [129-52ar]

Mata os piolhos maiores
Essa droga que tu dizes.
Mas inda ha bichos peores.
Vê lá, se arranjas veneno
(Ou grande ou medio ou pequeno)
Para matar directrizes.

4-4-1935



294 [129-51v]

Vae pra o seminario
Vae
O vento é contrario
Vae des-can-sar.

Já fizeste contas
Até que os tresleste.
Vê lá se me encontras
Do lado de leste.

[post 6 de Fevereiro de 1935]



295 [33-62r]

O amor é que é essencial.
O sexo é só um accidente.
Pode ser egual
Ou differente.
O homem não é um animal:
É uma carne intelligente,
Embora ás vezes doente.

5-4-1935



296 [66-55]

Á EMISSORA NACIONAL

Para a gente se entreter
E não haver mais chatice
Queiram dar nos o prazer
De umas vezes nos dizer
O que Salazar não disse.

Transmittem a toda a hora,
Nas entrelinhas das danças,
"Salazar disse" Emissora
E ahi vem essa senhora
A Estada Nova com tranças.

Sim, talvez seja o melhor,
Porque estes homens de estado
Quando fallam, é o peor,
E então quando são do teor
Do chatazar já citado!

[post Primavera de 1935]




297 [66-58r, 59r, 60r]

Solemnemente
Carneirissimamente
Foi approvado
Por toda a gente
Que é, um a um, animal,
Na assembleia nacional
Em projecto do José Cabral.

Está claro
Que isso tudo
É desse pulha austero e raro
Que, em virtude de muito estudo,
E de outras feias coisas mais
É hoje presidente do conselho,
Chefe de infernanças animaes,
E astro de um estado novo muito velho.

Que quadra
Isso com qualquer coisa que se faça?
Nada.
A Egreja de Roma ladra
E a Maçonaria passa.

E elles todos a pensar
Na victoria que os uniu
Neste nada que se viu,
Dizem, lá se conseguiu,
Para onde agora avançar?
Olhem, vão p’ra o Salazar
Que é a puta que os pariu.

[post 5-4-1935]



298 [63-8r]

Azul, azul, azul, o mar fraqueja
Em orlas brancas pela praia fora.
Só esse som, alegre e antigo, rumoreja
No lucido silencio desta hora.

O mais — quietude, e no horizonte ralo
Um nevoeiro ou bruma ou illusão
Que é como que um inutil intervallo
No amplo azul que ceu e aguas são.

Socega em mim, de ver, de ver, de ver,
Essa intranquilidade, a magua antiga
Que vem de se sentir viver,
Que vem de não poder querer
E de não ter uma alma nossa amiga.

Ah, mas essa dor,
Cheia de consciencia do mutavel
Da pobreza da vida e do amor
É tam antiga como o mar
E tem marés
Cessa para recomeçar
Mais uma vez.

9-4-1935



299 [63-9r]

A paz do dia, a luz que faz a paz -
Tudo isso faz
Que eu um momento esqueça quem me fiz —
O poeta abstracto e infeliz,
Que escreve para dar a entender
Que não tem nada que dizer.

19-4-1935



300 [63-10r a 16r]

ELEGIA NA SOMBRA

Lenta, a raça esmorece, e a alegria
É como uma memoria de outrem. Passa
Um vento frio na nossa nostalgia
E a nostalgia torna-se desgraça.

Pesa em nós o passado e o futuro.
Dorme em nós o presente. E a sonhar
A alma encontra sempre o mesmo muro,
E encontra o mesmo muro ao dispertar.

Quem nos roubou a alma? Que bruxedo
De que magia incognita e suprema
Nos enche as almas de dolencia e medo
Nesta hora inutil, apagada e extrema?

Os heroes resplandecem a distancia
Num passado impossivel de se ver
Com os olhos da fé ou os da ancia.
Lembramos nevoa, sombras a esquecer.

Que crime outrora feito, que peccado
Nos impoz esta esteril provação
Que é indistinctamente nosso fado
Como o pressente nosso coração?

Que victoria maligna conseguimos -
Em que guerra, com que armas, com que armada? —
Que assim o seu castigo irreal sentimos
Collado aos ossos d’esta carne errada?

Terra tam linda com heroes tam grandes,
Bom sol universal localizado
Pelo melhor calor que aqui expandes,
Calor suave e azul só a nós dado.

Tanta belleza dada e gloria ida!
Tanta esperança que, depois da gloria,
Só conheceu que é facil a descida
Das encostas anonymas da historia!

Tanto, tanto! Que é feito de quem foi?
Ninguem volta? Do mundo subterraneo
Onde a sombria luz por nulla doe,
Pesando sobre onde já esteve o craneo,

Não restitue Plutão a sob o ceu
Um heroe ou o animo que o faz,
Como Eurydice dada á dor de Orpheu;
Ou restituiu, e olhámos para traz?

Nada. Nem fé nem lei, nem mar nem porto.
Só a prolixa estagnação das maguas,
Como nas tardes baças, no mar morto,
A dolorosa solidão das aguas.

Povo sem nexo, raça sem supporte,
Que, agitada, indecisa, nem repare
Em que é raça, e que aguarda a propria morte
Como a um comboio expresso que aqui pare.

Torvelinho de duvidas, descrença
Da propria conciencia de se a ter,
Nada ha em nós que, firme e crente, vença
Nossa impossibilidade de querer.

Plagiarios da sombra e do abandono,
Registramos, quietos e vazios,
Os sonhos que ha antes que venha o somno
E o somno inutil que nos deixa frios.

Oh, que ha de ser de nós? Raça que foi
Como que um novo sol occidental
Que houve por typo o aventureiro e o heroe
E outrora teve nome Portugal...

(Falla mais baixo! Deixa a tarde ser
Ao menos uma externa quietação
Que por ser fóra faça menos doer
Nosso descompassado coração.

Falla mais baixo! Somos sem remedio,
Salvo se do ermo abysmo onde Deus dorme
Nos venha dispertar do nosso tedio
Qualquer obscuro sentimento informe.

Silencio quasi! Nada digas! Cala
A esperança vazia em que te acho,
Patria. Que doença de teu ser se exhala?
Tu nem sabes dormir. Falla mais baixo!)

Ó incerta manhã de nevoeiro
Em que o Rei morto vivo tornará
Ao povo ignobil e o fará inteiro -
És qualquer coisa que Deus quer ou dá?

Quando é a tua Hora e o teu Exemplo?
Quando é que vens, do fundo do que é dado,
Cumprir teu rito, reabrir teu Templo
Vendando os olhos lucidos do Fado?

Quando é que sôa, no deserto de alma
Que Portugal é hoje, sem sentir,
Tua voz, como um balouçar de palma
Ao pé do oasis do que possa vir?

Quando é que esta tristeza desconforme
Verá, desfeita a tua cerração,
Surgir um vulto, no nevoeiro informe,
Que nos faça sentir o coração?

Quando? Estagnamos. A melancholia
Das horas successivas que a alma tem
Enche de tedio a noite, e chega o dia
E o tedio augmenta porque o dia vem.

Patria, quem te feriu e envenenou?
Quem, com suave e maligno fingimento
Teu coração supposto socegou
Com abundante e inutil alimento?

