Saturday, September 14, 2013

Poemas de Cesário Verde 2


NÓS
A. A. de S. V.
                I
 
Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre
E o Cólera também andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade.
 
Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas
(Até então nós só tivéramos sarampo),
Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas
que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!
 
Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga:
O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos;
Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos
Morreram todos. Nós salvamo-nos na fuga.
 
Na parte mercantil, foco da epidemia,
Um pânico! Nem um navio entrava a barra,
A alfândega parou, nenhuma loja abria,
E os turbulentos cais cessaram a algazarra.
 
Pela manhã, em vez dos trens dos batizados,
Rodavam sem cessar as seges dos enterros.
Que triste a sucessão dos armazéns fechados!
Como um domingo inglês na city, que desterros!
 
Sem canalização, em muitos burgos ermos
Secavam dejeções cobertas de mosqueiros.
E os médicos, ao pé dos padres e coveiros,
Os últimos fiéis, tremiam dos enfermos!
 
Uma iluminação a azeite de purgueira,
De noite amarelava os prédios macilentos.
Barricas de alcatrão ardiam; de maneira
Que tinham tons de inferno outros arruamentos.
 
Porém, lá fora, à solta, exageradamente,
Enquanto acontecia essa calamidade,
Toda a vegetação, pletórica, potente,
Ganhava imenso com a enorme mortandade!
 
Num ímpeto de selva os arvoredos fartos,
Numa opulenta fúria as novidades todas,
Como uma universal celebração de bodas,
Amaram-se! E depois houve soberbos partos.
 
Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa,
Triste de ouvir falar em órfãos e em viúvas,
E em permanência olhando o horizonte em brasa,
Não quis voltar senão depois das grandes chuvas.
 
Ele, dum lado, via os filhos achacados,
Um lívido flagelo e uma moléstia horrenda!
E via, do outro lado, eiras, lezírias, prados,
E um salutar refúgio e um lucro na vivenda!
 
E o campo, desde então, segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos estes anos!
Nós vamos para lá; somos provincianos,
Desde o calor de maio aos frios de novembro!
 
                II
 
Que de fruta! E que fresca e temporã,
Nas duas boas quintas bem muradas,
Em que o Sol, nos talhões e nas latadas,
Bate de chapa, logo de manhã!
 
O laranjal de folhas negrejantes,
(Porque os terrenos são resvaladiços)
desce em socalcos todos os maciços,
como uma escadaria de gigantes.
 
Das courelas, que criam cereais,
De que os donos – ainda! – pagam foros,
Dividem-no fechados pitosporos,
Abrigos de raízes verticais.
 
Ao meio, a casaria branca assenta
À beira da calçada, que divide
Os escuros pomares de pevide,
Da vinha, numa encosta soalhenta!
 
Entretanto, não há maior prazer
Do que, na placidez das duas horas,
Ouvir e ver, entre o chiar das noras,
No largo tanque as bicas a correr!
 
Muito ao fundo, entre olmeiros seculares,
Seca o rio! Em três meses de estiagem,
O seu leito é um atalho de passagem,
Pedregosíssimo, entre dois lugares.
 
Como lhe luzem seixos e burgaus
Roliços! E marinham nas ladeiras
Os renques africanos das piteiras
Que como aloés espigam altos paus
 
Montanhas inda mais longinquamente,
Com restevas e combros como boças,
Lembram cabeças estupendas, grossas,
De cabelo grisalho, muito rente.
 
E, a contrastar, nos vales, em geral,
Como em vidraça duma enorme estufa,
Tudo se atrai, se impõe, alarga e entufa,
Duma vitalidade equatorial!
 
Que de frugalidades nós criamos!
Que torrão espontâneo que nós somos!
Pela outonal maturação dos pomos,
Com a carga, no chão pousam os ramos.
 
E assim postas, nos barros e areais,
As macieiras vergadas fortemente,
Parecem, duma fauna surpreendente
Os pólipos enormes, diluviais.
 
Contudo, nós não temos na fazenda,
Nem uma planta só de mero ornato!
Cada pé mostra-se útil, é sensato,
Por mais aromas que recenda!
 
Finalmente, na fértil depressão,
Nada se vê que a nossa mão não regre:
A florescência dum matiz alegre
Mostra um sinal – a frutificação!
 
                *
 
Ora, há dez anos, neste chão de lava
E argila e areia e aluviões dispersas,
Entre espécies botânicas diversas,
Forte, a nossa família radiava!
 
Unicamente, a minha doce irmã,
Como uma tênue e imaculada rosa,
Dava a nota galante a melindrosa
Na trabalhadeira rústica, aldeã.
 
E foi num ano pródigo, excelente,
Cuja amargura nada sei que adoce,
Que nós perdemos essa flor precoce,
Que cresceu e morreu rapidamente!
 
