Friday, September 13, 2013

Convento 6


Nota é a da primeira versão. Algumas das referências ainda podem ser melhoradas (letristas e compositores devem ser confirmados, nomes e datas de álbuns, etc.). A pouco e pouco irei acrescentando esses dados (para o que peço, é claro, a colaboração dos autores das análises ou de outros colegas).


 


Karim





Karim (Bom) || «Pássaro de Fogo» (Paula Fernandes), Pássaro de Fogo, 2009 // José Saramago, Memorial do Convento, 13.ª edição, Lisboa, Caminho, 1984, pp. 353-357

 
“Pássaro de Fogo” é um bom nome para a passarola construída pelas personagens Baltasar “Sete-Sóis”, Blimunda “Sete-Luas” e Bartolomeu de Gusmão. Porquê? Porque, no momento em que é referida na obra a primeira experiência de voo destes aventureiros, o Padre Bartolomeu temeu pela sua segurança e a dos seus compatriotas, já que, a uma certa altura, a passarola subiu tão alto que ameaçava queimar como o fogo, pelo Sol, tal como Ícaro que, voando tão próximo do mesmo, acabou com as asas derretidas.

“Vai se entregar pra mim” é um verso da música que carateriza bem o amor entre Baltasar e Blimunda, um amor sincero, genuíno, sentido, real, completo, em que ambos entregam o coração ao outro, de uma forma natural, como se de duas peças de lego se tratasse, ao encaixarem uma na outra. “(…) apesar do padre ter acabado primeiro de comer, esperou que Baltasar terminasse para se servir da colher dele (…)” é mais um trecho, desta vez do início da obra, que demonstra a entrega de Blimunda a Baltasar, uma absoluta declaração, correspondida pelo destinatário.

A parte da obra que focarei com mais afinco diz respeito ao último capítulo, a demanda de Blimunda pelo seu amado “(…) Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar (…)”. Confesso que esta é uma das partes mais bonitas e emocionantes da obra que pode ser caraterizada por certos versos da música  “(…) Minha alma viajante / Coração independente / Por você corre perigo (…)”, um pequeno trecho que carateriza a jornada de Blimunda para procurar o seu marido, fator que demonstra amor, persistência, força, “vontade” e crença, correndo certos perigos, como, por exemplo, a tentativa de violação por parte do frade dominicano.

“(…) Onde chegava, perguntava se tinham visto por ali um homem com estes e estes sinais, a mão esquerda de menos, e alto como um soldado da guarda real, barba toda e grisalha, mas se entretanto a rapou, é uma cara que não se esquece, pelo menos não a esqueci eu (…)”. Apesar de terem passado nove anos desde o desaparecimento de Baltasar, Blimunda continuava a conhecê-lo como a palma das suas mãos, não esquecendo os mais ínfimos pormenores. Passaram por muita coisa juntos, era normal conhecerem-se tão bem. Por onde passava, “Sete-Luas” repetia sempre o mesmo discurso, acabando por se tornar uma autêntica monotonia e, em certa parte, um autêntico monólogo, muitos não lhe ligavam, achavam-na uma louca que andava por ali a deambular.

“(…) e tanto pode ter vindo pelas estradas de toda a gente, ou pelos carreiros que atravessam os campos, como pode ter caído dos ares, num pássaro de ferro (…)”,  “(…) Julgavam-na doida (…)”,   “(…) Por fim já era conhecida de terra em terra, a pontos de não raro a preceder o nome de Voadora, por causa da estranha história que contava (…)” são excertos da obra que, mais uma vez, estabelecem uma ligação entre a mesma e a música “Pássaro de Fogo”.

Apesar da sua tormenta, Blimunda, ao longo da sua jornada, teve sempre o cuidado e a paciência de ouvir as lamentações das pessoas, nomeadamente, as das mulheres que, ao ouvi-la, mudavam drasticamente a maneira de estar com os seus maridos, valorizando-os mais, fator que provocava admiração nos homens: “(…) Por onde passava, ficava um fermento de desassossego, os homens não reconheciam as suas mulheres, que subitamente se punham a olhar para eles, com pena de que não tivessem desaparecido, para enfim poderem procurá-los. Mas esses mesmos homens perguntavam, Já se foi, com uma inexplicável tristeza no coração (…)”.

Com isto, identificamos, mais uma vez, não só o amor que “Sete-Luas” nutria pelo seu “Sete-Sóis”, mas também a sua humildade, paciência e caridade para com os outros. Por onde passava, Blimunda deixava a sua marca.

Na sétima vez que passara por Lisboa, a nossa querida “Voadora” encontrou Baltasar no auto de fé, como um dos condenados. “(…) Não comia há quase vinte e quatro horas. Trazia algum alimento no alforge, mas, de cada vez que ia levá-lo à boca, parecia que sobre a sua mão outra mão se pousava, e uma voz lhe dizia, Não comas, que o tempo é chegado (…)”. E chegara mesmo. Blimunda, ao reparar em Baltasar, que ardia na fogueira, viu a sua “vontade”, olhou o seu amado por dentro “(…) E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem”, ou, como se diz na canção, “Se entrega para mim”. Então, “desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda”.

 

Sofia R.



Sofia R. (Bom+/Muito Bom-) || «One and Only» (Adele), ?, ? // José Saramago, Memorial do Convento, ?, ?, ?, p. 53 & passim

Adele remetenos para o género músical pop, tendo esta música, «One And Only», um registo bastante calmo e, ao mesmo tempo, forte. Assim forte mostrase também o amor que nasceu entre as personagens Blimunda e Baltasar de Memorial do Convento. A forma como se encontram pela primeira vez não foi dentro das melhores circunstâncias recordemos o auto de fé que se realizou em plena baixa lisboeta, logo no segundo capítulo, no qual Sebastiana Maria de Jesus, mãe de Blimunda, seria condenada a ser “açoitada em público e a oito anos de degredo no reino de Angola” (p. 53) mas, e apesar da sua diferença de sete anos de idade, não houve forma de não se apaixonarem no momento em que Blimunda entendem que aquela seria a vontade da sua mãe (“Blimunda, olha só, olha com esses teus olhos que tudo são capazes de ver, e aquele homem quem será, tão alto, que está perto de Blimunda e não sabe (...) quem é ele, de onde vem, que vai ser deles poder meu” — p. 53) e perguntou ao homem que era “pelas roupas soldado, pelo rosto castigado, pelo pulso cortado” (p. 53) qual seria o seu nome.

De novo a cantora inglesa fala sobre o amor destas personagens indiretamente (“I dare you to let me be your one and only”), o que relacionamos com o momento em que Blimunda deixa a porta de sua casa aberta para que, não só o Padre Bartolomeu Lourenço possa entrar, mas também Baltasar Sete Sóis. “Forgive your past and simply be mine”, pensaria, talvez, Blimunda, pois fica a conhecer o passado guerreiro e triste do seu futuro marido, sem nunca se importar nem se afastar dele, como nos é apresentado no sexto capítulo.

Depois, muito depois, de ter sido demonstrada a grande amizade do casal principal do romance para com o padre Bartolomeu de Lourenço, que os casara anos antes, através da demorada construção da passarola que daria ao padre forma de realizar o seu para a época estranho e mal visto sonho de voar, chegou a altura de o casal guardar e cuidar da passarola do padre, já depois de a terem experimentado juntos, pois o padre não o pôde fazer mais, já que fugira para Espanha, atordoado com a queda da passarola e com a perseguição da Inquisição. Acaba o padre por falecer em Toledo, Espanha. Num dos momentos em que Baltasar iria ver como se encontrava o engenho por que ficara de cuidar, segundo sugestão de Domenico Scarlatti, o protagonista masculino da história desaparece por acidente, voando na passarola, o que levou a nove anos de uma procura incessante por parte da sua mulher. Esta acaba por se sentir perdida e fraca por várias vezes, mas, em certos momentos de certeza e lucidez, entende “I don’t know why I’m scared, / Because I’ve been here before, / Every feeling, every word, / I’ve imaginated it all. / You never know if you never try” e a procura pelo seu amado prolongase com bastante força de vontade, apesar de continuar sem qualquer notícia sua por parte de quem vivia nos locais por onde passou durante aqueles demorados nove anos e das dificuldades que encontrou ao longo do caminho, como quando um franciscano a tentou violar, tendolhe, anteriormente, indicado um local onde ela poderia passar a noite em paz e, acabando por ser assassinado por quem tentara seduzir e violentar.

Para Blimunda, ela mesma seria, literalmente, “the one who can walk that mile”, ou miles, já que foi enorme a distância que percorreu à procura do marido, além de ser a única que alguma vez amou Baltasar desta forma, ao ponto de persistir na sua caminhada por tanto tempo e a acreditar que o iria encontrar — mesmo que não pudesse voltar a estar com ele pois essa era a sua vontade, já que, afinal de contas, ao contrário do paradeiro do seu grande amor, as vontades humanas não eram, de forma alguma, um mistério para Blimunda.

 

Sol



Sol (Bom-) || “All You Need Is Love” (John Lennon-Paul McCartney), The Beatles, Yellow Submarine, 1969 // José Saramago, Memorial do Convento, 13.ª edição, Lisboa, Caminho, 1984, pp. 11 e 265 (& passim)

Nesta música, o título (“All You Need is Love”/Tudo o Que Você Precisa é de amor) diz tudo sobre do que trata a letra.

O “eu” do poema afirma que "There's nothing you can make that can't be made"/não há nada que você possa fazer que não possa ser feito e que  “Nothing you can sing that can't be sung"/nada que você possa cantar que não possa cantar, pois “o amor é tudo o que você precisa...”. Ou seja, quer transmitir a mensagem de que, quando há amor, nada é impossível.

No entanto, há quem dê demasiada importância à riqueza, ao seu estatuto, entre outras coisas, e deixe para trás elementos essenciais e importantes na vida, como é o caso do amor.

Em Memorial do Convento, a mensagem da letra da música remete-nos para o bom exemplo do uso do amor de Baltasar, o Sete-Sóis e, Blimunda, a Sete-Luas, e para o mau exemplo por parte do rei D. João V e de D. Maria Ana Josefa. 

O amor dos reis era como se fosse um contrato, em que nem sequer se amando e tendo relações sexuais com o único objectivo de procriar um herdeiro. Este acto era até encarado como uma obrigação, não era realizado por vontade própria e por amor. 

Este amor, se assim se pode chamar, nada tinha a ver com o de Blimunda e de Baltasar, pois era amor verdadeiro o que sentiam um pelo outro e ambos completavam-se. Mesmo sabendo que devido aos poderes de Blimunda, tanto ela como Baltasar corriam o risco de serem perseguidos pela Inquisição e de este os levar às suas mortes, nada houve que os separasse, pois era, de facto, amor verdadeiro e, por isso, resistente aos obstáculos que se lhe colocassem.

Fazem parte do povo, do mais baixo nível da sociedade, são alvos de injustiça, não têm uma vida luxuosa, vivem com dificuldades, mas tudo isto é “apagado” pelo amor.

Uniram-se de livre vontade e não precisaram da bênção da igreja para estarem juntos. Até mesmo a forma como dormiam era diferente, pois dormiam juntos e agarrados, ao contrário dos reis, que dormiam em quartos separados e, quando tinham relações sexuais, faziam-no em nome do amor e de livre vontade.

Inclusivamente depois da morte de Baltasar, queimado no auto-de-fé, o amor entre eles não acabou, pois a sua amada observou que a vontade deste ainda se encontrava dentro do corpo e recolheu-a, para que pudessem permanecer juntos.  

Esta música permite-nos ainda falar sobre o Padre Bartolomeu, e do amor que ele tinha em voar. Também neste caso, o amor falou mais alto, pois, como a letra da música diz, “There's nothing you can do that can't be done “/não há nada que você possa fazer que não possa ser terminado.

O padre Bartolomeu, também conhecido como o voador (“Aquele que ali vem é o padre Bartolomeu Lourenço, a quem chamam o Voador”, p. 78) sabia que, se fosse descoberto pela Inquisição, iria ser queimado na fogueira e o mesmo acontecia com Baltasar e Blimunda, pois partilhavam o mesmo sonho, mas, mesmo assim, lutaram pela realização dos sonhos, todos unidos, pois, como o Padre Bartolomeu disse, “o que seria de nós se não sonhássemos” (p. 250)”

Finalmente, viram todo o seu trabalho realizado: ”A máquina estremeceu, oscilou como se procurasse um equilíbrio subitamente perdido, ouviu-se um rangido geral, eram as lamelas de ferro, os vimes entrançados, e de repente, como se a aspirasse um vórtice luminoso girou duas vezes sobre si própria enquanto subia, mal ultrapassara ainda a altura das paredes, até que, firme, novamente equilibrada, erguendo a sua cabeça de gaivota, lançou-se em flecha, céu acima” (pp. 264-265). 

Em suma, a vida com amor tem muitas mais vantagens, traz mais felicidade e é uma grande ajuda para concretizarmos o que desejamos e sonhamos.

 

Carolina



Carolina (Bom+) || «Talking to the Moon» (Bruno Mars), Doo-Wops & Hooligan, 2010 // José Saramago, Memorial do Convento, 40.ª edição, Lisboa, Caminho, 1994, pp. 351-373

A canção de 2010 “Talking to the Moon” (“Falando com a lua”), co-escrita e interpretada pelo cantor americano Bruno Mars, encaixa na perfeição num dos principais momentos da acção do romance Memorial do Convento, de José Saramago.

Aquando da ida de Baltasar Sete-Sóis ao Monte Junto, para verificar o estado da passarola, como aliás já vinha sendo hábito fazer, sucedeu que este estava dentro do engenho, a fazer algumas reparações, quando, de repente, a máquina levanta voo. Blimunda, que estranhava já a demora do seu homem, decide ir até ao lugar onde havia ficado a passarola desde o seu primeiro voo; quando lá chega, apercebe-se da ausência da máquina e de Baltasar. Faz-se a sagração do Convento de Mafra e está Blimunda Sete-Luas no meio da Serra do Barregudo, gritando, desesperada, pelo seu Baltasar, num tom que era «apenas uma explosão sufocada, como se as tripas lhe estivessem sendo arrancadas» (p. 354).

Os anos passam e Blimunda, inquieta e angustiada, corre todas as partes do país à procura de «um homem com estes e estes sinais, a mão esquerda de menos» (p. 369), ganhando a alcunha de “voadora”, devido à sua história incomum. Tal como Blimunda, também o cantor está longe de alguém (“I know you’re somewhere out there/ somewhere far away” / “  Eu sei que estás em algum sítio/ Nalgum sítio longe”). Mesmo não estando explícito na obra de José Saramago, podemos fantasiar que Blimunda falaria com a lua, nas noites sombrias e solitárias que passou, como se com Baltasar estivesse falando, porque, na verdade, quase todos já o fizemos, assim como faz o eu lírico em “Talking to the moon/ Trying to get to you/ In hopes you’re on the other side talking to me too” (“Falando com a lua/ Tentando chegar a ti/ Na esperança que me respondas do outro lado”).