Quem fez que durmas mais do que dormias?
Que fez que jazas mais que até aqui?
Aperto as tuas mãos: como estão frias!
Mãe do meu ser que te ama, que é de ti?

Vives, sim, vives porque não morreste...
Mas a vida que vives é um somno
Em que indistinctamente o teu ser veste
Todos os sambenitos do abandono.

Dorme, ao menos, de vez. O Desejado
Talvez não seja mais que um sonho louco
De quem, por muito te ter, Patria, amado,
Acha que todo o amor por ti é pouco.

Dorme, que eu durmo, só de te saber
Presa da inquietação que não tem nome
E nem revolta ou ansia sabe ter
Nem da esperança sente sede ou fome.

Dorme, e a teus pés teus filhos, nós que o somos,
Colheremos, inuteis e cansados
O agasalho do amor que ainda pomos
Em ter teus pés gloriosos por amados.

Dorme, mãe Patria, nulla e postergada,
E, se um sonho de esperança te surgir,
Não creias nelle, porque tudo é nada,
E nunca vem aquillo que ha de vir.

Dorme, que a tarde é finda e a noite vem.
Dorme, que as palpebras do mundo incerto
Baixam solemnes, com a dor que têm,
Sobre o mortiço olhar inda disperto.

Dorme, que tudo cessa, e tu com tudo,
Quererias viver eternamente,
Ficção eterna ante este espaço mudo
Que é um vacuo azul? Dorme, que nada sente,

Nem paira mais no ar, que fora almo
Se não fora a nossa alma erma e vazia,
Que o nosso fado, vento frio e calmo
E a tarde de nós mesmos, calma e fria -

Como - longinquo sopro altivo e humano! -
Essa tarde monotona e serena
Em que, ao morrer, o imperador romano
Disse: Fui tudo, nada vale a pena.

2-6-1935



301 [16-46 e 47r]

Azul ou verde ou roxo, quando o sol
O doura falsamente de vermelho,
O mar é aspero, casual ou molle,
É uma vez abysmo e outra espelho.
Evoco porque sinto velho
O que em mim quereria mais que o mar
Já que nada alli ha por desvendar.

Os grandes capitães e os marinheiros
Com que fizeram a navegação,
Jazem longinquos, lugubres parceiros
Do nosso esquecimento e ingratidão.
Só o mar, ás vezes, quando são
Grandes as ondas e é deveras mar
Parece incertamente recordar.

Mas sonho... O mar é agua, é agua nua,
Serva do obscuro impeto distante
Que, como a poesia, vem da lua
Que uma vez o abata e outra o levante.
Mas, por mais que descante
Sobre a ignorancia natural do mar,
Pressinto-o, vagamente, a memorar.

Quem sabe o que é a alma? Quem conhece
Que alma ha nas coisas que parecem mortas,
Quanto em terra ou nos mares nunca esquece.
Quem sabe se no espaço vacuo ha portas?
Ó sonho, que me exhortas
A meditar assim a voz do mar,
Ensina-me a saber-te meditar.

Capitães, contramestres - todos nautas
Da descoberta infiel de cada dia -
Acaso vos chamou de ignotas flautas
A vaga e impossivel melodia.
Acaso o vosso ouvido ouvia
Qualquer coisa do mar sem ser o mar —
Sereias só de ouvir, e não de achar?

Quem, atraz de interminos oceanos
Vos chamou á distancia, como quem
Sabe que ha nos corações humanos
Não só uma ansia natural do bem,
Mas, mais vaga, mais subtil tambem,
Uma coisa que quere o som do mar
E o estar longe de tudo e não parar.

Se assim é, e se vós e o mar immenso
Sois qualquer coisa, vós por o sentir
E o mar por o ser, d'isto que penso;
Se no fundo ignorado do existir
Ha mais alma que a que pode vir
Á tona vã de nós, como á do mar,
Fazei-me livre, emfim, de o ignorar.

Dae-me uma alma transposta de argonauta,
Fazei que eu tenha, como o capitão
Ou o contramestre, ouvidos para a flauta
Que chama ao largo o nosso coração,
54 Fazei-me ouvir, como a um perdão,
Numa reminiscencia de ensinar,
56 O antigo portuguez que falla o mar!

9-6-1935



302 [63-18 a 21r, 22 a 25r, 26r e 27r; 133F-26r]

Praça da Figueira

Ainda que escriptos sobre o thema popular dos tres Santos lisboetas de Junho, estes poemas não são, nem pretendi que fossem, populares. Baseados no obscuro sentimento pagão do nosso povo, pretendeu-se que o passassem para outro nivel; que, sendo fieis á emoção simples do povo lisboeta, a interpretassem, sem obscuridade desnecessaria, com as complexidades naturaes da intelligencia.
Foram escriptos, todos os tres, no dia 9 de Junho de 1935. Chronologicamente, pois, não ha nelles erro, salvo se houver qualquer coisa de erro em toda ante-cipação.

Santo Antonio

Nasci exactamente no teu dia —
Treze de Junho, quente de alegria,
Citadino, bucolico e humano,
Onde até esses cravos de papel
Que têm uma bandeira em pé quebrado
Sabem rir...
Santo dia profano
Cuja luz sabe a mel
Sobre o chão de bom vinho derramado!

Santo Antonio, és portanto
O meu santo,
Por isso quero que passes,
Se bem que nunca me pegasses
Teu franciscano sentir,
Catholico, apostolico e romano.

(Reflecti.
Os cravos de papel creio que são
Mais propriamente, aqui,
Do dia de S. João...
Mas não vou escangalhar o que escrevi.
Que tem um poeta com a precisão?)

Adeante... Ia eu dizendo, Santo Antonio,
Que tu és o meu santo sem o ser.
Por isso o és a valer,
Que é essa a santidade boa,
A que fugiu deveras ao demonio.
És o santo das raparigas,
És o santo de Lisboa,
És o santo do povo.
Tens uma aureola de cantigas,
E então
Quanto ao teu coração —
Está sempre aberto lá o vinho novo.

Dizem que foste um prègador insigne,
Um austero, mas de alma ardente e anciosa,
Etcetera...
Mas qual de nós vae tomar isso à lettra?
Que de hoje em deante quem o diz se digne
Deixar de dizer isso ou qualquer outra cousa.

Qual santo! Olham a arvore a olho nu
E não a vêem, de olhar só os ramos.
Chama-se a isto ser doutor
Ou investigador.

Qual Santo Antonio! Tu és tu.
Tu és tu como nós te figuramos.

Valem mais que os sermões que deveras prègaste
As bilhas que talvez não concertaste.
Mais que a tua longinqua santidade
Que até já o Diabo perdoou,
Mais que o que houvesse, se houve, de verdade
No que — aos peixes ou não — a tua voz prègou,
Vale este sol das gerações antigas
Que acorda em nós ainda as semelhanças
Com quando a vida era só a vida e instincto,
As cantigas,
Os rapazes e as raparigas,
As danças
E o vinho tinto.