Ai daqueles que nascem neste caos,
E, sendo fracos, sejam generosos!
As doenças assaltam os bondosos
E – custa a crer – deixam viver os maus!
 
                *
 
Fecho os olhos cansados, e descrevo
Das telas da memória retocadas,
Biscates, hortas, batatais, latadas,
No país montanhoso, com relevo!
 
Ah! que aspetos benignos e ruais
Nesta localidade tudo tinha,
Ao ires, com o banco de palhinha,
Para a sombra que faz nos parreirais!
 
Ah! quando a calma, à sesta, nem consente
Que uma folha se mova ou se desmanche,
Tu, refeita e feliz com o teu lunch,
Nos ajudavas, voluntariamente!...
 
Era admirável – neste grau do Sul! –
Entre a rama avistar teu rosto alvo,
Ver-te escolhendo a uva diagalvo,
Que eu embarcava para Liverpool.
 
A exportação de frutas era um jogo:
Dependiam da sorte do mercado
O boal, que é de pérolas formado,
E o ferral, que é ardente e cor de fogo!
 
Em agosto, ao calor canicular,
Os pássaros e enxames tudo infestam.
Tu cortavas os bagos que não prestam
Com a tua tesoura de bordar.
 
Douradas, pequeninas, as abelhas,
E negros, volumosos, os besouros,
Circundavam, com ímpetos de touros,
As tuas candidíssimas orelhas.
 
Se uma vespa lançava o seu ferrão
Na tua cútis – pétala de leite! –
Nós colocávamos dez-réis e azeite
Sobre a galante, a rósea inflamação!
 
E se um de nós, já farto, arrenegado,
Com o chapéu caçava a bicharia,
Cada zangão voando, à luz do dia,
Lembrava o teu dedal arremessado.
 
                *
 
Que de encantos! Na força do calor
Desabrochavas no padrão da bata,
E, surgindo da gola e da gravata,
Teu pescoço era o caule duma flor!
 
Mas que cegueira a minha! Do teu porte
A fina curva, a indefinida linha,
Com bondades de herbívora mansinha,
Eram prenúncios de fraqueza e morte!
 
À procura da libra e do shilling,
Eu andava abstrato e sem que visse
Que o teu alvor romântico de miss
Te obrigava a morrer antes de mim!
 
E antes tu, ser lindíssimo, nas faces
Tivesses “pano” como as camponesas:
E sem brancuras, sem delicadezas,
Vigorosa e plebeia, inda durasses!
 
Uns modos de carnívora feroz
Podias ter em vez de inofensivos;
Tinhas caninos, tinhas incisivos,
E podias ser rude como nós!
 
Pois neste sítio, que era de sequeiro,
Todo o gênero ardente resistia,
E, à larguíssima luz do Meio-Dia,
Tomava um tom opálico e trigueiro!
 
                *
 
Sim! Europa do Norte, o que supões
Dos vergéis que abastecem teus banquetes,
Quando às docas com frutas, os paquetes
Chegam antes das tuas estações?!
 
Oh! As ricas primeurs da nossa terra
E as tuas frutas ácidas, tardias,
No azedo amoniacal das queijarias
Dos fleumáticos farmers de Inglaterra!
 
Ó cidades fabris, industriais,
De nevoeiros, poeiradas de hulha,
Que pensais do país que vos atulha
Com a fruta que sai de seus quintais?
 
Todos os anos, que frescor se exala!
Abundâncias felizes que eu recordo!
Carradas brutas que iam para bordo!
Vapores por aqui fazendo escala!
 
Uma alta parreira moscatel
Por doce não servia para embarque:
Palácios que rodeiam Hyde-Park,
Não conheceis esse divino mel!
 
Pois a Coroa, o Banco, o Almirantado,
Não as têm nas florestas em que há corças,
Nem em vós que dobrais as vossas forças,
Pradarias dum verde ilimitado!
 
Anglos-saxónios, tendes que invejar!
Ricos suicidas, comparai convosco!
Aqui tudo espontâneo, alegre, tosco,
Facílimo, evidente, salutar!
 
Oponde às regiões que dão os vinhos
Vossos montes de escórias inda quentes!
E as febris oficinas estridentes
Às nossas tecelagens e moinhos!
 
E ó condados mineiros! Extensões
Carboníferas! Fundas galerias!
Fábricas a vapor! Cutelarias!
E mecânicas, tristes fiações!
 
Bem sei que preparais corretamente
O aço e a seda, as lâminas e o estofo;
Tudo o que há de mais dúctil, de mais fofo,
Tudo o que há de mais rijo e resistente!
 
Mas isso tudo é falso, é maquinal,
Sem vida, como um círculo ou um quadrado,
Com essa perfeição do fabricado,
Sem o ritmo do vivo e do real!
 