Todo este desespero que invade Blimunda só vem realçar a natureza verdadeira e genuína do seu amor por Baltasar, base de uma relação alicerçada na completude e aceitação mútua, que lhes havia permitido manterem-se alheios ao meio que os rodeava, protagonizando uma história de amor, envolta em misticismo, magia, ternura e espiritualidade. Ao percorrer Portugal, as pessoas com quem contactava «julgavam-na doida» (p. 369), por há tanto tempo procurar o seu homem, mas sobretudo pela bizarra história, sobre uma passarola, que conta. Também do mesmo sofre o cantor, que afirma “They say I’ve gone mad” (“Dizem que fiquei louco”), mas neste caso, por falar com a lua, na esperança de que do outro lado o oiçam.

Em 1739, isto é, passados nove anos desde que pela falta de Baltasar deu Blimunda, e durante a sua sétima visita a Lisboa, Blimunda depara-se com uma cerimónia do Santo Ofício, em que eram queimados os suspeitos de “culpas de judaísmo”, de fazerem “comédias de bonifrates” e mais outros de quem nunca se tinha ouvido falar, no total, eram onze os supliciados. Numa das extremidades do auto de fé encontrava-se «um homem a quem falta a mão esquerda» (p. 373), que, talvez pelo adiantar da queimada, ou pela barba que tinha agora na cara, só fora reconhecido, porque há muito era procurado: era Baltasar. Blimunda observa a sua nuvem fechada, esta desprende-se do quase falecido Baltasar Sete-Sóis e é prontamente recolhida, como tantas outras haviam sido para que tivesse voado a passarola. Porém, esta era diferente, «à terra pertencia e a Blimunda» (p. 373).

 

Tiago



Tiago (Suf+/Bom-) || «It will rain» (Phil Pinto / Bruno Mars), Unorthodox Jukebox, 2013 // José Saramago, Memorial do Convento, 53.ª edição, Lisboa, Caminho, 2013, pp. 487-493

O grande amor de Blimunda e Baltasar é traçado desde o auto-de-fé em que se conhecem, até à partida de Baltasar e à sua execucão pelo Santo Ofício. Blimunda amara incondicionalmente Baltasar. Este parte em busca do Padre Bartolomeu Lourenço, sendo esta a última vez que se reúne com Blimunda. O sentimento que Blimunda nutriu ao esperar, já sem esperança por Baltasar poderá identificar-se com este trecho da canção “If you ever leave me, baby / Leave some morphine at my door / ‘Cause it would take a whole lot of medication / To realize what we used, / We don’t have it anymore”  (Se algum dia me deixares, amor / Deixa um pouco de morfina na minha porta / Porque iria precisar de muitos medicamentos / Para me aperceber que já não temos / O que costumávamos ter). Blimunda ainda parte em busca de Baltasar, perguntando a vários aldeãos sobre o seu paradeiro ou se o haviam avistado, mas sem sucesso. Acaba por encontrar um padre que a tenta assediar sexualmente, mas acaba por fugir, matando-o

Blimunda desespera sem conseguir encontrar Baltasar, passando vários anos à sua procura. Acaba por encontrá-lo uma última vez, ao chegar a Lisboa, avistando-o no mastro onde iria ser queimado vivo, pelo Santo Ofício. Poderemos relacionar o que Blimunda sentiu com outro trecho da canção: “‘Cause there’ll be no sunlight / If I lose you, baby / There’ll be no skies / If I lose you, baby / Just like the clouds my eyes will do the same / If you walk away / Everyday it will rain, rain, rain” (Porque não haverá luz do sol / Se eu te perder, amor / Não haverá céu limpo / Se eu te perder, amor / Assim como as nuvens, os meus olhos farão o mesmo / Se fores embora / Todos os dias vai chover, chover, chover).

O amor de Blimunda e Baltasar surgira no dia da execução da mãe de Blimunda, Sebastiana Maria de Jesus, e foi fixado, religiosamente, contra a Igreja, pelo Padre Bartolomeu Lourenço, em São Sebastião da Pedreira. Com o episódio do desaparecimento de Baltasar até à sua execução é posto um termo à história de amor verdadeiro, contrastada na obra pela história de amor contratual de D. João V e D. Maria Ana de Áustria, de Blimunda e Baltasar, um com o seu poder de ver por dentro das pessoas, e outro  maneta, respectivamente. A única coisa que Blimunda pôde guardar do seu cônjuge foi, através do seu poder de ver por dentro,  a sua vontade, acabando assim por salvaguardar parte de Baltasar, de forma a eternizar o sentimento (“Então Blimunda disse, Vem, desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu à terra, se à terra pertencia e a Blimunda.”). A cena da recolha da vontade de Baltasar, por Blimunda, poderá identificar-se com o trecho da canção “Oh don’t just say goodbye / Don’t just say goodbye / I’ll pick up these broken pieces ‘til i’m bleeding / If that’ll make it right” (Oh, não digas simplesmente adeus / Não digas simplesmente adeus / Recolherei esses cacos até sangrar / Se isso fizer com que tudo fique bem). Neste caso, poderemos criar uma analogia entre as palavras do compositor “broken pieces – cacos” e a vontade de Baltasar, que foi uma das alternativas que Blimunda encontrou para, mesmo sem a presença de Baltasar fisicamente, se sentir mais perto dele, com a presença da sua vontade, que o narrador afirma pertencer a si e à terra.

No geral, assim como na canção, Blimunda perdeu alguém que para ela significava tudo, tendo-se como foco principal o momento da despedida, um dos que fica mais marcado em qualquer relação amorosa.

 

Francisca



Francisca (Bom-) || «Say Something» (Ian Axel, Chad Vaccarino, Mike Campbell), A Great Big World, Anybody Out There?, 2013 // José Saramago, Memorial do Convento, 52.ª edição, Lisboa, Caminho, Setembro 2012, pp. 465-493

"Say Something" é uma canção da dupla A Great Big World, lançado como o primeiro-single do seu álbum de estreia, Is There Anybody Out There?, lançado em 2013. A música aproxima-se, a meu ver, da narrativa de Memorial do Convento, mais propriamente na busca incessante de Blimunda por Baltasar desde que este parte certa manhã para Monte Junto a fim de ver como estava a passarola. Há uma identificação, como já referido anteriormente, com a obra uma vez que representa, também, o sofrimento de Blimunda.

Tudo se inicia quando Baltasar, após a ceia, quando já todos dormiam, leva Blimunda a ver as estátuas. Juntos, vêem a lua nascer, enorme e vermelha – “A noite estava clara e fria. Enquanto subiam a ladeira para o alto da vela, a lua nasceu, enorme, vermelha.” –, quando Baltasar anuncia à amada “Amanhã vou ao Monte Junto ver como está a máquina”, referindo a passarola e acrescentando, “saio cedo, se não tiver muito que remendar estarei cá antes da noite”. A notícia não agrada muito a Blimunda, que fica preocupada com Sete-Sóis: “Tem cuidado (...) Tem-nos todos [referindo-se aos cuidados], não te esqueças”. Na manhã seguinte, quando Sete-Luas acordou, levantou-se e juntou comida para o farnel que o marido levaria para a jornada até ao Monte Junto – “ela levantou-se, entrou em casa, na meia escuridão da cozinha procurou e encontrou algum alimento (…) dentro dele [do alforge] meteu a comida e as ferramentas”. Acompanhou-o até fora da vila - "Adeus Blimunda, Adeus Baltasar”- e separam-se.

Nessa noite, como Baltasar não voltasse para casa, Blimunda não conseguiu dormir. Esperava que ele voltasse ao cair do dia, quando aconteceriam os festejos da sagração da basílica, mas ele não voltara – “Em toda essa noite, Blimunda não dormiu. Pusera-se a esperar que Baltasar regressasse ao cair do dia (…) e, durante muito tempo, até fechar-se por completo o crepúsculo, se deixou estar sentada num valado, vendo passar a gente que ia para Mafra, que romaria à sagração”. Voltou para casa, ceou com os cunhados e com o sobrinho, mas não conseguiu dormir. Sete-Luas não ficou para ver o rei de Mafra – “Desencontro, sim, haverá, mas com el-rei, que precisamente entrará hoje na vila de Mafra” –, uma vez que foi procurar a sua cara-metade, tentando desesperadamente encontrá-lo: “e Blimunda continua a andar, agora já fora dos caminhos principais, atalhando como na viagem fizeram ambos, aquele monte, aquela mata, quatro pedras alinhadas, seis colunas em redondo, vai o dia adiantado, de Baltasar nem sombra.”. Já desesperada, chorou sem saber se ele estaria morto ou vivo. É neste momento que se pode fazer uma analogia entre os sentimentos de Blimunda e a música – “And I / Am feeling so small / It was over my head / I know nothing at all” // “E eu / Sinto-me tão pequeno / Estava além do meu alcance / E eu nada sei” –, uma vez que esta se sentia realmente insignificante por não saber de Baltasar, quando gritava por este e não obtinha resposta – “por causa disto [pensamentos] gritou, Baltasar. Não houve resposta” –, quando andava e andava e perdia as forças – “Parou para descansar, porque lhe tremiam as pernas, fatigadas do caminho”; “And I / Will stumble and fall” // “ E eu / Tropeçarei e cairei”, representando a força de vontade de Blimunda de não desistir, nomeadamente quando esta encontra o frade, que a tenta violar, e o mata (a violação e a morte representam as quedas) – “O vulto cobre toda a luz da fresta, é de homem alto e forte, ouve-se-lhe a respiração. Blimunda puxara o alforge para o lado, e, quando o homem se ajoelha, meteu rapidamente a mão na bolsa, segurou o espigão pelo encaixe, como um punhal. Já sabemos o que vai acontecer”. Foi após ter morto o frade que Blimunda partiu novamente à procura do amado. Voltou a Mafra, por pensar que se haviam desencontrado, mas, para grande tristeza, ele também não estava lá.

Durante nove anos, Blimunda andou pelos caminhos de sempre à procura de Baltasar que continuava desaparecido. Perguntava por ele em todo o lado – “Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar. (...) Onde chegava, perguntava se tinham visto por ali um homem com estes e estes sinais, a mão esquerda de menos, e alto como um soldado da guarda real (…).”

Várias e várias vezes voltou aos lugares por onde passara anteriormente, sempre perguntando por Baltasar. Seis vezes já passara por Lisboa, sendo esta, a de agora, a sétima. Sem comer, o tempo era chegado para ela. No Rossio, finalmente encontrou Baltasar. Havia lá um auto-de-fé. Eram onze os condenados à fogueira, estando, entre eles, António José da Silva, o Judeu, comediógrafo autor das Guerras de Alecrim e Manjerona, e Baltasar – “De três sei eu, aquele além e aquela são pai e filha que vieram por culpas de judaísmo, e o outro, o da ponta, é um que fazia comédias de bonifrates e se chamava António José da Silva, dos mais não ouvi falar.”. Ela, Blimunda, olhou-o, recolheu a sua vontade, porque a ele lhe pertencia – “Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete – Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.

“I’m sorry that I couldn’t get to you / Anywhere I would’ve followed you” // “Desculpa-me por não ter conseguido encontrar-te / Ter-te-ia seguido para qualquer lugar” representaria o último pensamento de Blimunda, uma vez que só encontrou Baltasar no leito da morte…

 

Inês



Inês (Bom(-)/Bom-) || “Vem Libertar” (Ofra Haza), banda sonora de O Príncipe do Egipto, 1998 //José Saramago, Memorial do Convento, 13.ª edição, Lisboa, Caminho, 1984

A letra da música pode ser relacionada com dois momentos da obra: a exploração dos trabalhadores na construção do Convento de Mafra e a despedida de Sebastiana Maria de Jesus (mãe de Blimunda) de Blimunda.

A letra inicia-se com a expressão dos escravos da construção das Pirâmides do Egito: “Lama, Terra, Água, Palha, força!/ Lama, puxa! Terra iça!/ Água, levanta! Palha, força!”, processos comparáveis aos da construção do Convento (“Já andam os lavradores lavrando, vão para o campo mesmo debaixo de chuva” – cap. VII, pág. 72, “Quando a chuva se afasta ou se tornou aturável, voltam os homens e tudo recomeça, carregar e descarregar, puxar e empurrar, arrastar e levantar, hoje não há tiros de pólvora por causa desta geral humidade, melhor para os soldados que gozam a folga debaixo dos telheiros” – cap. XVII, pág. 232).

Mesmo que a letra relativa à parte dos escravos seja dramatizada pela religião em causa e pela invocação ao seu Deus, as queixas, os processos e a falta de higiene na exploração realizada e expressa na letra (“Dor a arder no meu ombro/E o sal do suor sob o Sol/Elohim, nosso Deus/Porque sofro?”) são identificáveis com os trabalhadores do Convento, igualmente sacrificadores, explorados e oprimidos a favor da ostentação régia: “daqui a pouco os homens poderão ajoelhar-se sem temer demasiado pelas joelheiras dos calções, ainda que esta gente não seja da que mais cuida de limpezas, lavam-se com o próprio suor.”. São aliás comparados às formigas: “Vão as formigas ao mel, ao açúcar derramado, ao maná que cai do céu, são quê, quantas, talvez umas vinte mil, todas para o mesmo lado viradas (…)” – capítulo XVII.

Seguidamente, a música transita para a despedida da mãe do seu filho. Para o salvar tem de o abandonar no rio, visto que os egípcios assassinavam os hebreus recém-nascidos, de forma a controlarem a população (“Vamos, meu filho/ Não chores mais/ Dorme na água ao luar/ Dorme e relembra esta minha canção/ Contigo estarei a sonhar”). Esta situação pode relacionar-se com a Inquisição retratada na obra, visto ter havido igualmente uma perseguição e, mesmo, assassínio daqueles considerados não-crentes ou respeitadores do Catolicismo. Com efeito, a mãe de Blimunda, considerada feiticeira, é assassinada pela Inquisição e tem de, igualmente, despedir-se de Blimunda. Blimunda, também com poderes sobrenaturais (ver o interior das pessoas) tem de assistir à morte da mãe sem nada fazer ou dizer, de forma a salvar-se:  “e esta sou eu, Sebastiana Maria de Jesus (…) não ouvi que se falasse da minha filha, é seu nome Blimunda, onde estará, onde estás Blimunda,  se não foste presa depois de mim, aqui hás-de vir saber da tua mãe, e eu te verei se no meio dessa multidão estiveres, que só para te ver quero agora os olhos (…) ó coração meu, salta-me no peito se Blimunda aí estiver, entre aquela gente que está cuspindo para mim e atirando cascas de melancia e imundícies (…) enfim o peito me deu sinal, (…) vou ver Blimunda  (…) filha minha, e já me viu, e não pode falar, tem de fingir que não me conhece ou me despreza (…)” – cap. V, págs.  51 e 52.