Nós somos todos quem nos faz a historia.
Nós somos todos quem nos quer o povo.
O verdadeiro titulo de gloria,
Que nada em nossa vida dá ou traz
É haver sido taes quando aqui andámos,
Bons, justos, naturaes em singeleza,
Que os descendentes dos que nós amámos
Nos promovem a outros, como faz
Com a imaginação que ha na certeza,
O amante a quem ama,
E o faz um velho amante sempre novo.
Assim o povo fez comtigo
Nunca foi teu devoto; é teu amigo,
Ó eterno rapaz.

(Qual santo nem santeza!
Deita-te noutra cama!)
Santos, bem santos, nunca têm belleza.
Deus fez de ti um santo ou foi o Papa?...
Tira lá essa capa!
Deus fez-te santo? O Diabo, que é mais rico
Em fantasia, promoveu-te a mangerico.

És o que és para nós. O que tu foste
Em tua vida real, por mal ou bem,
Que coisas ou não-coisas se te devem
Com isso a esteril multidão arroste
Na nora de erros d'uns burros que puxam, quando escrevem,
Essa prolixa nullidade, a que se chama historia.
Quem foste tu, ou foi alguem,
Só Deus o sabe, e mais ninguem.

És pois quem nós queremos, és tal qual
O teu retrato, como está aqui,
Neste bilhete postal.
E parece-me até que já te vi.

És este, e este és tu, e o povo é teu —
O povo que não sabe onde é o céu,
E nesta hora em que vae alta a lua
Num placido e legitimo recorte,
Atira risos naturaes à morte,
E, cheio de um prazer que mal é seu,
Em canteiros que andam enche a rua.

Sê sempre assim, nosso pagão encanto,
Sê sempre assim!
Deixa lá Roma entregue á intriga e ao latim,
Esquece a doutrina e os sermões.
De mal, nem tu nem nós mereciamos tanto.
Foste Fernando de Bulhões,
Foste Frei Antonio -
Isso sim.
Porque demonio
É que foram pregar comtigo em santo?


S. João

Ó Precursor, fizestel-a bonita!
Não que teu Christo, incarnação do Bem —
Não seja quem Annunciado.
O mal são os que após, sem mystica divina,
Nem ternura christã, ou só humana,
Metteram a Jesus na cella da doutrina
Com as algemas do odio manietado
Para depois manchar de falsa fé
O pobre homem que todo homem é

A cruel multidão negramente infinita
Que tem sido o algoz ou o ladrão
Da ingenua humanidade afflicta —
Esses que, aqui mesmo, pelos modos,
Dão ao inferno realisação...
Ah, não podiam ser peores, nem
Que a mulher do Diabo, se elle a tem,
Os tivesse parido a todos.

Eu bem sei que houve muito santo e crente,
Muito puro, bondoso e inocente.
Bem sei, bem sei:
Sei o eu e sabe-o toda a gente.
Mas esses, cuja alma está em Christo
São só isto —
Qualquer remedio que se dissolvesse
No chá que para isso ha,
E cujo gosto nelle se perdesse;
O chá fica sabendo só a chá.
Se o remedio faz bem,
Não o sabe ninguem.
Que o chá não presta, não duvida alguem.

Sabemos isso, e sabel-o hia antes
De todos nós teu Mestre que viria,
Propheta, Deus e guia dos errantes.
Quão dolorosamente o saberia!
Sei que houve astros no ceu da fé vazia.
Sei, mas repara que falso isso soa!
Por mais astros que a noite use brilhantes,
Que Diabo!, a noite não se chama dia.

Ó Precursor! Fizeste-a boa!

Deliro. Para nós, os de Lisboa,
Não és o precursor de nada.
És um rapaz ainda menino
Que tem por missão boa,
Por missão sorridente e socegada
Ter ao collo um cordeiro pequenino.

Lá o que esse cordeiro significa
Não tem cheiro
Para o povo, que tem a alma rica
Da emoção que não conhece.
Para elle o cordeiro é um cordeiro,
E o menino sorri e a vida esquece.

O resto são fogueira
E os saltos dados a gritar
Com um medo exaggerado
Feito tudo de maneira
A mostrar
O riso, as pernas e o agrado.
É quente e anonyma a aragem,
Tudo é juventude e viço
Num arraial multicolor e vasto.
Bonito serviço
Como homenagem
A quem, ainda com cabeça, foi um casto!

Mas é assim que és
E é assim que serás,
Até que pisem esta terra os pés
Do ultimo fado que o Destino traz.

Então, esperamos, eu e todos,
Ver-te "surgir no ceu", como quem vence
Tudo que é realidade ou illusão
Por o menino ser que lhe pertence,
E os seus bons e santos modos
"Com o cordeirinho na mão",
Como te viu Catullo Cearense.

Mas, desçamos à terra,
Que, por enquanto, o ceu aterra,
Porque antes d’isso mette a morte.
Ha muita coisa desconhecida
Na tua vida.
Tens muita sorte
Em ninguem saber da partida
Que em mil setecentos e dezasete
Tu fizeste à Egreja constituida.
Estavas, eu bem sei, cansado
Com o que a Egreja se intromette
Com tua vida e o teu divino fado.

E foi então que, para te vingar
E, á maneira de santo, os arreliar,
Desceste mansamente á terra
Perfeitamente disfarçado
E fizeste entre os homens da razão
Um milagre arrojado,
Mas cuja assignatura se erra,
Quando em teu dia, S. João do Verão,
Fundaste a Grande Loja de Inglaterra.

Isto agora é que é bom,
Se bem que vagamente rocambolico.
Eu a julgar-te até catholico,
E tu sahes-me maçon.

Bem, ahi é que ha espaço para tudo,
Para o bem temporal do mundo vario.
Que o teu sorriso doure quanto estudo
E o teu Cordeiro
Me faça sempre justo e verdadeiro,
Prompto a fazer falar o coração
Alto e bom som
Contra todos as formulas do mal,
Contra tudo que torne o homem precario.
Se és maçon,
Sou mais do que maçon — eu sou templario.

Esqueço-te Santo.
Deslembro o teu indefinido encanto.

Meu Irmão, dou-te o abraço fraternal.


S. Pedro

Tu, que Diabo?, és velho.
És o unico dos trez que traz velhice
Ás festas. Tuas barbas brancas
Têm comtudo um ar terno
A que o teu duro olhar não dá razão.
Parece que com essas barbas brancas
Por um phenomeno de imitação
Pretendes ter um ar de Padre Eterno.

Carcereiro do ceu, isso é o que és,
Basta ver o tamanho d’essas chaves -
As que Roma cruzou no seu brasão.
Segundo aquelle passo do Evangelho
Do "Tu és Pedro" etcetera (tu sabes),
Que é, afinal, uma fraude
Meu velho, uma interpolação.

Carcereiro do ceu, que chaves essas!
Nem dão vontade de ser bom na terra,
Se, segundo evangelicas promessas
Vamos parar, ao fim, a um ceu claustral.
Isso — fecharem-me — não quero eu,
Nem com Deus e o que é seu
Que o estar fechado faz-me mal
Até na beatitude do teu ceu,
Entre os santos do paraiso,
(A liberdade Deus dá a Deus —
Um Deus que não sei se é o teu),
O estar fechado, aqui ou alli, dizia eu
Faz-me terriveis cocegas no juizo.

Enfim, que direi eu de ti, amigo,
Que não seja uma coisa morta,
Anti-popular, gongorica,
Por fruste deselegante,
Como de quem, sem saber nada, exhorta.
Começo por duvidar bastante,
Desculpa-me chaveiro antigo,
De que tivesses existencia historica.

Mas isso, é claro, não importa
Se nos trazes
A alegria da singeleza
Ou a bondade que não sabe ter tristeza.
O peor é que nada d’isso fazes.
O teu semblante é duro e cru
E as barbas que roubaste ao Deus que tens
Só arrancam aos dandies teus loquazes
Ditos de dandecissimos desdens
Que diabo, és uma série de ninguens.
O Santo são as chaves, e não tu.

Para uns és S. Pedro, o grão porteiro,
Para outros as barbas já citadas,
Para uns o tal fatidico chaveiro
Que fecha à chave as almas sublimadas.
Para uns fundaste a Roma do Papado
(Andavas bebado ou enganado
Ou esqueceste
O teu Mestre quando o fizeste)
E para outros enfim, como é o povo
E segundo as ideas que elle faz,
És quem lhe não vem dar nada de novo —
Umas barbas com S. Pedro lá por traz.

É difficil tratar-te em verso ou prosa,
Tudo em ti, salvo as barbas, é incerto.
Tudo teu, salvo as chaves, não tem ser.
E a alma mais humilde é clamorosa
De qualquer coisa que se possa ver,
Em sonho até, qual se estivesse perto.

Olha, eu confesso
Que nunca escreveria
Este vago poema, em que me apresso
Só para me ver livre do teu nada,
Se não fosse para dar um cunho
A este livro da trilogia
(Santo Antonio, S. João, S. Pedro. —
De popular, que bem que sôa!)
Mas porque diabo de intuição errada
É que vieste parar a Junho
E a Lisboa?

Isto aqui ainda tem
Um sorriso que lhe fica bem,
Que até, até
No teu dia,
(Ó estupor velho
Com um chavelho,)
Nas ruas
O povo anda com alegria,
E fé,
Não em ti nem nas barbas tuas
Mas no que a alegria é.

Olha, acabei.
Que mais dizer-te, não sei.
Espera lá, olha.
Roma, fingindo que viceja,
Lentamente se desfolha.
Um gesto volvente e mudo
Teu ultimo gesto seja.
Se tens poder milagroso,
Se essas chaves abrem tudo,
Deixa esse ceu lastimoso.
Deixa de vez esse ceu,
Desce até à humanidade
E abre-lhe, enfim, no maior gesto teu,
As portas da Justiça e da Verdade.

9-6-1935



303 [63-29]

Sim, um momento
Ainda passas
Pelo meu vago pensamento,
E lembrar-te seria um tormento
Se imaginar fosse desgraças.

Sim, nessa hora
Em que fallámos mais a olhar
Do que a fallar,
Resultou esta cronica demora
Que tenho agora ao te lembrar.

Appareceste
Em minha vida
Como uma coisa que estava lá fóra.
Desappareceste.
Mais tarde soube da tua ida.

Comtudo, comtudo,
Conseguiste
Prender-me um pouco o coração.
É um coração triste
E não
Se entende com tudo

Nem tem geito
Para se fazer amar
Ou para o imaginar,
Salvo quando
Teu olhar
Teimosamente brando
Me fazia saltar
O coração dentro do peito.

Onde ia eu?
Já me esquecia.
Sim, o meu coração foi teu
Naquelle dia,
Naquelle dia ou noutro dia...
Nem se houvesse outra terra ou outro ceu
Qualquer coisa aconteceria.

19-7-1935



304 [63-30r]

Já estou tranquillo. Já não spero nada.
Já sobre meu vazio coração
Desceu a inconsciencia abençoada
De nem querer uma illusão.

20-7-1935



305 [16-48]

Começa a ir ser dia.
O ceu negro começa,
Numa menor negrura
Da sua noite escura,
A ter uma côr fria
Onde a negrura cessa.

Um negro azul cinzento
Emerge vagamente
De onde o Oriente dorme
Seu tardo somno informe,
E ha um frio sem vento
Que se ouve e mal se sente.

Mas eu, o mal-dormido,
Não sinto noite ou frio,
Nem sinto vir o dia
Da solidão vazia...
Só sinto o indefinido
Do coração vazio.

Em vão o dia chega
A quem não dorme, a quem
Não tem que ter razão
Dentro do coração,
Que quando vive nega
E quando ama não tem.

Em vão, em vão, e o ceu
Azula-se de verde
Acinzentadamente.
Que é que a minha alma sente?
Nem isto, não, nem eu,
Na noite que se perde.

23-7-1935



306 [16-49r e 49ar]

A OUTRA

Amamos sempre no que temos
O que não temos quando amamos.
O barco pára, largo os remos
E, um a outro, as mãos nos damos.
A quem dou as mãos?
Á Outra.

Teus beijos são de mel de bocca,
São os que sempre pensei dar,
E agora a minha bocca toca
Os beiços que eu sonhei beijar.
De quem são os beiços?
Da Outra.

Os remos já cahiram na agua,
O barco faz o que a agua quer.
Meus braços vingam minha magua
No abraço que emfim podem ter.
Quem abraço?
A Outra.

Bem sei, és bella, és quem desejo...
Não deixa a vida que eu deseje
Mais que o que pode ser teu beijo
E poder ser eu que te beije.
Beijo, e em quem penso?
Na Outra.

Os remos vão perdidos já,
O barco vae não sei para onde.
Que fresco o teu sorriso está,
Ah, meu amor, e o que elle esconde!
Que é do sorriso
Da Outra?

Ah, talvez, mortos ambos nós,
Num outro rio sem logar
Em outro barco outra vez sós
Possamos nos recomeçar,
Que talvez sejas
A Outra.

Mas não, nem onde essa paisagem
É sob eterna luz eterna
Te acharei mais que alguem na viagem
Que amei com ansiedade terna
Por ser parecida
Com a Outra.

Ah, por ora, idos remo e rumo,
Dá-me as mãos, a bocca, o teu ser.
Façamos d'esta hora um resumo
Do que não poderemos ter.
Nesta hora, a unica,
Sê a Outra!

28-7-1935



307 [63-31v]

Atravez da radiophonia
A melancholica voz
De não sei que melodia,
Ou de quem a canta a sós
Ante um microphono morto
Como que chega ao porto
Quando chega até nós.

Quantos, como eu,
Sentem agora
A attração de banalidade e ceu
D’essa canção
Que foi marcada nos jornaes para esta hora
Mas punge o coração.
Ah, não ha hora, nem ha emissora,
Nem apparelho surdo a que cantar
Que possa enganar
O que o coração chora,
Que possa evitar
Que se levante o veu
Do que se passa nesta hora
Entre a banalidade e o céu.

Que estupida canção
É, palavra a palavra,
O que esse francez vem cantar
Da sua lavra.
Enchem-se-nos os olhos de lagrimas.
Porque não?
Mas não, não quero chorar.
Um poeta ter lagrimas
Perante um cantar!
Que vergonha para a poesia!
Mas o coração
Com o que quero nada quer,
E vae na esteira de essa voz e melodia
Sem eu o saber.