 

Mariana L.



Mariana L. (Bom) || «All of me» (John Legend / John Legend), Love in the Future, 2013 // José Saramago, Memorial do Convento, Linda-a-Velha, Biblioteca Visão, 2000, pp.29-192

«All of me», de John Legend, poderia muito bem ser a música de eleição da relação entre o casal Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas.

A história deste par nasce no dia em que, tristemente, Sebastiana de Jesus, mãe de Blimunda, é condenada num auto de fé, pela Inquisição, por ter visões. A união de ambos, que teve a bênção de Sebastiana, é uma história de verdadeira paixão, entrega, de um grande amor. Desde o início é vivida com grande intensidade, sendo evidente a maneira como ambas as personagens se completam e, independentemente das suas características, bastante próprias, se aceitam por completo. O refrão da música de John Legend reflecte essa mesma intensidade com que duas pessoas se podem completar tornando-se numa só («Cause  all of me loves all of you / Love your curves and all your edges/ All your perfect imperfections»  /  «Porque tudo de mim ama tudo em ti / Amo as tuas curvas e todas as tuas arestas / Todas as tuas imperfeições perfeitas»).

A química e confiança entre ambas as personagens é bastante forte desde início e é transmitida aos leitores através de simples atos como o acompanhar até casa, a utilização da mesma colher e até o convite, por parte de Blimunda, para Baltasar permanecer em sua casa: «Porque queres tu que eu fique, Porque preciso (…) Se eu ficar, onde durmo, Comigo.» (p. 39).

Desde o início que Baltasar olha para Blimunda como uma mulher muito especial, pelo mistério em seu torno, face à sua aproximação e ao seu olhar. Talvez até tenha sido esse o ponto fulcral da sua atracção. Baltasar não consegue descobrir esse mistério até que Blimunda lhe revele que pode ver mais além do que os seus olhos podem alcançar. De igual forma, existe uma passagem na letra da música que nos revela a mesma atracção sentida em relação a uma mulher: «What’s going on in that beautiful mind/ I’m on your magical mystery ride/ And I’m so dizzy, don’t know what hit me, but I’ll be alright» / «O que está acontecendo naquela mente bonita? / Estou na tua jornada misteriosa e mágica / E eu estou tão tonto, não sei o que me atingiu, mas eu vou ficar bem».

Apesar de Blimunda ter a capacidade de ver mais além do que o comum dos mortais, no primeiro dia em que conheceu Baltasar prometeu-lhe nunca ver o seu interior e, por isso, todas as manhãs, antes de olhar para ele, comia pão (já que só tinha esta capacidade em jejum). Mas era algo que não a incomodava, até preferia que assim fosse porque, na verdade, amava-o e confiava conhecê-lo indiscutivelmente («[…] quando me dás a mão, quando te encostas a mim, quando me apertas, não preciso ver-te por dentro» [p. 98]).

E o que seria uma verdadeira história de amor sem as provas que uma união realmente pede como «prometo ser-te fiel, amar-te e respeitar-te na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida»? Não seria uma relação testada a todos os níveis, como foi a de Sete-Sóis e Sete-Luas.

Tal como tiveram muitos momentos de alegria («Blimunda foge da água rindo, ele agarra-a pela cintura, ambos caem, qual de baixo, qual de cima, nem parecem pessoas deste século» [p. 192]), tiveram também momentos em que o amor foi posto à prova, como quando Blimunda adoeceu e Baltasar teve de cuidar dela. Mas Baltasar não se limitou a cuidar, ele viveu nesse momento apenas para Blimunda - «Baltasar não saía de junto dela, a não ser para preparar a comida ou para satisfazer necessidades expulsórias do corpo (…).» (p. 129) – e sofreu só de pensar em perdê-la: «(…) um suspiro assim, como de quem morre ou de quem nasce, debruçou-se Baltasar para ela, temendo que ali se acabasse quem afinal estava regressando.» (p. 130).

Na composição de John Legend a mesma prova é dada, ainda que em contextos diferentes. O companheiro permanece ao lado da amada independentemente de tudo («The world is beating you down, I’m around through every move / I can’t stop singing, it’s ringing, I my head for you» / « O mundo está a derrotar-te, eu estou por perto vendo cada movimento / Eu não posso parar de cantar, está a tocar, eu a minha mente em ti»).

Ainda na canção está também presente a importância da partilha entre um casal: «Give your all to me / I’ll give my all to you»  /  «Dê o seu melhor para mim / Dar-te-ei tudo de mim». O que também acontece na paixão entre os dois, em Memorial do Convento: «(…) Ah , e Baltasar gritou, Conseguimos, abraçou-se a Blimunda e desatou a chorar, parecia uma criança perdida (…) e agora soluça de felicidade abraçado a Blimunda, que lhe beija a cara suja (…)» (p. 138).

Já no último capítulo, depois do desaparecimento de Baltasar, Blimunda procura-o, insistentemente, por longos nove anos até o encontrar num auto de fé (tal como da primeira vez) a ser queimado. Blimunda estava em jejum e, por isso mesmo, conseguiu ver o seu interior que tanto prometera nunca ver. Disse então “Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.»

Também em «All of me» se afirma que verdadeiras histórias de amor nunca terminam: «You’re my end and my beginning / Even when I lose I’m winning» / Tu és o meu fim e meu começo / Mesmo quando eu perder estarei a ganhar». Assim, Blimunda nunca poderia perder Baltasar porque este era, simultaneamente, o seu fim e o seu começo e, por isso mesmo, lhe pertenceria para sempre.

 

João Almendra



João Almendra (Bom(-)) || “Se eu fosse um dia o teu olhar” (Pedro Abrunhosa/Pedro Abrunhosa), Tempo, 1996, //José Saramago, Memorial do Convento, 53ª edição, Lisboa, Caminho, pp. 53-89

“Se eu fosse um dia o teu olhar” representa alguns momentos que aconteceram, entre duas personagens principais, em  Memorial do Convento. Uma das personagens é Baltasar Sete-Sóis, que viera para Lisboa depois da guerra e, a outra, Blimunda, companheira de Baltasar, uma pessoa fora do comum, com um certo poder.

No poema da música, o sujeito poético mostra-se fraco e frágil de tanto lutar. Pode-se adaptar este sujeito poético a Baltasar, na medida em que a personagem chega a Lisboa, numa barqueta, ao atravessar o rio Tejo, fraco, exausto e ferido («fraco de lutar») de uma guerra que durou vários anos. Depois da chegada a Lisboa, Baltasar ficou uns tempos, até poder regressar a Mafra, terra onde nascera. Passou várias noites ao relento, noites longas, em que as histórias macabras eram as conversas mais pretendidas. Conheceu gente de diferentes tipos, cada um com o seu estilo de vida e as suas histórias.

Quando a mãe de Blimunda foi condenada a ser açoitada em praça pública, Baltasar esteve presente, e foi aí que Blimunda o conheceu, a pedido da sua mãe. Foi nele que viu que a filha iria ficar em paz e iria ser bem cuidada («pede-me a paz», «dou-te o mundo»). Depois de se conhecerem, Blimunda levou Baltasar para sua casa, onde lhe deu de comer e abrigo. Baltasar aceitou o convite da jovem e aceitaram unir-se. Eram um casal livre, sem compromissos e muito feliz, que deu entrada a um novo ciclo na sua vida.

Deitaram-se juntos, juntaram-se os corpos, consumou-se o amor. O sangue da virgindade escorreu. Blimunda desenhou uma cruz no peito de Baltasar, na zona do coração, e foi como um significado de união e de eternidade («Sangue», «Ardente», «Fermenta e torna», «Aos dedos de papel»).

Depois de tais atos, quando acordaram, Baltasar reparou que Blimunda comia pão de manhã, de olhos fechados. Aquela atitude não era normal de se ver, o que lhe despertou curiosidade. Vendo aquele ato todos os dias, Baltasar ganhou coragem para perguntar a Blimunda por que razão fazia aquilo. Ela explicou-lhe que, se estivesse de jejum, veria as pessoas por dentro e, por essa razão, tinha feito a promessa de que nunca olharia Baltasar por dentro («Quero que saibas», «Que ainda não te disse nada»).  De início, foi difícil para Baltasar acreditar, mas Blimunda demonstrou-lho ao dizer o que via nas pessoas, descobrindo uma moeda numa parede, para que ele acreditasse.

Baltasar e Blimunda, ele maneta de uma mão, substituída por um gancho de ferro, ela com o poder de ver as pessoas por dentro e de recolher vontades, foram os escolhidos para dar início a um projeto do padre Bartolomeu Lourenço: a construção de uma máquina voadora, um género de pássaro gigante, que realizaria o seu sonho e os levaria ao céu.

«Se eu fosse um dia o teu olhar», «e tu as minhas mãos também», «E tu perfume de ninguém» são versos que representam o amor entre Baltasar e Blimunda, mostrando a sua união, e por se completarem tanto um ao outro. Fica a pairar a questão: o que faria Baltasar se um dia tivesse o olhar de Blimunda? E o que faria Blimunda se um dia tivesse as mãos de Baltasar, tendo ele um gancho no braço esquerdo?

 

Marta



Marta (Bom-) || “A Thousand Years” (Christina Perri) / ?


Ao princípio, quando vemos o título da música – “A Thousand Years/ Mil Anos”– podemos achar difícil que esta se enquadre na obra Memorial do Convento, de José Saramago. Porém, de certa forma, a música transmite a intensidade de um amor que podemos comparar ao de Blimunda e Baltasar. O amor entre estes os dois jovens surgiu de uma visão da mãe da jovem, no momento em que estava a ser julgada pelo facto de ser considerada uma feiticeira, o que na época era fortemente mal visto pela Inquisição (“e aquele homem quem será, tão alto, que está perto de Blimunda e não sabe, ai não sabe não, quem é ele, donde vem, que vai ser deles, poder meu, pelas roupas soldado, pelo rosto castigado, pelo pulso cortado, adeus Blimunda que não te verei mais”, p.69).

Assim, tanto na obra como num excerto da música – “How can I love when I'm afraid to fall (Como posso amar quando eu estou com medo de me apaixonar) / But watching you stand alone (Mas ao ver-te na solidão) / All of my doubt suddenly goes away somehow (Todas as minhas dúvidas se vão de repente de alguma maneira)” podemos ver que há uma semelhança entre a relação entre os jovens da obra com a relação que a cantora expressa na sua música, pois em ambos os casos se mostra a insegurança das raparigas (no caso de Blimunda, o facto de esta ficar sozinha no mundo, sem a sua mãe que fora exilada e que lhe transmite que vai ser feliz com Baltasar, que está ao seu lado e que nunca vira antes contudo esta insegurança e medo irão desaparecer devido à calma que a mãe lhe transmite através do pensamento).

Ao longo da obra, vemos também que o sujeito poético caracteriza o amor entre Blimunda e Baltasar como um amor diferente de todos os outros da época, pelo facto de estes se ajudarem e apoiarem mutuamente, de partilharem a vida, por mostrarem que não é necessário ter-se filhos para poderem ser felizes, e igualmente, por juntos ajudarem o Padre Bartolomeu Lourenço a realizar o seu sonho de voar, ao construírem a passarola (Baltasar colaborava com o seu saber prático e Blimunda com o seu poder de ver por dentro, recolhia vontades humanas de modo a fazê-la voar. Baltasar e Blimunda nunca se largaram, iam juntos para todo o lado (como Mafra, Lisboa e S. Sebastião da Pedreira).

Porém, no desenrolar da história surgiram alguns percalços tal como na história de amor da música. Ambas as heroínas perderam o seu amado. Baltasar desapareceu depois de ter voado na passarola e de esta ter dado problemas quando ele foi a Monte Junto para a reparar da queda que havia sofrido. “Não tardes por lá, Baltasar, Dorme tu na Barraca, posso chegar já de noite, mas, se houver muito que consertar, só venho amanhã, Bem sei, Adeus Blimunda, Adeus Baltasar” (p. 461): estas foram as últimas palavras do casal antes de Baltasar ter desaparecido por nove anos. Durante estes anos todos, Blimunda não descansou enquanto não o encontrou, andou dias e dias e mal se alimentava. Ao fim dos nove anos, foi encontrá-lo, já sem vida, na fogueira da Inquisição pois fora preso e condenado por ter construído a passarola e ter voado nela, o que na época não era aceite pois defendiam que o Homem não nasceu para voar (“A queima já vai adiantada, os rostos mal se distinguem. Naquele extremo arde um homem a quem lhe falta a mão esquerda”, p. 493).

A obra termina com Blimunda a recolher a vontade de Baltasar, o que faz com que eles não se separem e o seu amor não acabe (“E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda”, p. 493), tal como acontece na música, em que o sujeito poético promete nunca deixar de amar o seu companheiro (“I'll love you for a thousand more/ Eu vou amar-te por mais mil anos”).

 

Miguel G. (aka Bruno)



(Bruno) Miguel G. (Suficiente+) || «Love of My Life» (Freddie Mercury/Queen), A Night at the Opera, 1975 // José Saramago, Memorial do Convento, 13.ª edição, Lisboa, Caminho, 1984, pp. 53-56, 332-357

Pelo título da canção podem já perceber que irei abordar a história de Sete-Sóis e Sete-Luas, heróis do pé descalço. Presente em todos os capítulos, à excepção dos três primeiros, a história do casal Baltasar e Blimunda constitui o nó principal que une os fios da intriga. Protagonista de entre as figuras populares, Sete-Sóis e Sete-Luas, alcunhas simbólicas que permitem observar que se completam e relembrar que a alcunha de Blimunda foi dada pelo Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, personagem que, para além de apoiar a relação, era grande amigo dos dois. O casal popular vive uma história exemplar de amor, aventura e realização humana que nem a inquisição pode quebrar.

Baltasar começa por ser um soldado da guerra de sucessão espanhola, na qual fica maneta, enquanto Blimunda é filha de Sebastiana Maria de Jesus, que é culpada para a inquisição de feitiçaria e de judaísmo disfarçado, essa também desenvolve poderes metafísicos, consegue ver o interior das pessoas e as suas vontades. A sua história começa da procissão do auto-de-fé, onde a mãe, desfila, a caminho do degredo para Angola. Devido aos seus poderes Sebastiana consegue falar com a filha. Desse diálogo resulta a vontade de Blimunda conhecer Baltasar pois sua mãe interroga-se «e aquele homem quem será, (..) e não sabe, ai não sabe não, quem é ele, donde vem que vai ser deles, poder meu(..)» (p. 53) «Por que foi que perguntaste o meu nome, e Blimunda respondeu, Porque minha mãe o quis saber e queria que eu o soubesse (...)»(p. 56).