28-7-1935



308 [92U-30]

Sim, é o Estado Novo, e o povo
Ouviu, leu e assentiu.
Sim, isto é um Estado Novo,
Pois é um estado de coisas
Que nunca antes se viu.

Em tudo paira a alegria,
E, de tam intima que é,
Como Deus na theologia
Ella existe em toda a parte
E em parte alguma se vê.

Ha estradas, e a grande Estrada
Que a tradição ao porvir
Liga, branca e orçamentada,
E vae de onde ninguem parte
Para onde ninguem quere ir.

Ha portos, e o porto-maca
Onde vem doente o caes.
Sim, mas nunca alli atraca
O paquete Portugal
Pois tem calado de mais.

Ha esquadra... Só um tolo o cala,
Que a intelligencia, propicia
A achar, sabe que, se falla,
Desde logo encontra a esquadra:
É uma esquadra de policia.

Visão grande! Odio à minuscula!
Nem para proval-a tal
Tem alguem que ficar triste:
União Nacional existe,
Mas não união nacional.

E o Imperio? Vasto caminho
Onde os que o poder despeja
Conduzirão com carinho
A civilização christã,
Que ninguem sabe o que seja.

Com "directrizes" à arte
Reata-se a tradição,
E juntam-se Apollo e Marte
No Theatro Nacional,
Que é onde era a Inquisição.

E a fé dos nossos maiores?
Forma-a, impolluta, o consorcio
Entre os padres e os doutores.
Casados o Erro e a Fraude,
Já não póde haver divorcio.

Que a fé seja sempre viva,
Porque a esperança não é vã!
A fome corporativa
É derrotismo. Alegria!
Hoje o almoço é amanhã.

29-7-1935



309 [63-34r e 66-52r]

O REI

O Rei, cuja coroa de oiro é luz
Fita do alto throno os seus mesquinhos.
Ao meu Rei coroaram-O de espinhos
E por throno Lhe deram uma cruz.

O olhar fito do Rei a si conduz
Os olhares fitados e visinhos
Mas mais me fitam, e mortas sem carinhos,
As palpebras descidas de Jesus.

O Rei falla, e um seu gesto tudo preenche,
O som da sua voz tudo transmuda.
Meu Rei morto tem mais que majestade:
Falla a Verdade nessa bocca muda;
Suas mãos presas são a Liberdade.

31-7-1935.



311 [118-62r a 65r]

NO TUMULO DE CHRISTIAN ROSENCREUTZ

Não tinhamos ainda visto o cadaver de nosso Pae prudente e sabio. Porisso afastámos para um lado o altar. Então pudemos levantar uma chapa forte de metal amarello, e alli estava um bello corpo celebre, inteiro e incorrupto....., e tinha na mão um pequeno livro em pergaminho, escripto a ouro, intitulado T., que é depois da Biblia o nosso mais alto thesouro nem deve ser facilmente submettido à censura do mundo.
Fama Fraternitatis Roseae Crucis


I
Quando, dispertos d’este somno, a vida,
Soubermos o que somos, e o que foi
Essa queda até Corpo, essa descida
Até à Noite que nos a Alma obstrue,
Conheceremos pois toda a escondida
Verdade do que é tudo que ha ou flue?
Não: nem na Alma livre é conhecida...
Nem Deus, que nos creou, em Si a inclue.
Deus é o homem de outro Deus maior:
Adam Supremo, tambem teve Queda;
Tambem, como foi nosso Creador,
Foi creado, e a Verdade lhe morreu...
De além o Abysmo, Sprito Seu, Lh’a veda;
Aquém não a ha no Mundo, Corpo Seu.
II
Mas antes era o Verbo, aqui perdido
Quando a Infinita Luz, já apagada,
Do Chaos, chão do Ser, foi levantada
Em Sombra, e o Verbo ausente escurecido.

Mas se a Alma sente a sua fórma errada,
Em si, que é Sombra, vê emfim luzido
O Verbo d’este Mundo, humano e ungido,
Rosa Perfeita, em Deus crucificada.
Então, senhores do limiar dos Céus,
Podemos ir buscar além de Deus
O Segredo do Mestre e o Bem profundo;
Não só de aqui, mas já de nós, dispertos,
No sangue actual de Christo emfim libertos
Do a Deus que morre a geração do Mundo.

III
Ah, mas aqui, onde irreaes erramos,
Dormimos o que somos, e a verdade,
Inda que emfim em sonhos a vejamos,
Vemol-a, porque em sonho, em falsidade.

Sombras buscando corpos, se os achamos
Como sentir a sua realidade?
Com mãos de sombra, Sombras, que tocamos?
Nosso toque é ausencia e vacuidade.
Quem d’esta Alma fechada nos liberta?
Sem ver, ouvimos para além da sala
De ser: mas como, aqui, a porta aberta?
.................................................................
Calmo na falsa morte a nós exposto,
O Livro occluso contra o peito posto,
Nosso Pae Roseacruz conhece e cala.

[1935]




312 [63-35r]

Ha quanto tempo isso foi!
Nem sei se foi nesta vida...
Lembral-o doe
Não conseguir lembral-o é uma ferida...

Sim, eras tu,
Ou alguem que hoje és,
O teu pé nu
Pousava sobre o leão que era a teus pés.

Isto, está claro, nunca poderia
Ter acontecido,
Mas, se pudesse, a gente viveria
Menos aborrecido.

Ah, teu longinquo olhar!
Teus beiços do passado!
Já os não sei amar
Por nunca os ter amado.

E tudo isto, que promette
Abysmos de emoção
Vem só de eu estar olhando p’ra um tapete
Que está, como tudo, no chão.

10-8-1935



314 [63-37r]

Este nó no lenço é
Para eu me lembrar, e até
Não me esquecer de lembrar...
Tem vantagens, já se vê.
Já sei que me hei de lembrar,
Que tenho que me lembrar,
Mas que me lembrar de quê?

18-8-1935



315 [63-37r]

Dizem que o Jardim Zoologico
Tem sido mais concorrido
Por prolongada assistencia
Attenta a cada animal.
Mas isso que é senão logico
Se acabou
A concorrencia
Porque fechou
A Assembleia Nacional?

18-8-1935



316 [120-30r]

Sei bem que não consigo
O que não quero ter,
Que nem até prosigo
Na estrada até querer.

Sei que não sei da imagem
Que era o saber que foi
Aquella personagem
Do drama que me doe.

Sei tudo. Era presente
Quando abdiquei de mim...
E o que a minha alma sente
Ficou nesse jardim.

18-8-1935



317 [120-30r]

Se eu pudesse não ter o ser que tenho
Seria feliz aqui...
Que grande sonho
Ser quem não sabe quem é e sorri!

Mas eu me extranho
Se em sonho me vi
Tal qual no tamanho
O que nunca vi.

18-8-1935



318 [63-38r]

VIRGEM MARIA

Mãe de quem não tem mãe, no teu regaço
Poisa a cabeça a dor universal
E dorme, ebria do fim do seu cansaço...

E tens na mão, usado e nunca immundo,
O pequenino lenço maternal
Com que enxugas as lagrimas do mundo.

21-8-1935



319 [63-40]

Aquillo que a gente lembra
Sem o querer lembrar,
E incerto se desmembra
Como um fumo no ar,
É a musica que a alma tem,
É o perfume que vem,
Vago, inutil, trazido
Por uma brisa de agrado,
Do fundo do que é esquecido,
Dos jardins do passado.

Aquillo que a gente sonha
Sem saber de sonhar,
Aquella bocca risonha
Que nunca nos quiz beijar,
Aquella vaga ironia
Que uns olhos tiveram um dia
Para a nossa emoção —
Tudo isso nos dá o agrado,
Do aroma que as flores são
Nos jardins do passado.

Não sei o que fiz da vida,
Nem o que quero saber.
Se a tenho por perdida,
Sei eu o que é perder?
Mas tudo é musica se ha
Alma onde a alma está,
E ha um vago, suave somno,
Um sonho morno de agrado,
Quando regresso, dono,
Aos jardins do passado.

[2-9-1935]



320 [63-40v]

Desce a nevoa da montanha,
Desce ou nasce ou não sei quê...
Minha alma é a tudo extranha.
Quando vê, vê que não vê.

Mais vale a nevoa que a vida...
Desce, ou sobe: enfim, existe.
E eu não sei em que consiste
Ter a emoção por vivida,
E, sem querer, estou triste.

2-9-1935



321 [63-41r]

Já não me importo
Até com o que amo ou creio amar.
Sou um navio que chegou a um porto
E cujo movimento é alli estar.

Nada me resta
Do que quiz ou achei.
Cheguei da festa
Como fui para lá ou ainda irei.

Indifferente
A quem sou ou supponho que mal sou,
Fito a gente
Que me rodeia e rempre rodeiou,

Com um olhar
Que, sem o poder ver,
Sei que é sem ar
De olhar a valer.

E só me não cansa
O que a brisa me traz
De subita mudança
No que nada me faz.

2-9-1935



322 [144F-6r]

Não sou feio nem bonito,
Não sou o a quem alguem reccorde,
Nem ha alguem que deixe escripto
Que se lembra de mim; e o accorde
Do realejo chora afflito.

3-9-1935



323 [66-84r, 95r, 94ar, 94r, 88r, 89r, 90, 91r, 85r, 86r, 87r, 92, 93r, 96r, 97r, 99r, 100r, 63-42]

UN SOIR À LIMA

Vem a voz da radiophonia e dá
A noticia num arrastamento vão:
"A seguir
Un Soir à Lima"...

Cesso de sorrir...
Pára-me o coração...

E, de repente,
Essa querida e maldicta melodia
Rompe do apparelho inconsciente...
Numa memoria subita e presente
Minha alma se extravia...
O grande luar da Africa fazia
A encosta arborizada reluzente.

A sala em nossa casa era ampla, e estava
Posta onde, até ao mar, tudo se dava
À clara escuridão do luar ingente...
Mas só eu, à janella.
Minha mãe estava ao piano
E tocava...
Exactamente
"Un Soir à Lima".

Meu Deus, que longe, que perdido, que isso está!
Que é do seu alto porte?
Da sua voz continuamente acolhedora?
Do seu sorriso carinhoso e forte?
O que hoje ha
Que m’o recorda é isto que oiço agora
Un Soir à Lima.

Prossegue na radiophonia
A nossa, a sua melodia
O mesmo "Un Soir à Lima".

Seu cabelo grisalho era tam lindo
Sob a luz
E eu que nunca pensei que ella morresse
E me deixasse entregue a quem eu sou!
Morreu, mas eu sou sempre o seu menino.
Ninguem é homem para a sua mãe!

E inda atravez de lagrimas não falha
Á memoria que tenho
O recorte perfeito de medalha
D’aquelle perfeitissimo perfil.
Chora, ao lembrar-te, mãe, romana e já grisalha,
Meu coração sempre infantil.
Vejo teus dedos no tèclado e ha
Luar lá fóra eternamente em mim.
Tocas em meu coração, sem fim,
Un Soir à Lima.

O silencio fatal das coisas findas
As tuas mãos pequenas e tam lindas
Com escrupulo risonho e familiar
Com um sorriso em que não ha
Nada senão o eternamente humano
Tiravas da quietude do piano
Un Soir à Lima.

Tinhas, perfil, um rosto de medalha
Eras de frente, e olhando, a minha mãe
Como hoje o teu olhar me falha
E o teu perfil me lembra bem

"Os pequenos dormiram logo?"
"Ora, dormiram logo".
"Esta está quasi a dormir"
E tu, sorrindo ao responder continuavas
O que tocavas —
Attentamente tocavas —
Un Soir à Lima.

Tudo que fui quando não era nada,
Tudo que amei e sei só em verdade
Que o amei por não ter hoje estrada,
Que tenha qualquer realidade.
Por não ter d'elle mais que a saüdade —

Tudo isso vive em mim
Por luzes, musica e a visão
Que não tem fim
D'essa hora eterna no meu coração,
Em que voltavas
A folha irreal da musica a tocar
E eu te ouvia e via
Continuar
A eterna melodia
Que está
No fundo eterno d'esta nostalgia
De quando, mãe, tocavas
Un Soir à Lima.

E o apparelho indifferente
Traz da emissora inconsciente
Un Soir à Lima.

Eu não sabia então que era feliz.
Hoje, que o já não sou, sei bem que o era.

"Esta tambem está a dormir..."
"Não está"
Ficámos todos a sorrir
E eu distrahidamente vou
Continuando a ouvir,
Longe do luar que ha
E que lá fora existe duro e só,

O que me faz sonhar sem o sentir,
O que hoje por que tenho de mim dó
Esse canto sem voz, teclado e brando
Que minha mãe estava tocando —
Un Soir à Lima.

Não ter aqui numa gaveta,
Não ter aqui numa algibeira,
Fechada, haurida, completa,
Essa scena inteira!
Não poder arrancar
Do espaço, do tempo, da vida
E isolar
Num logar
Da alma onde ficasse possuida
Eternamente
Viva, quente,
Essa sala, essa hora,
Toda a familia e a paz e a musica que ha
Mas real como alli está
Ainda, agora,
Quando, mãe, mãe, tocavas
Un Soir à Lima.

Mãe, mãe, fui teu menino
Tam bem dobrado
Na sua educação
E hoje sou o trapo que o Destino
Fez enrolado e atirado
Para um canto do chão.

Jazo, mesquinho,
Mas ao meu coração
Sobe, num torvelinho
A memoria de quanto ouvi do que ha
No que ha de caricia, de lar, de ninho,
Ao relembrar o amor, hoje, meu Deus, sósinho,
Un Soir à Lima.

Onde é que a hora, e o lar e o amor está
Quando, mãe, mãe, tocavas
Un Soir à Lima?

E num recanto de cadeira grande
Minha irmã,
Pequena e encolhidinha
Não sabe se dorme se não.

Eu tenho sido tanta coisa vil!
Tenho trahido tanto do que sou!
Meu espirito sedento
De raciocinador subtil
Quantas vezes prolixamente errou!
Quantas vezes até o sentimento
Innaninadamente me enganou!