Após terem-se conhecido nunca mais se afastaram um do outro, numa paixão imensa que os atraiu logo ao primeiro olhar, que faz Blimunda entregar-se por completo a Baltasar, («E agora, Se não tens onde viver melhor, fica aqui, Hei-de ir para Mafra, tenho lá família, Mulher, Pais e uma irmã, Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires, Por que queres tu que eu fique, Porque é preciso, Não é razão que me convença, Se não quiseres ficar, vai-te embora, não te posso obrigar, Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que não o farás e já o fizeste, Não sabes de que estás a falar, não te olhei por dentro, Se eu ficar, onde durmo, Comigo», p. 56). Promessa que Blimunda sempre cumpriu. O seu poder metafísico é outra prova de amor, entre muitas, pois Blimunda conta a Baltasar o seu poder, um segredo íntimo que poucos conheciam. Baltasar não acredita no início mas Blimunda prova-o, com receio de perdê-lo. Ele aceita pois ama-a mais que tudo.

O enredo de Memorial do Convento faz que Baltasar tenha que se despedir de Blimunda para ir a Monte Junto arranjar a passarola (invenção científica que resulta entre o trabalho do Padre com o casal, que por sua vez, os fez voar): «é somente Baltasar que vai ao Monte Junto remediar os estragos do tempo, não é mais que Blimunda impossivelmente tentando que o tempo pare.» (p. 332). Mas Baltasar não volta e Blimunda procura-o em todo o lado, sem descanso, sem parar («Bring it back, bring it back, don't take it away from me», «Because you don't know what it means to me»; «Traga-o de volta, traga-o de volta, não o tire de mim», «Porque você não sabe o quanto é importante para mim»).  Tanto Blimunda como o sujeito poético da canção sofrem pela perda de alguém importante, alguém que faz com que a sua vida ganhe sentido, já que, sem ela não tem importância viver.

A dramática procura de Baltasar por Blimunda dura nove anos, o seu reencontro é cruel, realiza-se num auto-de-fé, ironicamente é onde se encontraram pela primeira vez. Baltasar irá ser queimado pela inquisição. Blimunda chora desesperadamente. A sua vida é Baltasar, ela durante nove anos, não viveu, sobreviveu com a esperança de reencontrá-lo («A queima já vai adiantada, os rostos mal se distinguem. Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda. (..) E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.», p. 357).

Ambos os textos (Memorial e canção dos Queen) falam de um amor, o amor da sua vida, que nunca irá morrer, que nunca se irá esquecer, um amor que sobrevive a tudo, até à própria morte («How I still love you, I still love you», «Love of my life»,«Love of my life»; «Como eu continuo te amando, eu continuo te amando», «Amor da minha vida», «Amor da minha vida»).

 

Pedro F.



Pedro F. (Bom(+)) || “A cor” (Alexandre Carlo/Alexandre Carlo), Povo Brasileiro, 1999 // José Saramago, Memorial do Convento, 13.ª edição, Lisboa, Caminho, 1984

Em “A cor”, de Natiruts, consegui aperceber-me de algumas possíveis analogias com Memorial do Convento, de José Saramago, nomeadamente na relação entre os protagonistas da obra, Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas, e a relação descrita pelo sujeito poético da canção.

Logo os dois primeiros versos (“Queria tanto te falar/Das angústias desse meu viver”) poderiam ser referências à história de Baltasar, que perdeu a mão esquerda em serviço militar ao país, em Espanha. Contrariando todas as expectativas, apetrecha a mão com um gancho que lhe será muito útil no dia-a-dia, para sua defesa, e nos trabalhos que desempenha, como talhante, nas obras do Convento e da passarola (“A força que afugenta as ideias/E tenta nos impedir de ser mais/Então a gente põe o pé na estrada/Coragem não se sabe de onde vem”). Curiosamente, a seguir a este último verso, o coro da banda canta que a coragem “vem do céu”, objetivo que Baltasar e Blimunda, juntamente com o padre Bartolomeu, querem atingir com a construção da passarola.

Durante a obra, o casal e Bartolomeu de Gusmão tentam manter o seu projeto o mais discreto possível e mostram-se preocupados com a possibilidade de serem procurados pela Inquisição pelo facto de, por um lado, Blimunda usar o seu segredo de ver o interior das pessoas para recolher as vontades que farão a passarola voar, podendo ser condenada por bruxaria, e, por outro, o padre Bartolomeu não abdicou do seu espírito crítico, anti fanatismo católico e bruxaria na construção do objeto voador (“Mas ela sabe muito bem dos seus segredos/E reconhece que isso tudo pode ter um fim (pode terminar) / Mas ela busca a perfeição do espelho”).

Ao contrário do que era comum no século XVIII, Baltasar e Blimunda ficaram juntos quase de forma instantânea, depois de se conhecerem no Rossio, e não mais se separaram (“Mas se ela te beijou e disse que vai ficar/Isso são mistérios não se pode explicar”).

Depois da aventura em Lisboa, Baltasar e Blimunda rumam a Mafra onde ela conhece os pais e a irmã do parceiro, aproveitando para ali se estabelecerem devido ao trabalho garantido pelas obras de construção do Convento de Mafra. Baltasar, de vez em quando, sai por um dia inteiro em direção à Serra de Monte Junto para verificar o estado da passarola e fazer as reparações necessárias, prometendo à mulher que voltará, são e salvo (“E deixa a promessa de um dia voltar/Para os braços daquela que te quer bem”).

O sonho de voar nos céus era algo tido por todos como impossível mas que os fazia pensar mais além, para lá de tudo o que já tinham presenciado ou sequer sonhado. Foi a ilusão de conseguir algo nunca antes feito e a crença em ultrapassar todas as dificuldades que os guiou e motivou a tantos esforços com um único objetivo: voar (“E vê nos astros coisas que não se pode pensar (ela foi aos céus)”).

 

Salomé



Salomé (Bom) || “Tears of an Angel” (RyanDan / Dan Kowarsky, Ryan Kowarsky, Sandy MacKinnon), Tears of an Angel, 2007 // José Saramago, Memorial do Convento, 53º edição, Lisboa, Caminho, pp. 492-493

A música de RyanDan, “Tears of an Angel” (“Lágrimas de um Anjo”), encaixa-se perfeitamente no episódio final da obra Memorial do Convento, de José Saramago, o episódio em que Blimunda reencontra Baltasar depois de tanto o procurar — durante longos e duros nove anos.

O último parágrafo da obra foi o que mais me marcou e é, sem dúvida, um excerto que nunca vou esquecer.

Interpretei a letra da música que escolhi como se fosse os pensamentos e emoções que Blimunda quis transmitir a Baltasar antes de este morrer queimado no Auto-de-Fé. Blimunda estava em jejum “Não comia há quase vinte e quatro horas” (p. 192) ao chegar a S. Domingos, local e momento em que reconheceu o corpo queimado de Baltasar e a sua vontade “E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo” (p. 493) ao ver “um homem a quem falta a mão esquerda” (p. 493) e é nesse preciso momento que podemos encaixar o verso “Cover my eyes/Cobre os meus olhos”. É curiosa a analogia que podemos fazer quanto aos versos “It can’t be true/Não pode ser verdade”; “That I’m losing you/Que te estou a perder” e “The sun cannot fall from the sky/O sol não pode cair do céu”, já que Blimunda estava a perder Baltasar Sete-Sóis, sol de nome e de adjetivo, uma vez que ele era a luz da sua vida.

Através dos versos da música “Can you hear heaven cry?/Consegues ouvir o céu chorar?” e “Tears of an angel/Lágrimas de um anjo“, imediatamente recordei o passo em que o padre Bartolomeu Lourenço afirma que na trindade terrestre Blimunda é o espírito “É a trindade terrestre, o pai, o filho e o espírito santo (…). Quanto ao espírito, Esse seria Blimunda, talvez seja ela a que mais perto estaria de ser parte numa trindade não terrenal” (p. 230) , o anjo que chora com a morte de Baltasar.

É nos versos “I won’t let you fly/Eu não te deixarei voar”; “I won’t say goodbye/Eu não te direi adeus” e “I won’t let you slip away from me/Eu não te deixarei escapar de mim“ que está o momento da obra de José Saramago que mais me emocionou. Uma frase simples, não muitas palavras, mas com um imenso significado que determinou toda a história. O momento em que Blimunda “olha por dentro de Baltasar” (mesmo depois de lhe ter prometido que nunca o faria na primeira noite em que dormiram juntos “Juro que nunca te olharei por dentro”, p. 74) e chama a sua vontade, que a ela pertence “Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda” (p. 493).

À estrofe que se segue ao segundo refrão, com os versos “So hold on/Então espera”; “Be strong/Sê forte”; “Everyday on we’ll go/Todos os dias iremos”; “I’m here, don’t be afraid/Estou aqui, não temas!” e “Little one, don’t let go/Pequenino, não partas!”, acabo por associar os pensamentos que Blimunda teve para com a vontade que já se encontrava na sua posse e não para com o corpo terrestre, queimado e sofrido do seu homem, Baltasar Sete-Sóis.

 

Pedro S.



Pedro S. (Muito Bom) || «I don’t wanna miss a thing» (Diane Warren / Aerosmith), Armageddon Soundtrack, 1998 // José Saramago, Memorial do Convento,13ª edição, Lisboa, Caminho, 1984

Traduzido, o título da música significa «Não quero perder nada». Esta canção fala-nos dum amor enorme, em que nada é melhor que a cara-metade do eu, nada se compara à pessoa que ama e ao que sente quando está com ela. Todos os segundos a seu lado fazem-no feliz como mais nada neste mundo consegue fazer.

Esta canção fala, portanto, dum amor verdadeiro e imensurável. É fácil perceber a ligação com Memorial do Convento. Nesta obra, temos um perfeito exemplo dum amor assim. Falo de Baltasar e Blimunda, cuja história de amor nos surpreende, por poder resistir a todas as provações, inclusivé à morte.

Este casal está presente em praticamente todos os capítulos da obra, à excepção dos iniciais, funcionando como ligação da intriga. Baltasar é um soldado da guerra da sucessão espanhola, que lhe tirou a mão esquerda, e trabalha na passarola e nas obras do Convento. Já Blimunda possui poderes sobrenaturais, que vão ser fulcrais quer para a construção da máquina voadora quer para a própria história de amor do casal, que permite que estes fiquem juntos para sempre.

Os dois conhecem-se num auto-de-fé, e é num auto-de-fé que se despedem. No primeiro, a vítima da Inquisição é Sebastiana Maria de Jesus, mãe de Blimunda, condenada ao degredo em Angola. A assistir estão Baltasar e Blimunda, bem como o padre Bartolomeu. É a partir deste momento que as personagens se unem, ainda sem saberem a importância que irão ter na vida um do outro (embora Sebastiana soubesse e tenha compelido a filha a falar com aquele homem). Após as apresentações, Baltasar segue Blimunda para sua casa, como que enfeitiçado, e acaba por ficar a viver com esta. O casal acaba mesmo por ser unido pelo padre Bartolomeu (embora duma forma pouco ou nada convencional).

Blimunda é uma mulher enigmática, que intriga Baltasar. Após grande insistência deste, Blimunda acaba por revelar a razão de tanto mistério: a sua capacidade de ver as pessoas por dentro, embora se apresente mais como uma maldição do que como um dom. É então que esta dá a Sete-Sóis uma das maiores provas de amor possíveis: promete nunca o olhar por dentro (o que demonstra o respeito que tem pelo seu marido e pela sua individualidade, mas também pela sua privacidade, uma vez que todos escondemos algo de todos os outros).

O casal acaba por adotar o sonho do padre, voar, e empenha-se na construção da passarola, escondida de olhares indiscretos (e do Tribunal do Santo Ofício) numa quinta em S.Sebastião da Pedreira, gentilmente cedida por D. João V.  Sete-Sóis e Sete-Luas (assim batizada por Bartolomeu). Estão juntos em tudo o que fazem, raramente separados. Juntos trabalham com o padre na construção da passarola e juntos recolhem pelas ruas de Lisboa as vontades necessárias a que o engenho possa elevar-se do solo e voar.

Este desejo (concretizado) das personagens de estarem sempre juntas evidencia a paixão ardente que os une, tal como apresentada na música («'Cause even when I dream of you /The sweetest dream will never do /I'd still miss you»/«Porque mesmo quando sonho contigo, o sonho mais doce não basta, teria à mesma saudades tuas»; «Every moment spent with you
Is a moment of treasure»/«Todos os momentos a teu lado são momentos de tesouro»)

Este amor que ambos sentem parece resistir à passagem dos anos, sem nunca esmorecer. Nem quando Baltasar desaparece Blimunda deixa de o amar, percorrendo o País à procura do seu marido ao longo de nove duros anos, reencontrando-o em Lisboa – o local onde tudo começou.

Quando, após este longo período de separação, o casal se reencontra, é novamente num auto-de-fé (como que num regresso ao ponto de partida), embora, desta vez, apenas Blimunda se encontre no meio da multidão: Baltasar é um dos supliciados ao fogo da Inquisição.

Ao ver o homem que amou ao longo de vinte e oito anos no mesmo local onde perdera a sua mãe, decide capturar a sua vontade, para conservar algo do seu marido, para não o perder eternamente, para permanecerem unidos mesmo após a morte. («And I just want to stay with you, in this moment forever, forever and ever»/«E só quero ficar contigo neste momento para sempre, para sempre»). Isto ocorre já no final do romance e tem uma forte carga trágica, embora acabe duma forma bela: «Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.». Baltasar estaria presente não de corpo mas através da sua vontade.

Baltasar e Blimunda personificam a verdadeira definição do que é o amor, por todos desejado: o amor capaz de resistir a todas provações – mesmo a separação e a morte, tal como a música, personifica o amor verdadeiro, que venceu os males da Inquisição, mas, sobretudo, o amor verdadeiro que venceu a própria morte.

 

João F.



João F. (Suf+/Bom-) || “O Capitão Fantástico” (Miguel Araújo), Cinco Dias e Meio, 2012 // ?

O Capitão Fantástico de Miguel Araújo pode e deve ser equiparado com Baltasar Sete-Sóis, protagonista na ação do romance, que é, de facto, uma das personagens mais pragmáticas do Memorial do Convento.

“Lá vai ele (…) sozinho nesse vai-e-vem”, saído da guerra da sucessão espanhola com a mão esquerda mutilada. Baltasar encontra grandes dificuldades para voltar a Lisboa, onde queria arranjar sustento para, futuramente, voltar para Mafra, a “estação Mãe”, onde tinha a família que ansiava notícias do corajoso soldado e que tanto poderia estar vivo ou morto.