Já que não tenho lar,
Deixa me estar
Nesta visão
Do lar de então
Deixa-me ouvir, ouvir, ouvir —
Eu à janella
Do nunca mais deixar de sentir,
Nessa sala, a nossa sala, quente
Da Africa ampla onde o luar está
Lá fóra vasto e indifferente
Nem mal nem bem
E onde, no meu coração
Mãe, mãe
Tocas visivelmente,
Tocas eternamente
Un Soir à Lima.

A minha raiva de animal humano
A quem tiraram a mãe,
E não tem
Para o menino que lhe na alma ha,
Para lhe encher o coração,
Mais que esta visão —
As tuas mãos pequenas pelo piano
Quando, oh meu Deus, tocavas
Un Soir à Lima.

Ai, mas é engano.
Aqui sou velho
Não ha sala nem ha piano
Nem tu existes a tocar,
Ha um apparelho mudo
De onde um som vem de longe, e dóe
Como é que eu te darei um beijo agora?

Eu poderia, vindo da janella,
Como tantas vezes fiz
/*/

O raciocinador exacto
Cuja alma está em mil pedaços,
Em mil pedaços que nem ha...
Deixa-me dormir
E sonhar de estar vendo, a ouvir,
Un Soir à Lima.

E era nesta calma,
Nesta felicidade
Em que existia uma alma
(Meu Deus, que saudade!),
Que, sob a luz que dourava,
(Hoje onde é que isso está?)
Longe de onde o luar prateava,
Minha mãe tocava
Medalha attenta e humana ao piano,
Un Soir à Lima.

Desde então
Tenho atravessado
Muitas vidas.
As mais das vezes tenho errado.
Meu coração
Pesa de coisas esquecidas.
Desde quando
Nesse brando
Conforto do meu lar extincto
Eu, à janella, ouvia, hirto e sonhando,
Ermo e indistincto,
O que ha
Em toda a musica de intuição e instincto,
Quanto tenho deixado morrer
Dentro do que quiz ser,
Quanto tenho deixado
Só pensado,
Quanto, quanto,
Tem sido para mim sòmente sonho,
Sòmente o encanto,
Tristemente risonho
De o ter sonhado,
Quem sabe se a saudade
Transmutada num devaneio meio humano
De quanto nessa noite está,
Longiqua, em que, mamã, ao piano
Tocavas, sob a crua claridade,
Un Soir à Lima.

Pesa-me o coração. Um torpor denso
Occupa-me a consciencia de 
E um frio informe, desolado e denso
Não me deixa pensar.

Num baloiçar-me, num embalar
Relembro tudo, relembro em vão.
Meu Deus, isso tudo onde está?
Un Soir à Lima...
Quebra-te, coração!...

Meu padrasto
(Que homem! que alma! que coração!)
Reclinava o seu corpo basto
De athleta socegado e são
Na poltrona maior
E ouvia, fumando e scismando,
E o seu olhar azul não tinha cor.
E minha mãe, creança,
No recanto da sua poltrona
Enrollada, ouvia a dormir
E a sorrir
Que estava alguem tocando
Se calhar uma dança...

E eu, de pé, ante a janella
Via todo o luar de toda a Africa innundar
A paisagem e o meu sonho.

Onde tudo isso está!
Un Soir à Lima...
Quebra-te, coração!

Essa mão pequenina e branca,
Que nunca mais me affagará,

Sorrias, rindo, para mim
Esse sorriso que já teve fim,
E continuavas tocando
Un Soir à Lima.

E eu que /*nunca pago/ † † †
E a † só † o que eu sou...

E é uma emissora indifferente
Que por um apparelho inconsciente
Em musica, só, musica me dá
A angustia viva que me vem
De te ver, por me lembrar,
Minha mãe, minha mãe,
Tam tranquilla, tocar
Un Soir à Lima.

Mas entorpeço.
Não sei se vejo, se adormeço,
Se sou quem fui,
Não sei se lembro, nem se esqueço.
Ha qualquer coisa que indistincta flue
Entre quem sou e o que eu era
E é como um rio, ou uma brisa, ou um sonhar,
Qualquer cousa que não se espera,
Que se suspende de repente
E, do fundo onde ir acabar,
Surge, cada vez mais distinctamente,
Num halo de suavidade
E nostalgia,
Onde o meu coração ainda está,
Um piano, uma figura, uma saudade...
Durmo encostado a essa melodia —
E oiço que minha Mãe toca,
Oiço, já com o sal das lagrimas na bocca,
Un Soir à Lima.

O veu das lagrimas não cega.
Vejo, a chorar,
O que essa musica me entrega —
A mãe que eu tinha, o antigo lar,
A criança que fui,
O horror do tempo porque flue,
O horror da vida, porque é só matar.
Vejo, e adormeço
E no torpor em que me esqueço
Que existo ainda neste mundo que ha...
Estou vendo minha mãe tocar.
Essas mãos brancas e pequenas,
Cuja caricia nunca mais me affagará,
Tocam ao piano, cuidadosas e serenas,
Un Soir à Lima.

Ah, vejo tudo claro!
Estou outra vez alli.
Afasto do luar externo e raro
Os olhos com que o vi.

Mas quê? Divago, e a musica acabou...
Divago como sempre divaguei
Sem ter na alma certeza de quem sou,
Nem verdadeira fé ou firme lei.

Divago, crio eternidades minhas
Num opio de memoria e de abandono.
Enthronizo fantasticas rainhas
Sem para ellas ter um throno.

Sonho porque me banho
No rio irreal da musica evocada.
Minha alma é uma criança esfarrapada
Que dorme num recanto obscuro.
De meu só tenho,
Na realidade certa e acordada,
Os trapos da minha alma abandonada
E a cabeça que sonha ao pé do muro.

Mas, mãe, não haverá
Um Deus que me não torne tudo vão,
Um outro mundo em que isso agora está?
Divago ainda: tudo é illusão.
Un Soir à Lima...

Quebra-te, coração...

[17-9-1935]



324 [63-45r]

PEDROUÇOS

Quando eu era pequeno não sabia
Que cresceria.
Pelo menos não o sentia.
Naquella edade o tempo não existe.
Cada dia é a mesma mesa
Com o mesmo quintal ao fundo;
E quando se sente tristeza
Está tristeza, mas não se está triste.

Eu era assim
E todas as crianças d’este mundo
Assim foram antes de mim.

O quintal grande estava dividido
Por uma fragil grade, alta, de tiras
Cruzadas, de madeirinhas,
Em horta e em jardim.

Meu coração anda esquecido,
Mas não minha visão. De ella não tires,
Tempo, esse quadro onde o feliz que eu fui
Dá-me uma felicidade ainda minha!
Inutil o teu frio curso flue
Para quem das lembranças se acarinha.

22-10-1935



325 [63-46r]

Triolet, rondeau, ballada —
Tudo isso é nada.
Ballada, rondeau, triolet —
Tudo isso o que é?
A espuma do que a vida atira
À praia e a tira
De onde a faz, e volta a chiar
Ao eterno mar.

28-10-1935



326 [16-51r]

Teus olhos entristecem.
Estagnas para o que digo.
Dormem, sonham, esquecem...
Não me ouves, e prosigo.

Digo o que já, de triste,
Te disse tanta vez...
Creio que nunca o ouviste
De tam tua que és.

Olhas-me de repente
De um distante impreciso
Com um olhar ausente
Começas um sorriso.

Continuo a fallar.
Continuas ouvindo
O que estás a pensar,
Já quasi não sorrindo,

Até que, neste ocioso
Sumir da tarde futil,
Se esfolha silencioso
O teu sorriso inutil.

29-10-1935



327 [63-47r]

Lembro-me vagamente
Ou sonho sem me lembrar?
Havia agua corrente
Nesse logar.

Que logar? Ora, era onde a quinta
Nos parecia que acabava
Mas não lhe servia de cinta
O muro que alli perto se avistava.

E o som da agua a correr
Cercava-nos, como me cerca
O relembrar, de o esquecer,
Até que a musica se perca.

30-10-1935



328 [144F-6v e 7r]

Que triste na noite sem luar
A illuminação dos barcos
Esparsa, em amarellos parcos,
Altos, sem quilhas a vista, lá no mar!

Que triste! É como quando é noite na alma
E aqui e alli na sua escuridão
Lembranças separadas, como são
As luzes dos navios,
Brilham aereos vãos calores frios
Na falsa calma
Da solidão.

Estar longe dos barcos é estar triste.
Cada um lá dentro é um navio e gente.
De aqui é duas luzes altas, trez,
Ou mais, e a escuridão persiste
E calmamente desmente
A vida d'essas luzes


Até que riem meus olhos tristes
E em tua bocca, risonho,
Desponta um carinho de fada.

Mas eu não valso, tu não existes,
Tudo isto nem sequer é sonho
É nada, é nada...

Ah, sê ninguem, para que eu possa
Valsar comtigo.

1-11-1935



329 [144F-9v]

Eu fallei no "mar salgado",
Disseram que era plagiado
Do Corrêa de Oliveira.
Ora, plagiei-o do mar
Eu sou tal qual Portugal
Faz-me sempre mal o sal
E ando sobretudo com azar.

[1935]



330 [63-48r]

Argumentamos em vão.
Distrahido, certo, bate
Por traz do nosso debate
O coração.

Sei bem que gostas de mim,
Sabes bem quanto te quero,
E argumentamos assim,
No tom arrastado e insincero

De quem falla só de cousas
Que nada teem connosco,
Como quem com mãos ociosas,
Num gesto alheado e manso,
Limpa o pó de um manipanso
Santo e tosco.

2-11-1935



331 [63-48r]

Nunca te achei nem te vi.
Mas, por imaginação,
Doe de ti meu coração:
Tenho saudades de ti.

Nunca, amor, te conheci.
Mas, sem saber se existes,
Meus olhos de ti estão tristes:
Tenho saudades de ti.

Quando outra achei, te perdi,
Só por a ter encontrado
Não sei se és sonho ou pecado
Sei que, enganado e exilado,
Tenho saudades de ti.

3-11-1935



332 [63-49r]

Navega inutil pelas aguas mansas
A barca que não chega a qualquer porto.
Leva comsigo as minhas esperanças,
Deixou no caes a fé com que eu as tinha.

5-11-1935



333 [63-50r]

Meu pobre Portugal,
Does-me no coração.
Teu mal é o meu mal
Por imaginação.

Tam fraco, tam doente,
E com a boa côr
Que a tisica põe quente
Na cara, o exterior.

Meu pobre e magro povo
A quem deram, ás peças,
Um fato em estado novo
Para que não o pareças!

Tens a cara lavada,
Um fato de se ver
Mas não te deram nada,
Coitado, que comer.

E ahi, nessa cadeira,
Jazes, apresentavel.

O transeunte amavel.

8-11-1935



334 [63-51r a 53r]

POEMA DE AMOR EM ESTADO NOVO

Tens o olhar mysterioso
Com um geito nevoento,
Indeciso, duvidoso,
Minha Maria Francisca,
Meu amor, meu orçamento!

A tua face de rosa
Tem o colorido esquivo
De uma nota officiosa.
Quem dera ter-te em meus braços,
Ó meu saldo positivo!

E o teu cabello — não chóro
Seu regresso ao natural —
Abandona o estalão-ouro,
Amor, pomba, estrada, porta,
Syndicato nacional!

Não sei porque me desprezas.
Fita-me mais um instante,
Lindo córte nas despezas,
Adorada abolição
Da divida fluctuante!

Com que madrigaes mostrar-te
Este amor que é chamma viva?
Ouve, escuta: vou chamar-te
Assembleia Nacional,
Camara Corporativa.

Como te amo, como, como,
Meu Acto Colonial!
De amar já quasi não como,
Meu Estatuto do Trabalho,
Meu Banco de Portugal!

Meu credito no estrangeiro!
Meu encaixe-ouro adorado!
Serei sempre o teu romeiro...
Pousa a cabeça em meu hombro,
Ó meu Conselho de Estado!

Ó minha corporativa,
Minha lei de Estado Novo,
Não me sejas mais esquiva!
Meu coração quer guarida
Ó linda Casa do Povo!

União Nacional querida,
Teus olhos enchem de magua
A sombra da minha vida
Que passa como uma esquadra
Sobre a energia da agua.

Que aristocratico ri
O teu cabello em cifrões -
Finanças em mise-en-plis!
Meu altivo plebiscito,
Nunca desceste a eleições!

Porisso nunca me escolhes
E a minha esperança é vã.
Nem sequer por dó me acolhes,
Minha imperialmente linda
Civilização christã!

- - - - - - -

Bem sei: por estes meus modos
Nunca me podes amar.
Olha, desculpa-m’os todos.
Estou seguindo as directrizes
Do Professor Salazar.

O demo-liberalismo Maçonico-communista.

8/9-11-1935



335 [63-54r]

Eu morava à beira-rio
E tinha que atravessar
Mas o barqueiro sabio
Estava sempre com fastio
De elle mesmo me levar;

Por isso a filha é que vinha
Remar-me para o outro lado.
Era forte, linda
Remando com ar de rainha.
Que bem que eu ia levado!

Fallavamos a sorrir
De quanto vinha a calhar
E, quando era para rir,
Riamos de nos ouvir
E eu comia o seu olhar.

Vejo ainda, vejo ainda,
Como esse corpo tam certo
Se inclinava, — mas que linda! —
E aquelle olhar nunca finda
No meu coração deserto...

Meu amor, sinto-te quente
No alvoroço de te abraçar.
Adoro-te realmente.
Mas ha um rio de repente
E tu não sabes remar.

Perdoa, amor: não abarco
Mais que uma vaga maneira
De ser teu, sinto-me parco.
Meu coração vae num barco,
Que o guarda lá a barqueira.

10-11-1935



336 [16-52r]

Ha doenças peores que as doenças,
Ha dores que não doem, nem na alma,
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Ha angustias sonhadas mais reaes
Que as que a vida nos traz, ha sensações
Sentidas só com o imaginal-as
Que são mais nossas do que a nossa vida.
Ha tanta cousa que, sem existir,
Existe, existe demoradamente,
E demoradamente é nossa, é nós...
Por sobre o verdor turvo do amplo rio
Os circumflexos brancos das gaivotas...
Por sobre a alma o adejar inutil
Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.

Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.

19-11-1935


Fernando Pessoa, Poemas de 1934-1935, edição de Luís Prista, Lisboa, INCM, 2000