Usando as palavras de Miguel Araújo e de Memorial, o revólver do Fantástico Baltasar era um gancho e um espigão, que encomendara: («pedia esmola em Évora para juntar as moedas que teria de pagar ao ferreiro e ao seleiro se queria ter o gancho de ferro que lhe havia de fazer as vezes da mão. Assim passou o Inverno, forrando metade do que conseguia angariar, acautelando para o caminho metade da outra metade, e entre a comida e o vinho se lhe ia o resto»). Era algo a que Sete-Sóis se acostumara dada a sua limitada condição física, mas que o sustentava, e era apenas isso que importava. Rapidamente ganharam utilidade e “atiraram com desdém”, ao matarem um dos dois homens que o tentaram assaltar entre Pegões e Aldegalega, na sua jornada até Lisboa.

E de barca, via-Tejo, Baltasar chega ao seu destino, Lisboa, onde se depara com o caos e confusão da cidade do comércio e do pecado. Entre peixeiras e freiras, encontra o seu velho amigo João Elvas, que o acolhe nuns «telheiros abandonados», no “frio e escuro e [n]o chão [que] é duro”. Conhece Blimunda, a sua alma gémea, no auto de fé da mãe da mesma, que o acolhe e se apaixona. Conhece também Bartolomeu, o padre, que abençoa a relação de amor à primeira vista, revela o segredo por trás da alcunha de o voador. Bartolomeu já conseguira voar anteriormente, por outras palavras: “Já foi à Lua e voltou”.

Neste diálogo, Baltasar é recrutado para a importante tarefa de construir uma passarola. Baltasar, incrédulo e ingénuo, afirma que o homem só voará quando nascer com asas e mostra-se inseguro quanto à tarefa dada: («Eu não sei nada, sou um homem do campo, mais do que isso só me ensinaram a matar, e assim como me acho, sem esta mão»), revelando o seu lado modesto e humilde. “E nisso que o Capitão Fantástico é até muito pragmático”, poderia Bartolomeu afirmar, que o encoraja: («Com essa mão e esse gancho podes fazer tudo quanto quiseres, e há coisas que um gancho faz melhor que a mão completa, um gancho não sente dores se tiver de segurar um arame ou um ferro, nem se corta, nem se queima, e eu te digo que maneta é Deus, e fez o universo.»). Sete-Sóis acaba por aceitar construir aquela passarola, que ditará a sua própria morte e a do padre Bartolomeu, dada a perseguição do Santo Ofício que considerava tal máquina bruxaria.

Despede-se o casal pela última vez: («Adeus Blimunda, Adeus Baltasar»), e Lá vai ele a mais de 1000; Sozinho num[a] fantástica [passarola]”. Baltasar abandona definitivamente o Monte Junto, começa assim o seu desaparecimento e inicia-se a jornada da sua cara-metade em busca do amado: “Ó se não é o Capitão outra vez em órbita; Será que volta ou não?”, pensaria Blimunda, que não hesita em procurá-lo por toda a parte, apesar de todas as árduas situações por que passara. Após nove anos, Blimunda finalmente encontra-o, num auto de fé, em Lisboa, a ser julgado: («Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.»).

 

Gonçalo



Gonçalo (Suf+/Bom-) || “Por quem não esqueci” (Sétima Legião / Sétima Legião), De um tempo ausente, 1989 // José Saramago, Memorial do Convento, 22.ª edição, Lisboa, Caminho, 1994, pp. 337-357

Como é sabido, a paixão de Blimunda e Sete-Sóis é como unha e carne, ou, se preferirmos, Sete-Luas é a mão esquerda de Baltasar, o que o complementa. Isto seria se no seu lugar não estivesse o espigão que acabara entalado entre costelas de um frade dominicano, como havia sido escrito em Évora.

Foi nessa noite que Blimunda iniciou a sua procura (“Procuro à noite, Um sinal de ti.”), caminhando, primeiramente, até ao esconderijo da máquina voadora onde só encontrou o alforge de Baltasar, após uma primeira noite em branco esperando-o (“Eu peço à noite, Um sinal de ti.”), que, sem ela o saber, antes da sua busca levantara voo – “ Em toda a noite não dormiu. Deitada na manjedoura, envolvida nas mantas que cheiravam a corpo e ao surro das ovelhas, abria os olhos para as frinchas do caniçado da barraca, por onde o luaceiro coava” (“Espero à noite, Por quem não esqueci.”).

A viagem que começou por ser pequena, até à serra do Barregudo, estendeu-se por todo o território português (“algumas vezes atravessou a raia de Espanha porque não via no chão qualquer risco a separar a terra de lá da terra de cá, só ouvia falar outra língua, e voltava para trás”) e acabou por durar nove anos.

“Ainda procuro, Por quem não esqueci.” Representa esse período da sua vida, em que Blimunda “vai perguntando se viram um homem com estes sinais, assim, e assim, o mais formoso do mundo“, sacrificando o corpo cansado das viagens por Sete-Sóis – “A sola dos seus pés tornou-se espessa, fendida como uma cortiça” –, na esperança de que este venha a iluminar novamente a sua vida (“Em nome de um sonho, Em nome de ti.”).

“Por sinais perdidos, Espero em vão.” Embora não tenha sido em vão a sua espera, a Voadora, assim apelidada pela “estranha história que contava” por onde passava, procurava sinais perdidos. Por onde passava, não havia memória de nenhum homem maneta, alto e de barba grisalha que “se entretanto a rapou, é uma cara que não se esquece”.

Finalmente “encontrou-o. Seis vezes passara por Lisboa, esta era a sétima”. Não foi em vão. Parece obra de feiticeiro(a) acabar onde tudo começou há vinte e oito anos – “Meteu-se pela Rua Nova dos Ferros, virou para a direita na igreja de Nossa Senhora da Oliveira, em direcção ao Rossio”.

“Por quem já não volta, Por quem eu perdi”: Baltasar está na fogueira, todas as lágrimas que Blimunda derramou de desejo de o ter de volta foram em vão, os sonhos e pensamentos das conversas que teriam quando se encontrassem – “Assim te encontro, Blimunda, Assim te encontro, Baltasar, Por onde foi que andaste em todos estes anos, que casos e misérias te aconteceram, Diz-me primeiramente de ti, tu é que estiveste perdido” – morreram. Apenas ficou a vontade de Sete-Sóis, que das estrelas se desviou (“Para que eu lembre, Que a noite tem fim.”). Assim como em Memorial do Convento, também nesta música se acaba onde se começou. Estes dois últimos versos citados remetem-nos para a última vontade recolhida no livro, que, interpretando a “noite” como vida, pertence a Blimunda.

 

Maria



Maria (Suficiente) || «All of me» (Dave Tozer/John Legend), Love in future, 2013//José Saramago, Memorial do Convento, 13.ª edição, Lisboa, Caminho, 1984

«All of me» lembra-me o amor vivido por Blimunda de Jesus e Baltasar Mateus, ou Sete-Luas e Sete-Sóis, pois representavam um amor puro («Loves all of you» - ama tudo em ti), desejado. Completavam-se, entregavam-se um ao outro, eram fiéis e amavam-se apesar de tudo. Blimunda possuía um poder mágico, conseguia observar o interior das coisas, o que, para Baltasar, era um enigma («What’s going o non that beautiful mind» - o que se está a passar nessa bela cabeça), pois tinha dificuldade em acreditar que tal coisa fosse possível. Mas aceitava-o, pois ele também não era perfeito fisicamente, era maneta da mão esquerda («All your perfect imperfections» - todas as tuas perfeitas imperfeições), que perdera numa guerra contra os espanhóis, acabando por ser expulso do exército.

Conheceram-se num auto-de-fé, em que Sebastiana, mãe de Blimunda, estava a ser julgada pela Inquisição, por ser suspeita de praticar feitiçarias. Nesse dia, Baltasar e Blimunda conheceram-se com a ajuda do padre Bartolomeu de Gusmão, que os apresentou. De seguida, foram para casa de Blimunda, onde esta deu a entender que o desejava (“(…) apesar do padre ter acabado primeiro de comer, esperou que Baltasar terminasse para se servir da colher dele (…)”). A partir desse momento Blimunda entregou-se por completo a Baltasar, alimentou-o, e convidou-o a ficar em sua casa, onde dormiram juntos e se envolveram («I’ll give my all to you» - Eu te darei o meu tudo).

O padre Bartolomeu de Gusmão foi bastante importante no relacionamento destas duas almas tão puras, pois apresentou-as e pediu-lhes ajuda na construção da passarola, a Baltasar com a sua bruta força e com a vantagem de no lugar da mão ter um gancho, e a Blimunda, que ficou encarregue de recolher as duas mil vontades que fariam a passarola voar. Acabou esta por o conseguir e ficar doente por ter visto o interior de tantas pessoas numa altura de peste. Ainda assim, mesmo doente, tornou possível o voo da passarola. Nessa altura, Baltasar, Blimunda e o padre Bartolomeu voaram pela primeira vez. A viagem prevista não correu da melhor maneira pois a passarola acabou por cair: o padre Bartolomeu desapareceu sem ter deixado rasto, Baltasar e Blimunda estão vivos e juntos. Frequentemente, Baltasar ia averiguar a situação da passarola, na Serra de Montejunto, até que, certo dia, se perdeu.

«You’re crazy and I’m out of my mind» - Tu és louca e eu estou fora de controlo. Blimunda, receosa de ter perdido o seu grande e único amor, procurou-o durante nove anos sem parar, demonstrando todo o seu amor, devoção e persistência. Ao fim de nove anos, sem nunca ter parado de o procurar, (“(…)Não comia há quase vinte e quatro horas. Trazia algum alimento no alforge, mas, de cada vez que ia levá-lo à boca, parecia que sobre a sua mão, outra mão se pousava, e uma voz lhe dizia, Não procura comas(…)”). Blimunda não comeu e continuou à procura, até que chegou a um auto-de-fé, e viu Baltasar a ser queimado. Nesta altura, Blimunda olhou-o por dentro pela primeira vez (“(…) E uma nuvem fechada, está o centro do seu corpo, Então Blimunda disse, Vem”). E, assim, Blimunda e Baltasar continuaram um só, sem nunca mais se separarem e o seu amor permaneceu eterno (“desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda”), demonstrando assim a sua grande paixão e cumplicidade, sem nunca lhe pôr um fim.

 

Mariana C.



Mariana C. (Bom(-)) || “The Man Who Can’t Be Moved” (Mark Sheehan/ The Script), The Script, 2008 // José Saramago, Memorial do Convento, 53.ª edição, Lisboa, Caminho, 1984, pp. 465-488

Em “The Man Who Can’t be moved” (o homem que não se pode mover), pode-se ver uma personagem que sente imensas saudades de uma rapariga, possivelmente a parceira de uma relação anterior, e a procura. No Memorial do Convento, temos situação semelhante com Blimunda e Baltasar. Quando Baltasar não regressou da sua viagem a Monte Junto, com o intuito de verificar a passarola, Blimunda ficou preocupada (“Em toda essa noite, Blimunda não dormiu”, p. 465). Decidiu ir procurá-lo, na manhã seguinte, a Monte Junto, mas sabia que “viria a encontrar deserto este lugar” (p. 470). Inicia, então, uma busca incessante pelo seu amor, indo a todo o lado procurá-lo (“Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar. Conheceu todos os caminhos do pó e da lama, … dois nevões de que só saiu viva porque ainda não queria morrer.”, p. 487).

Na canção, o eu procura, também, uma pessoa, só que, em vez de ir a todos os lugares ver se a encontra, volta ao local onde se viram pela primeira vez. Encontramos semelhanças com o caso de Blimunda no facto de o cantor dizer que vai ficar naquele local o tempo que for preciso e que vai lutar contra tudo e todos até ter de volta aquele de quem está à procura (“There’s someone I’m waiting for if it’s a day, a month, a year” / Estou à espera de uma pessoa, quer seja por um dia, um mês, um ano; “Gotta stand my ground even if it rains or snows”/ tenho de ficar aqui mesmo que chova ou que neve), que foi a atitude que Blimunda teve em relação a Baltasar, ao não desistir de o procurar.

“Onde chegava, perguntava se tinham visto por ali um homem com estes e estes sinais, a mão esquerda de menos, e alto como um soldado da guarda real, barba toda e grisalha…” (p. 487) – Blimunda, onde quer que passasse, fazia uma descrição física de Baltasar às pessoas, na esperança de estas o terem visto em algum sítio. O sujeito poético também pergunta, às pessoas que passam na rua, se viram a rapariga de quem está à procura só que, em vez de lhes fazer uma descrição física, entrega-lhes uma sua foto, fruto de tecnologias de que Blimunda não podia usufruir no seu tempo (“Got some words on cardboard, got your picture in my hand/ saying: if you see this girl can you tell her where I am”/ Tenho algumas palavras num pedaço de cartão, tenho a tua fotografia na minha mão e digo: se virem esta rapariga, podem dizer-lhe onde estou).

Achavam Blimunda maluca (“Julgavam-na doida…”, p. 488) e era assim que o cantor se sentia também (“I know it makes no sense, but what else can I do”/ sei que não faz sentido, mas que mais posso fazer) - mas Blimunda “é apenas uma desgraçada mulher que perdeu o seu homem, levado por ares e ventos, que faria todos os bruxedos para que ele regressasse, mas desses não conhece nenhum” (p. 473), e não se sentia preparada para desistir dele quando ele era a pessoa mais importante da sua vida - tal como o eu lírico não queria desistir de procurar a rapariga (“How can I move on when I’m still in love with you”/ Como é que posso avançar se ainda estou apaixonado por ti).

Ironicamente, após nove anos de buscas, Blimunda encontra Baltasar no sítio onde o conheceu, o que podemos relacionar com a música, visto que o cantor decidiu logo, como estratégia para procurar a rapariga, ficar no local onde se tinham conhecido, o que teria sido, também, uma boa estratégia para Blimunda, porque esta acabou por encontrá-lo aí (no Auto de Fé).

 

Filipa



Filipa (Suficiente)|| «I Believe I Can Fly» (Robert Kelly/Robert Kelly), R. , 1996 // José Saramago, Memorial do Convento, 49.ª edição, Lisboa, Caminho, 1994, pp. 81-89

A música “I Believe I Can Fly/ Eu acredito que posso voar” lembra-me a obra de José Saramago Memorial do Convento, mas, mais propriamente, o sonho de voar do Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão. Na linha de ação que corresponde a esse sonho, Bartolomeu, com a ajuda de Baltasar e Blimunda, faz tudo para construir uma máquina “a passarola”, que o faça voar.

Assim, quer na obra quer na canção o cantor e a personagem possuem o mesmo acreditar de um dia poderem voar. Na música o eu poético diz “If I just believe it, there’s nothing to it”(“E se eu só acreditar, nada poderá me impedir”); no romance, Bartolomeu afirma que “Assim como o homem, o bicho da terra, se faz marinheiro por necessidade, e por necessidade se fará voador” (p. 83).

O que faz também a relação próxima entre a canção e a obra é o facto de ambos – o eu lírico e Bartolomeu —, pensarem só no facto de poderem voar, pois, como se pode ver na canção, o cantor diz “I think about it every night and day” (“Penso nisto todos os dias e noites”), e, na obra, a concretização do sonho de Bartolomeu Lourenço ocupa uma grande parte, sendo a construção do convento e da passarola os dois centros de atenção dados pelo escritor. A construção da passarola é explicada ao pormenor e, seguidamente, pelo narrador, desde o papel até à sua construção propriamente dita.

Com isto, e apesar de ambos possuíram a mesma vontade, o eu lírico acredita só profundamente que um dia chegará a voar e que para isso apenas tem que acreditar (“If I just spread my wings, I can fly”/ “Se eu apenas esticar as minhas asas, eu posso voar”), ou seja, se ele apenas quiser, ele pode voar. Já o padre Bartolomeu Lourenço tenta construir algo que o faça voar e, com a ajuda de Baltasar e Blimunda, o primeiro faz um desenho, e o Padre dá-lhe o nome de Passarola, que representa basicamente algo parecido com uma ave, cujos materiais (velas, para cortar o vento; leme, para dirigir a passarola; proa e popa, para caso falta de vento; e asas, para equilibrar a barca voadora), o poderão fazer voar (“acreditou que todos aqueles materiais, juntos e ordenados nos lugares competentes, seriam capazes de voar”, p.87).

O que distingue também a canção da obra é o facto de na canção apenas uma pessoa sonhar voar e acreditar nisso, pensando que apenas a abrir os braços o poderá fazer “Spread my wings and fly away” (“Abrir as minhas asas e voar”), enquanto, na obra, Baltasar segue também as pisadas de Bartolomeu Lourenço e acredita que talvez com a construção da passarola, poderá voar, apesar de não ter a mão esquerda (“Se Deus é maneta e fez o universo, este homem sem mão pode atar a vela e o arame que hão-de voar”, p.89).

 

Catarina



Catarina (Suficiente (+)) || «All of me» (John Legend / John Legend), Love in the Future, 2013 // ?

A música «All of me» («Tudo de mim») do cantor John Legend pode associar-se à obra Memorial do Convento, devido ao amor que Baltasar e Blimunda sentem um pelo outro, o amor verdadeiro e eterno.

No refrão, «Give your all to me, and I’ll give my all to you» / «Dá tudo de ti que eu darei tudo de mim» pode simbolizar o facto de Blimunda e Baltasar serem considerados um só e mesmo sendo Baltasar maneta e Blimunda possuir um dom considerado raro, continurem a amar-se da forma como são («Love your curves and all your edges, all your perfect imperfections» / «Amo todas as tuas curvas e arestas, todas as tuas perfeitas imperfeições»).

Em «We’re both showing hearts, risking it all, though it’s hard» / «Estamos ambos a mostrar os nossos corações, a arriscar tudo, embora seja difícil» a letra pode representar o início do conhecimento do casal, quando Baltasar pergunta a Blimunda porque quer tanto ela que fique respondendo ela «Porque é preciso», revelando assim que não sabia o porquê, apenas que sentia que aquele seria o seu amor eterno. Baltasar não consegue perceber Blimunda e questiona-se sobre o que ela tanto esconde, perguntando até ao Padre Bartolomeu o porquê de o destino os ter juntado ("what’s going on in that beautiful mind, I’m on your magical mystery ride").

O verso «You’re my end and my beginning» / «És o meu início e o meu fim» pode-se também associar ao final da história, em que é o início, pois Blimunda vê Baltasar, prestes a ser morto, no sítio em que o conheceu, no auto-de-fé onde viu também morrer a sua mãe, retirando-lhe assim a sua vontade, para que possam ficar juntos “para sempre”.

Baltasar e Blimunda protegem-se bastante. Quando Blimunda teve de retirar as vontades dos homens em tempo de peste, para a realização da construção da passarola, sentindo-se mal de seguida, Baltasar ficou bastante preocupado, e nunca abandonaria a sua amada («The world is beating you down, I’m around through every move» / «O mundo está a mandar-te a baixo, eu estou por perto a ver cada movimento»). Blimunda, que esteve nove anos à procura de Baltasar, nunca perdeu a esperança, nem o amor que sentia, sendo que este foi até ao ultimo suspiro do casal: «You’re crazy and I’m out of my mind» / «És louco e eu estou fora de mim».

 



Sofia A.





Sofia A. (Suficiente+/Bom-) || «Solamente tú» (Pablo Albóran), Solamente tú, 2010 // José Saramago, Memorial do Convento, 25ª edição, Lisboa, Caminho, 1998, pp. 52-57


A música «Solamente tú», de Pablo Albóran, aborda o tema do amor, o que relacionei com o momento em que Baltasar e Blimunda se conhecem no auto de fé, quando Sebastiana, mãe de Blimunda, é condenada pela inquisição por ter visões («esta sou eu, Sebastiana Maria de Jesus, um quarto de cristã-nova, que tenho visões e revelações, mas disseram-me no tribunal que era fingimento», p. 52). Blimunda assiste a tudo com o padre Bartolomeu a seu lado, que a tenta acalmar e pede para que não fale mas, nesse momento, surge um homem perto dela e Blimunda vira-se para trás perguntando «Que nome é o seu, e o homem disse (…) Baltasar Mateus, também me chamam Sete-Sóis» (p. 53).


De regresso a casa, Blimunda chora pela sua mãe; no entanto, leva consigo o padre Bartolomeu e deixa que Baltasar também entre. Em «O Sete- Sóis, está calado, apenas olha fixamente Blimunda, e de cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na boca do estômago» (p. 55), mostra-se que Baltasar começa a descobrir o amor que sente por Blimunda tal como, na música, em «Tus ojos son destellos/ os teus olhos são brilhos» e «Haces que mi alma se despierte con tu luz/ Fazes com que a minha alma desperte com a tua luz», o eu se mostra apaixonado fazendo referência aos olhos da sua amada como sendo algo muito especial (como Baltasar se refere aos olhos de Blimunda).


Durante o jantar, o padre Bartolomeu entende o amor que une Baltasar e Blimunda que, mesmo só tendo trocado breves palavras, já se encontram apaixonados. Em «Aceitas para a tua boca a colher de que se serviu a boca deste homem, fazendo seu o que era teu, agora tornando a ser teu o que foi dele (…) declaro-vos casados» (p. 56), mostra-se que Blimunda o aceita como seu marido porque já sente um grande amor por ele. Podemos relacionar isto com a música, visto que o autor sente também um grande amor pela pessoa que ama, não querendo que ela saía da sua vida.


Blimunda pede a Baltasar que fique a viver em sua casa até ir para Mafra («Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires, por que queres tu que eu fique, porque é preciso», p. 56), Baltasar aceita ficar e demonstra o seu amor por Blimunda tal como o autor da música pela sua amada («Haces que mi cielo/ fazes com que o meu céu/ Vuelva a tener ese azul/volte a ter esse azul»). Ambos dão a entender que querem ser felizes, após o sofrimento por que passaram. Em «Y te entregaré mi vida/ e te entregarei a minha vida», podemo-nos reportar ao amor incondicional de Baltasar e do autor da música pelas suas amadas, com quem querem ter uma vida em comum, dando-lhes todo o valor que merecem.


Existe uma diferença entre o amor vivido em Memorial do Convento e o amor na música, já que o amor de Baltasar e Blimunda surgiu espontaneamente (« não disse uma palavra, não te toquei», p. 56), sem que tivesse havido uma conversa, e o amor referido na música («Con solo una caricia/ com apenas um toque») é um amor vivido e construído com tempo.

Já os versos «Que tu voz guarda un secreto/ que a tua voz tem um segredo», podemos relacioná-los com Memorial, pelo facto de Blimunda esconder um  segredo que só será desvendado mais tarde a Baltasar.

 


Mariana O.





Mariana O. (Bom(-)) || «Lanterna dos afogados» (Herbert Vianna), Multishow ao vivo – Maria Gadú, 2010 // José Saramago, Memorial do Convento, 50. ª edição, Lisboa, Caminho, 1994, pp. 466-493


«Quando a noite desceu completamente, acabaram-se os peregrinos, a estas horas já Baltasar não virá, ou chegará tão tarde que o receberei deitada, ou então estará cá amanhã», Blimunda começará, certamente, a sentir o “poço” fundo e escuro que acompanha o anoitecer de um dia farto de procura e súplica. No contexto de  Memorial do Convento, é-nos imposta a própria dor e angústia, sentida desde o início, que acompanha a personagem após diversos acasos e maus jeitos. «Lanterna dos afogados» fará a ligação, ainda que de forma mais poética, da trajetória traçada pelo autor, a Blimunda, que se depara sozinha, afogada, numa lanterna sem fim.


Neste caso, a função do leitor é a de, através de um sentimento de compaixão, e até pena, para com a personagem Blimunda, tentar encontrar essa luz que espera ocupar as últimas páginas de uma história interminável. O pormenor mais inimaginável situa-se nessa mesma procura, «Há uma luz no túnel dos desesperados / Há um cais de porto pra quem precisa chegar», que acabará por conferir a Blimunda importância chave no desenrolar dos últimos capítulos da obra. Para a mesma, a mágoa permanece juntamente com o desaparecimento de Baltasar, aquele que é a “lanterna” no meio dos “afogados” que esperam por uma réstia de luz, (neste caso, Blimunda e os próprios leitores).


É-nos difícil distinguir um momento objetivamente mais importante durante essa mesma procura, ainda que no momento final – com a morte de Baltasar Sete-Sóis – consigamos dar essa procura como finita. Ainda assim, para quem procura, a luta da espera acaba por se tornar ainda mais importante, contradizendo a ênfase que nos é dada no final da obra. Na verdade, Blimunda sofre da espera e da momentânea descrença, isto porque «Baltasar prometeu» e a sua palavra de Homem seria tão valiosa que mereceria cada ano de espera. O único interesse seria o engano da desistência e, assim sendo, «não se sentou Blimunda para comer, ia andando e mastigando». «E são tantas marcas que já fazem parte / Do que sou agora, mas ainda sei me virar» – será esta a postura de uma mulher que espera o retorno em vão do seu homem? Porque em vão ela será, mas mais em vão seria se a mesma não soubesse encontrar-se e encontrar em si forças para se virar e fazer cumprir o seu amor.


Em momento algum nos é dito que o poder de Blimunda, na verdade, é o seu amor incomparável por Baltasar, mas terá sido isso que os terá unido naquele dia triste que foi o da condenação de sua mãe, Sebastiana de Jesus. Seu amor era maior que qualquer passarola, ou noite sem traços da passagem de uma lanterna salvadora: «acreditava confusamente que o encontraria no dia seguinte, que portanto não ganhava nada em procurá-lo hoje» e assim era, e assim se deu, que nem o olhar mais cansado e a expressão menos esperançosa lhe ditaria o caminho de volta para casa sem a visão do brilho dos olhos do seu Baltasar «levado por ares e ventos».


Se existem noites mais escuras «é uma noite longa» e dias menos apetecíveis que assim vão passando «pra uma vida curta», nem mil frades despojados da humildade e do respeito, nem mil momentos de franqueza, tornariam a caminhada mais lenta, porque a escuridão é muita mas a luz dos desesperados é maior e «Assim acontece nas grandes esperas».

Tornava o sol, tornava a lua, tornava a dor, tornava a esperança e assim era a sua boa viagem, boa porque tinha o propósito de o encontrar, «basta poder te ajudar / vê se não vai demorar». Não será despropositado dizer que tanta era a fé de Blimunda, tanta era a fé daqueles que nela acreditavam, que Baltasar se apressara a fazer cumprir a sua promessa. Ele estaria realmente na «Lanterna dos afogados» e não tardava a súplica para que Blimunda, e só Blimunda, o ajudasse a cumprir aquele que foi o último traço de amor entre ambos. Existirá certamente uma lanterna em que ambos se encontrarão afogados, no escuro, no silêncio, na noite dos desesperados. Aquele seria o «cais do porto» em que ambos esperariam um ao outro, «mas já não importa», «desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.

Por vezes, nem todas as lanternas salvam um amor de um afogamento, mas promessas, essas, até a mais ínfima luz atravessa.

 



Daniel





Daniel (Suficiente(-)) || «A Thousand Years» (Christina Perri ft. Steve Kazee/ Christina Perri), A Thousand Years, 2011 // José Saramago, Memorial do Convento, Linda-a-Velha, Biblioteca Visão, 2000, ?



A história de Sete-Sóis e Sete-Luas, os heróis do pé descalço, quase presentes em todos os capítulos, à excepção dos três primeiros, constitui o nó principal da intriga. Protagonistas, as figuras populares de Sete-Sóis e Sete-Luas (alcunhas simbólicas) transmitem uma mensagem profunda, pois este casal vive uma história de amor, aventura e realização humana que nem a fogueira inquisitorial destrói. Baltasar e Blimunda percorrem meio mundo, separadamente ou em conjunto, no anseio de um olhar, de uma busca, de uma alternativa, de uma satisfação.



A apresentação de Baltasar começa no Cap. IV (p. 26) «Este que por desafrontada aparência, sacudir da espada e desparelhadas vestes, ainda que descalço, parece soldado, é Baltasar Mateus, o Sete-Sóis.».


Ao contrário de Baltasar, a apresentação de Blimunda é feita em monólogo, por sua mãe (Sebastiana Maria de Jesus), no Cap. V (p. 37): «ai, ali está, Blimunda, Blimunda, Blimunda, filha minha, e já me viu, e não pode falar, tem de fingir que não me conhece ou me despreza, mãe feiticeira e marrana ainda que apenas um quarto, já me viu, e ao lado dela está o padre Bartolomeu Lourenço, não fales, Blimunda, olha só, olha com esses teus olhos que tudo são capazes de ver». Foi também a mãe de Blimunda a dar o primeiro passo da relação de Baltasar e Blimunda («e aquele homem quem será, tão alto, que está perto de Blimunda e não sabe, ai não sabe não, quem é ele, donde vem que vai ser deles, poder meu, pelas roupas soldado, pelo rosto castigado, pelo pulso cortado» (p. 37).

É neste auto de fé que começa a relação de Baltasar e Blimunda («The day we met; Frozen I held my breath / No dia que nos conhecemos; Congelei e prendi a minha respiração») com uma simples pergunta: «Que nome é o seu, e o homem disse, naturalmente, assim como reconhecendo o direito de esta mulher lhe fazer preguntas, Baltasar Mateus, também me chama Sete-Sóis» (p. 37). Num momento tão dramático como o da perda da mãe, Blimunda estava sensível e insegura; contudo, encontra essa segurança em Baltasar («Right from the start; I knew it I found the home for my; Heart beats fast; But watching you stand alone; All of my doubt goes away somehow/ Desde o início; Eu sabia que tinha encontrado uma ‘casa’ para o meu; Coração exausto; Mas ao ver-te sozinho; Todas as minhas dúvidas desaparecem»).

Os anos passam e Baltasar descobre o segredo de Blimunda e apresenta-a à família. Enfim, passam por mil e uma aventuras, constroem a passarola em conjunto com o padre Bartolomeu Lourenço e chegam a voar na mesma.

Um dia, na primeira tentativa de busca de Baltasar — desaparecido depois de ter ido verificar a passarola —, Blimunda depara-se com um franciscano que tenta satisfazer os seus desejos mas que é esfaqueado por Blimunda, e acaba por morrer.

Nove anos passaram e Blimunda continua a sua busca persistente a Baltasar, o seu amor (cap. XXIII, pp. 252 e 253): «Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar», «Nove anos procurou Blimunda. Começou por contar as estações, depois perdeu-lhes o sentido. Nos primeiros tempos calculava as léguas que andava por dia, quatro, cinco às vezes seis, mas depois confundiram-se-lhe os números, não tardou que o espaço e o tempo deixassem de ter significado, tudo se media em manhã, tarde, noite, chuva, soalheira, granizo, névoa e nevoeiro, caminho bom, caminho do mar, ribeira de rios, e rostos, milhares e milhares de rostos, rostos sem número que os dissesse, quantas vezes mais os que em Mafra se tinham juntado, e de entre os rostos, os das mulheres para as preguntas, os dos homens para ver se neles estavam a resposta, e destes nem muito novos nem os muito velhos, alguém de quarenta e cinco anos quando o deixamos além no monte junto quando subiu aos ares para sabermos a idade que vai tendo basta acrescentar-lhe um ano de cada vez, por cada mês tanta rugas, por cada dia tantos cabelos brancos.». Até que, finalmente, dá-se o último encontro entre Blimunda e Baltasar, um golpe no coração de Blimunda (p. 254). «São onze os suplicados. A queima já vai adiantada, os rostos mal se distinguem. Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda. Talvez por ter a barba enegrecida, prodígio cosmético da fuligem, parece mais novo. E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda» («And all along I believed I would find you; Time has brought your heart to me; I have loved you for a thousand years; I'll love you for a thousand more /E todo este tempo eu acreditei que te iria encontrar; O tempo trouxe o teu coração até a mim; Eu amar-te-ei milhares de anos; Amar-te-ei por milhares de anos»), assim se comprovando que, nesta história,  vence o milagre do amor.

 


Aurélio





Aurélio (Bom-) || «More Than Words» (Nuno Bettencourt / Gary Cherone), Extreme II: Pornograffitti, 1990 (Interpretado por Diogo, Factor X, Gala 06) // José Saramago, Memorial do Convento, 48.ª edição, Lisboa, Caminho, 2002, pp. 30-50


«More Than Words» ou, em português, «Mais que palavras» será o título perfeito para descrever a relação de Baltasar e Blimunda ao longo da obra. O eu lírico da música tenta mostrar-nos o efeito que o amor acaba por ter nele e diz-nos como não são necessárias palavras para demonstrarmos sentimentos. Precisamos apenas de senti-lo; sem sequer ser preciso falar.


Vou começar esta espécie de confronto, logo no início da história das duas personagens principais do Memorial. Quando Baltasar e Blimunda se conhecem, é transmitido ao leitor um clima de atracão demasiado forte (''Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, está calado, apenas olha fixamente Blimunda, e de cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na boca do estômago’’). Quando terminado o auto de fé em que a mãe de Blimunda morre, esta sente que precisa de estar com Baltasar e acaba por convidá-lo para ir a sua casa sem sequer ter de falar (''e quando Blimunda chegou a casa deixou a porta aberta para que Baltasar entrasse''). E é esta também a mensagem mais presente no primeiro verso da música que escolhi (''Saying I love you / Is not the words I want to hear from you'' // '' Dizer que te amo / Não são as palavras que te quero ouvir dizer''). Baltasar já se sentia atraído por Blimunda, mesmo sem saber se o sentimento era recíproco, e mesmo sem saber para onde esta o levava — pois nada lhe fora dito — seguiu-a incondicionalmente.


A música segue quase literalmente o caminho amoroso de ambos. Mais à frente, na obra, temos a promessa de Blimunda a Baltasar de que nunca o olharia por dentro (''Juro que nunca te olharei por dentro [...] Não sabes de que estás a falar, não te olhei por dentro...'') e, tal como na música, Baltasar pergunta-se qual terá sido a espécie de ''feitiço'' que Blimunda lhe deitara ao coração para o conseguir dividir entre a família e ficar com ela (‘’What would you do if my heart was torn in two? / More than words to show you feel /That your love for me is real'' // ''O que farias se o meu coração fosse partido em dois / Mais que palavras para te demonstrar o sentimento / Que o teu amor é verdadeiro''); (''Hei-de ir para Mafra, tenho lá família, Mulher, Pais e uma irmã, Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires, Por que queres tu que eu fique, Porque é preciso'').

Blimunda acaba, então, por contar o segredo que Baltasar tanto procurava. Depois de o ter marcado com uma cruz de sangue para garantir que nunca o iria ver por dentro (''Com as pontas dos dedos médio e indicador humedecidos nele, Blimunda persignou-se e fez uma cruz no peito de Baltasar, sobre o coração''), acaba por lhe contar o tal segredo e explicar-lho (''Não sabias o que estavas a dizer, nem soubeste que estavas a ouvir quando eu te disse que nunca te olharia por dentro [...] Eu posso olhar por dentro das pessoas.''). Na música que escolhi, acaba por acontecer um pouco ao invés do que acontece no livro. Primeiro, o sujeito poético mostra que tenta conversar e mostrar a verdade à outra pessoa (''Now that I've tried to talk to you and make you understand'' // ''Agora que tentei falar contigo e fazer-te entender’’) — tal como Blimunda teve de explicar a verdade, tendo Baltasar ficado incrédulo (''Estás a mangar comigo, ninguém pode olhar por dentro das pessoas, Eu posso, Não acredito, Primeiro, quiseste saber, não descansavas enquanto não soubesses, agora já sabes e dizes que não acreditas, antes assim, mas daqui para o futuro não me tires o pão'') e só depois é que acaba por lhe dar uma prova de amor — a mesma feita quando Blimunda marca Baltasar para não o poder ver — nunca o deixando partir (''All you have to do is close your eyes and just reach out your hands / And touch me, hold me close, don't ever let me go'' // '' Tudo o que tens de fazer é fechar os olhos e estender as mãos / E tocar-me, agarra-me perto, nunca me deixes ir embora'').

Assim, esta música, mostra o amor profundo sentido por ambos, que acabavam por se entender sem terem de falar. Decidi, por isso, não optar pela versão original da música, pois o amor destes personagens não é um amor banal como esta música pop que vendeu 10 milhões de singles. O amor deles é diferente, interpretável tal como todas as músicas podem ser interpretadas, como mostra, também, o seu vídeo.

 









Miguel T.




Miguel T. (Bom) «É Terça-Feira» (Sérgio Godinho / Sérgio Godinho), Canto da Boca (1981) // José Saramago, Memorial do Convento, 21ª edição, Lisboa, Caminho, 1992, pp. 253-256

Debruçar-me-ei neste comentário sobre as últimas páginas do romance de José Saramago, Memorial do Convento. Blimunda passa nove anos da sua vida em busca do seu amor, perdido numa aventura voadora, que inclui um padre, um compositor italiano, e um casal do povo trabalhador, e fora do comum. Baltasar saiu uma noite para ir arranjar a Passarola, e não voltou a casa, em Mafra, o sagrado local sobre o qual o Espírito Santo “voara” e onde El-Rei, D. João V, ergue um extraordinário convento.

Baltasar, nunca mais voltou. E nos nove anos seguintes Blimunda dedicou-se à procura do seu marido: começou por ir a Monte Junto, o sítio para onde ele se dirigiu (o local secreto da Passarola) e voltou a Mafra, o último local onde o vira. A partir daí o narrador descreve a ação de Blimunda como rotineira e habitual.

Também Sérgio Godinho, numa canção bem mais recente do que o tempo em que se conta a história de Blimunda, nos fala de uma rapariga, que todas as terças-feiras de desloca à Feira da Ladra, com estranhos comportamentos e certas rotinas atípicas de um visitante comum desta feira. É notável o recurso que o artista utiliza para sublinhar a repetição das ações da rapariga. Utiliza os versos «É terça-feira / e a feira da ladra…» três vezes e o verso «É terça-feira…» apenas se faz contar seis vezes ao longo dos dois minutos e quarenta da canção.

Não nos deixa indiferente a minúcia com que Blimunda descreve o seu homem, Baltasar, e, a certa altura, a Passarola («Pássaro de ferro e vimes entrançados, com uma vela preta, bolas de âmbar amarelo, e duas esferas de metal baço que contêm o maior segredo do universo»). Tal era a sua repetição de discurso e ações em todas as terras por onde passara, algumas delas também repetidas (passa sete vezes por Lisboa), que ganhou o nome de Voadora. A rapariga da canção do álbum «Canto da Boca» de Sérgio Godinho não fica com nenhuma designação ou cognome. Contudo, todos a conhecem por ser «a rapariga que… desce a escada quatro a quatro/ vende tudo o que trazia/ deixou no chão um lamento». Apesar de ainda não ter como Blimunda («Voadora») um nome reconhecido, devido às suas ações rotineiras, ganha alcunhas.

Normal é que os comportamentos de ambas as personagens (do livro e da canção) sejam estranhos aos olhos dos outros personagens que contracenam com elas. Estas raparigas não são comuns. Blimunda, que perde o seu marido numa noite, depois de uma vida inteira de partilha, e sem saber se Baltasar está morto, vivo, consciente ou inconsciente à sua busca desesperada por respostas, seu coração é «incapaz de dizer “tanto faz”». Para além disso, viveu uma história fora do real para as pessoas mais simples do século XVIII: da Passarola e de como voou. Esta procura desesperada começa a ganhar contornos de loucura. A rapariga da canção de Sérgio Godinho não é uma comerciante usual da feira da ladra. Ela vende «mágoas… juras falsas, amargura e ilusões… contradições». «Troca tristeza, pela alegria», consegue escoar tudo o que vende, talvez por vender «ao desbarato» tudo o que traz consigo.

As histórias têm um tronco comum: raparigas, que sofreram traumas muito pessoais e utilizam a rotina como forma de escape à realidade. Talvez um dia, talvez amanhã, que aparentemente é «quarta-feira, das cinzas, talvez», Blimunda encontre Baltasar e deixe de precisar de vaguear sozinha pela feira da ladra, e possam os dois partir, sempre «com os olhos na paz».

 

Lara



Lara (Suficiente(-)) || “Não deixe de sonhar” (Rodrigo Panassolo), Chimarruts ao vivo, 2007 // José Saramago, Memorial do Convento, 26ª edição, Lisboa, Caminho, 1998, pp. ?-?

“Não deixe de sonhar” transmite o mesmo sentimento do padre Bartolomeu Lourenço. Nunca parou de sonhar, mesmo quando foi ridicularizado por todos na corte.

“Não abra mão dos proprios sonhos” é, no fundo, a apologia de vida do padre Bartolomeu Lourenço, a felicidade do seu dia-a-dia é o pensar no seu sonho, no seu trabalho. Para ele,“não tem perdão” desistir, ao fim de tantos anos de trabalho e tanto esforço.

Seguiu o seu sonho e não desistiu: “Há doze anos que isso foi, desde então a verdade mudou muito…”

Na música dos Chimarruts e em Memorial do Convento podemos encontrar, na mensagem transmitida, pontos convergentes. Vejamos: “Se alguém te perguntar por mim, pode dizer que eu vim para falar o que ninguém mais fala nem quer acreditar” (“Não deixe de sonhar”) refere-se a alguém verdadeiro, que mesmo com opiniões adversas, deseja mostrar o que pensa; o mesmo se vê em Memorial do convento de Saramago. Bartolomeu Lourenço deseja, mesmo contra as diversas opiniões, construir algo que possa voar, tem em si um desejo de aventurar-se pelos céus e com um engenho ser reconhecido por todos.

Contudo é desprezado na corte, mas, apoiado por D. João V segue com o projeto. Vai para a Holanda, e lá aprende os segredos da aeronáutica. Regressa a Lisboa convicto de saber o segredo e vai para Coimbra, local onde estuda e se forma (“Já o padre Bartolomeu Lourenço regressou de Coimbra, já é doutor em cânones, confirmado de Gusmão por apelativo onomástico e firme escrita”).

Ajudado por Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas e, por vezes, com a companhia de Domenico Scarlatti, que ao som do cravo sonhava e ajudava a sonhar, assim o padre Bartolomeu Lourenço construiu a sua obra.

Na canção insinua-se alguém sincero, que diz a verdade sem medo, que segue os seus sonhos, o que não se mostra propriamente com Bartolomeu. O apoio de D. João V neste projeto megalómano permite a Bartolomeu Lourenço não desistir. No entanto este tem plena consciência de que ainda não foi apanhado pela inquisição exatamente por esta “proteção”, que se traduz, no fundo, por alguma amizade e esperança na partilha do sonho da máquina voadora por parte do rei.

“Pois não vai encontrar quem vai sorrir por ti” é algo que coincide em ambas as mensagens transmitidas. No fundo, cada um é por si, há a necessidade de fazermos nós por nós próprios. Saramago procura através do Padre Bartolomeu demonstrar a necessidade da amizade, da aventura, dos estudos, dos riscos, afinal a necessidade dos sonhos.

 



Rita





Rita (Suficiente (+)) || «Thousand years» (Christina Perri), Breaking Dawn, 2011 // José Saramago, Memorial do Convento, 53ª edição, Lisboa, Caminho, 2013, pp. 487- 493

Primeiramente, importa descrever as personagens Blimunda e Baltasar, que, nesta obra, enquadram-se no grupo do contra poder, tal como o Padre Bartolomeu Lourenço e Domenico Scarlatti. Blimunda é uma jovem mulher de dezanove anos e é imprescindível na construção da passarola, devido aos seus poderes de “ver por dentro” e de “recolher as vontades”. Baltasar é um ex-soldado tornado açougueiro em Lisboa, pois o gancho que lhe serve de mão esquerda lhe facilita o trabalho, para mas tarde integrar, como boieiro, a legião de operários na obras do convento  de Mafra. Quando o Padre Bartlomeu o conhece no auto-de-fé, em que a mãe de Blimunda é exilada para Angola, fá-lo participante do seu sonho de voar, sonho que será continuado, após a fuga e a morte do padre. Baltasar paga com a sua própria vida a perseguição desse sonho, o que o transforma no herói do romance, transcendendo, desta foma, a imagem do povo oprimido e espezinhado de que faz parte.

A relação entre Baltasar e Blimunda é uma lição de vida, pois ambos, ao longo do romance,  são vítimas de injustiças, em nenhum momento da história são possuidores de bens com valor, e vivem rodeadas das mais diversas dificuldades. Mas há algo que vence e suporta todo o sofrimento vivido neste romance, o amor que os une.

Mas falo de amor verdadeiro, não é aquele que surge entre pessoas que têm relações por interesse, como acontece também em Memorial do Convento entre D. João V e D. Maria Ana, falo do amor que tem a capacidade de unir duas pessoas numa só, aquele amor forte o suficiente para enfrentar qualquer tipo de obstáculo, capaz de transmitir força nos momentos mais críticos. E é isso que acontece neste romance: só sendo o seu um amor puro e verdadeiro é que este casal pôde enfrentar os problemas e adversidades que enfrentou, sempre unido, e, mesmo quando a morte ameaçava ser o destino irreversível de Baltasar, Blimunda retirou-lhe a vontade, salvando-o: "Então Blimunda disse, Vem. desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda."

De acordo com Memorial do Convento, de José Saramago, a personagem Blimunda, ao longo da história, revela ser uma mulher muito frágil e sensível, mas também bastante determinada e independente, de maneira que a música que achei que caracterizasse mais estes traços que descrevi previamente desta personagem é “A thousand years”, de Christina Perri.

Segundo a letra desta canção, a cantora menciona, principalmente no refrão, “One step closer / I have died everyday waiting for you / Darling don't be afraid, I have love you for a thousand years (...) And all along I believed I would find you”. Traduzindo esta parte da música para português fica da seguinte maneira: “Um passo mais perto / Eu morri todos os dias à espera de ti / Amor, não tenhas medo, eu irei amar-te por mil anos (…) Durante todo este tempo acreditei que te iria encontrar”.

Para além desta música caracterizar o espírito determinante e apaixonante de Blimunda, também quase parece referir-se a uma parte específica desta obra, aquela em que a personagem procura por Baltasar, o ex-soldado maneta por quem ela sente um grande amor e cumplicidade, durante nove anos, sem saber se ele morreu na tentativa falhada de colocar a passarola a voar e mesmo não se importando de ser considerada doida por todas as terras que ia passando ao perguntar pelo paradeiro do seu amado.

Através da frase desta música “All along I believed I would find you” (“Durante todo este tempo acreditei que te iria encontrar”), na minha opinião, faz-se uma descrição completa, não só da determinação de Blimunda, como referi anteriormente, mas também da confiança, do amor puro e humilde e da união intensa que existe entre as duas personagens. Esta união tão forte faz com que sejam, de certa forma, um só, por esta razão é que Blimunda, o aceita tal como é e nunca o “vê por dentro”, sendo esse um dos seus poderes. Dito isto, toda esta confiança que é notória em Sete-luas incentiva mais a busca por Baltasar, apesar de todos os obstáculos e incertezas.

Em suma, penso que esta música, “A thousand years”, de Christina Perri, se identifica com a busca incansável e com o amor eterno que Blimunda sempre sentiria por Baltasar: “Darling don't be afraid, I have love you for a thousand years / Amor, não tenhas medo, eu irei amar-te por mil anos”).

 


André





André (Insuficiente+) || «Here without you» (3 doors down), Here without you, 2002 // José Saramago, Memorial do Convento, 37.ª edição, Lisboa, Caminho, 1982.

A música “Here without you” é um romance/drama, pois em cada verso cantado consegue-se identificar o amor entre duas almas apaixonadas. Quando separadas, uma imensa mágoa rodeada de tristeza apodera-se deles, mas, mesmo assim, nunca desistem e continuam a pensar que um dia irão encontrar-se de novo para, finalmente, se amarem e viverem sem contradições, até ao final das suas vidas. “Here without you” (“Estou aqui sem ti”),” But you still in my only mine” (“Mas tu estás apenas na minha mente”), “I think about you baby” (“estou a pensar em ti”) são versos que exemplificam a tristeza sentida por não estar junto de quem se ama.

“Here without you” está relacionada com uma parte de Memorial do Convento que diz respeito à paixão entre Blimunda (Sete-luas) e Baltasar (Sete-sóis), que já não conseguem viver um sem o outro.

Nas páginas 56 e 57 de Memorial dá-se primeiro encontro amoroso, e, nas mesmas páginas, dá-se o casamento simbólico abençoado pelo padre Bartolomeu Lourenço. A relação entre Baltasar e Blimunda é uma lição de vida. Fazem parte do povo, do mais baixo nível da sociedade, são alvos de injustiça, vivem as mais variadas dificuldades, mas tudo isto é suportado pelo amor. É o amor que tem a capacidade de unir duas pessoas numa só, que é capaz de ultrapassar os mais variados obstáculos. É isto que acontece neste romance: só mediante do amor puro e verdadeiro é que este casal pôde enfrentar as diversidades que ultrapassou, sempre unido, e, mesmo quando a morte ameaçava ser o destino e irreversível para Baltasar, Blimunda retirou-lhe a vontade, salvando-o: “então Blimunda disse, Vem desprendeu-se a vontade de Baltasar (sete-sóis), mas não subiu para as estrelas, se á terra pertencia e a Blimunda”.

 


Ana




Ana (Suficiente(-)) || “Anda comigo ver os aviões” (Os Azeitonas), Em boa companhia eu vou, 2010// José Saramago, Memorial do Convento, 42.ª edição, Lisboa, Caminho, 1994, pp. 68-69

A música “Anda comigo ver os aviões”, dos Azeitonas, relaciona-se com Memorial do Convento, de José Saramago, em dois aspectos: a intensidade do amor e a Passarola.

O amor entre Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas é uma história exemplar de nunca desistir da pessoa de quem realmente amamos e do que esse amor nos leva a fazer (“Mas que eu morra aqui / Mulher tu sabes o quanto eu te amo, / O quanto eu gosto de ti”).

No fundo, não é nesse amor que nos vamos focar mas na Passarola. A Passarola inclui quatro personagens fundamentais que tiveram um papel importante na sua história, Baltasar–Sete Sóis, Blimunda–Sete Luas, o Padre Bartolomeu Lourenço e Domenico Scarlatti.

A construção da passarola era um sonho “e porque à vista era o desenho um pássaro, acreditou que todos aqueles materiais, juntos e ordenados nos lugares competentes, seriam capazes de voar.”(p. 68), tal como a música é também um sonho (“Um dia (…)”).

A mensagem que se pretende passar é de não de desistirmos dos nossos sonhos, mesmo que pareçam ser difíceis de concretizar, neste caso de os construir. Existem pessoas que estão do nosso lado e nos podem ajudar (“Ainda não sei, respondeu o padre, falta-me quem me ajude, sozinho não posso fazer tudo, e há trabalhos para que a minha força não é suficiente.”, p. 68).

O desejo de superação de dificuldades também é aqui representado, pois Baltasar apenas tinha uma mão e, no lugar da outra mão, tinha um gancho que não o impediu de construir a Passarola, tornando aquilo que muitos consideram uma deficiência numa qualidade (“Com essa mão e esse gancho podes fazer tudo quanto quiseres, e há coisas que um gancho faz melhor que a mão completa, um gancho não sente dores se tiver de segurar um arame ou um ferro, nem se corta, nem se queima (…)”, pp. 68-69), enquanto o autor da música dispõe-se a superar as dificuldades pela sua amada (“Um dia eu vou jogar á bola / Ou vendo esta viola / (…) Se um dia eu não te levo à América / Nem que eu leve a América até ti”).

O autor da música revela intenções de “Um dia vamos ver os foguetões, / A rasgar as nuvens, / Rasgar o céu…”, o que lembra certo dia em que a passarola levanta voo e atinge uma altura tão elevada que o Padre Bartolomeu temeu o perigo.

Tanto a música “Anda comigo ver os aviões” como Memorial do Convento têm intenções positivas de atingir certos objectivos. Uma relação amorosa positiva em que são capazes de ir até ao fim do mundo pelo seu relacionamento, tal como o amor que é explícito na música em que o autor é capaz de dar a sua própria vida pela sua amada: “Mas que eu morra aqui, / Mulher tu sabes o quanto eu te amo, / O quanto eu gosto de ti”.

 


João R.



João R. (Suficiente+) || “I Believe I Can Fly” (R. Kelly), R., 1998 // José Saramago, Memorial do Convento, #, #, #

“I Believe I Can Fly” ou, em português, “Eu Acredito Que Posso Voar”, partilha da mesma ambição de voar do Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão. Podemos observar esta “ambição” de Bartolomeu, desde o capítulo VI de Memorial do Convento de José Saramago. Bartolomeu começou por ir ao encontro de D.João V, afirmando que tinha descoberto “um instrumento para se andar pelo ar da mesma sorte que pela terra e pelo mar”.Conseguindo o interesse do Rei, este deu-lhe um espaço onde Bartolomeu pudesse desenvolver a máquina. Esse espaço era uma quinta em São Sebastião da Pedreira, onde permanecia a passarola e onde apenas três pessoas poderiam ir: Bartolomeu, Baltasar e Blimunda.

Detentor de grande sabedoria e conhecimento, o padre era “obcecado” não só por voar, mas também pela Ciência. Conhecido como o “Padre Voador”, “ Aquele que ali vem é o padre Bartolomeu Lourenço, a quem chamam o Voador” (p. 61), Bartolomeu sempre tivera o sonho e ambição de voar. Tendo o apoio do rei D.João V, o padre sempre possuiu fé e acreditou que, algum dia, faria a passarola voar. Apesar de o rei depositar confiança no padre, já o povo e o resto da corte não teriam o mesmo pensamento, “troçando” mesmo das habilidades e competências de Bartolomeu, não como padre, mas sim como inventor, “Tenho sido risada da corte e dos poetas”. No capítulo VI, vemos que Bartolomeu já tinha feito algumas experiências, mesmo antes de ter a ideia de criar a passarola: “Primeiro fiz um balão, depois fiz outro, enfim outro”. Onde podemos reparar na grande ambição e sonho de Bartolomeu é mesmo na página 64, quando nos diz: “O homem primeiro tropeça, depois anda, depois corre, um dia voará.”. Para corrigir os erros da passarola, Bartolomeu viaja até a Holanda, onde irá estudar para saber mais sobre os elementos a usar na passarola, para que esta voe. Voltando a Lisboa, Gusmão arranja a solução para que a passarola voe, juntamente com a ajuda de Baltasar e Blimunda. Bartolomeu, Baltasar e Blimunda formam um trio que vai pôr em prática o sonho de voar, com as habilidades individuais de cada um. Ou seja, para concluir, penso que não existe outra música que se identifique tanto com o sonho de voar de Baltasar. Além de toda a canção fazer sentido quanto à personagem do Padre Bartolomeu, existem duas frases que podemos destacar quanto á ambição e á personalidade de Baltasar: A primeira frase seria o título da música (em português: “Eu Acredito Que Posso Voar”). Esta frase, retrata todo o objetivo de Bartolomeu ao longo da obra. Construir a passarola e conseguir voar. Portanto, o título é o mais adequado possível, à ambição de Bartolomeu. A segunda frase seria “Because I believe in me” (em português: “Porque eu acredito em mim”), que mostra toda a personalidade de Bartolomeu. Ao longo da obra reparamos que ele é bastante ridicularizado pelas pessoas e, mais tarde, ele mesmo iria quase perder toda a sua ambição quando parece que a passarola não conseguiria voar. Porém, nunca desistiu desse sonho e, acreditando nele e nas capacidades dos que o rodeavam, a aventura tornou-se possível e a passarola finalmente voou.  Este personagem retrata um personagem sonhador, ambicioso e determinado, não tendo desistido do seu sonho até o concretizar.

 


Duarte


Duarte (Suficiente) || “Hope Of Deliverance” (Paul McCartney), Off the Ground, 1994 // José Saramago, Memorial do Convento, 53.ª edição, Lisboa, Caminho, 1994.

“Hope Of Deliverance” interpretada por Paul McCartney, é uma música com o ideal de esperança no futuro, de força de libertação face aos difíceis e conturbados momentos do presente, podendo ser incorporada de forma adequada em qualquer período histórico.

Analisando a letra da música, é isso que acontece, constatando-se várias semelhanças com a obra de José Saramago, Memorial do Convento. 

Nos versos “And I wouldn't mind knowing, knowing, / That you wouldn't mind going, / Going along with my plan” (“Não me importaria de saber, saber, / Que você não se importaria de ir, / Ir em frente com o meu plano”), está presente o sentimento de união mútua entre Blimunda e Baltasar, estando ela, neste caso, disposta a apoiar e ajudar Baltasar e Bartolomeu na construção da passarola, tendo a função de recolher 2000 vontades, trabalhando arduamente. Mesmo doente devido à peste, sacrificou-se para atingir esse fim: “E se a ele apeteceu, a ela apetecerá, e se ela quis, quererá ele.” (capítulo VIII, p. 99).

Nos versos “When it will be right, I don't know, / What it will be like, I don't know, / We live in hope of deliverance, From the darkness that surrounds us” (“Quando será certo, não sei, / O que vai ser, eu não sei, / Nós vivemos com a esperança de libertação, / Da escuridão que nos cerca”), está expressa a ideia de incerteza da realização do sonho, de se ser bem sucedido, neste caso, no sonho de voar, que será atingido através da construção da passarola. Mas, apesar dessa incógnita, o ideal estará sempre na mente de cada um dos envolvidos, bem como a infinita esperança para o atingir, embora estejam presentes medos, contrariedades e regras impostas. Só através da sua quebra, contrariando todas as opiniões e restrições defendidas na altura, é que se conseguirá atingir a tão desejada liberdade: “Nem sempre se pode ter tudo, quantas vezes pedindo isto se alcança aquilo, que esse é o mistério das orações, lançamo-las ao ar com uma intenção que é nossa, mas elas escolhem o seu próprio caminho, às vezes atrasam-se para deixar passar outras que tinham partido depois (...) ” (capítulo VII, p. 95).

Por fim, e apesar de serem os versos iniciais da música, resumem bem a parte final da obra “I will always be hoping, hoping, / You will always be holding, holding, / My heart in your hand” (“Sempre estarei com esperança, com esperança, / Você sempre estará segurando, segurando / Meu coração na sua mão”). Está patente o amor verdadeiro entre Blimunda e Baltasar, estando ela disposta a procurar incessantemente o homem a quem jurou amor eterno aquando o seu desaparecimento, nunca lhe faltando esperança e determinação ao longo de nove anos, apesar das sucessivas dificuldades no caminho. Finalmente, quando o encontra num auto-de-fé em Lisboa, recolhe a sua vontade, que considera pertencer-lhe, havendo uma analogia entre 'coração' e ‘vontade': “A queima já vai adiantada, os rostos mal se distinguem. Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda. Talvez por ter a barba enegrecida, prodígio cosmético da fuligem, parece mais novo. E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à Terra pertencia e a Blimunda” (capítulo XXV, p. 493).

 

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