E cá o santo Sol, sobre isto tudo,
Faz conceber as verdes ribanceiras;
Lança as rosáceas belas e fruteiras
Nas searas de trigo palhagudo!
 
Uma aldeia daqui é mais feliz,
Londres sombria, em que cintila a corte!...
Mesmo que tu, que vives a compor-te,
Grande seio arquejante de Paris!...
 
Ah! Que de glória, que de colorido,
Quando, por meu mandado e meu conselho,
Cá se empapelam “as maçãs de espelho”
Que Herbert Spencer talvez tenha comido!
 
Para alguns são prosaicos, são banais
Estes versos de fibra suculenta;
Como se a polpa que nos dessedenta
Nem ao menos valesse uns madrigais!
 
Pois o que a boca trava com surpresas
Senão as frutas tônicas e puras!
Ah! Num jantar de carnes e gorduras
A graça vegetal das sobremesas!...
 
Jack, marujo inglês, tu tens razão
Quando, ancorando em portos como os nossos,
As laranjas com cascas e caroços
Comes com bestial sofreguidão!...
 
                *
 
A impressão doutros tempos, sempre viva,
Dá estremeções no meu passado morto,
E inda viajo, muita vez, absorto,
Pelas várzeas da minha retentiva.
 
Então recordo a paz familiar,
Todo um painel pacífico de enganos!
E a distância fatal duns poucos anos
É uma lente convexa, de aumentar.
 
Todos os tipos mortos ressuscito!
Perpetuam-se assim alguns minutos!
E eu exagero os casos diminutos
Dentro dum véu de lágrimas bendito.
 
Pinto quadros por letras, por sinais,
Tão luminosos como os do Levante,
Nas horas em que a calma é mais queimante,
Na quadra em que o Verão aperta mais.
 
Como destacam, vivas, certas cores,
Na vida externa cheia de alegrias!
Horas, vozes, locais, fisionomias,
As ferramentas, os trabalhadores!
 
Aspiro um cheiro a cozedura, e a lar
E a rama de pinheiro! Eu adivinho
O resinoso, o tão agreste pinho
Serrado nos pinhais a beira-mar.
 
Vinha cortada, aos feixes, a madeira,
Cheia de nós, de imperfeições, de rachas;
Depois armavam-se, num pronto as caixas
Sob uma clama espessa e calaceira!
 
Feias e fortes! Punham-lhes papel
A forrá-las. E em grossa serradura
Acamava-se a uva prematura
Que não deve servir para tonel!
 
Cingiam-nas com arcos de castanho
Nas ribeiras cortados, nos riachos;
E eram de açúcar e calor os cachos,
Criados pelo esterco e pelo amanho!
 
Ó pobre estrume, como tu compões
Estes pâmpanos doces como afagos!
“Dedos-de-dama”: transparentes bagos!
“Tetas-de-cabra”: lácteas carnações!
 
E não eram caixitas bem dispostas
Como as passas de Málaga e Alicante;
Com sua forma estável, ignorante,
Estas pesavam, brutalmente, às costas!
 
Nos vinhatórios via fulgurar,
Com tanta cal que torna as vistas cegas,
Os paralelogramos das adegas,
Que têm lá dentro as dornas e o lagar!
 
Que rudeza! Ao ar livre dos estios,
Que grande azáfama! Apressadamente
Como soava um martelar frequente,
Véspera da saída dos navios!
 
Ah! Ninguém entender que ao meu olhar
Tudo tem certo espírito secreto!
Com folhas de saudades um objeto
Deita raízes duras de arrancar!
 
As navalhas de volta, por exemplo,
Cujo bico de pássaro se arqueia,
Forjadas no casebre duma aldeia,
São antigas amigas que eu contemplo!
 
Elas, em seu labor, em seu lidar,
Com sua ponta como a das podoas,
Serviam probas, úteis, dignas, boas,
Nunca tintas de sangue e de matar.
 
E as enxós de martelo, que dum lado
cortavam mais do que as enxadas cavam,
Por outro lado, rápidas, pregavam,
Duma pancada, o prego fasquiado!
 
O meu ânimo verga na abstração,
Com a espinha dorsal dobrada ao meio;
Mas se de materiais descubro um veio
Ganho a musculatura dum Sansão!
 
E assim – e mais no povo a vida é corna –
Amo os ofícios como o de ferreiro,
Com seu fole arquejante, seu braseiro,
Seu malho retumbante na bigorna!
 
E sinto, se me ponho a recordar
Tanto utensílio, tantas perspetivas,
As tradições antigas, primitivas,
E a formidável alma popular!
 
Oh! Que brava alegria eu tenho quando
Sou tal-qual como os mais! E, sem talento,
Faço um trabalho técnico, violento,
Cantando, praguejando, batalhando!
 
                *
 
Os fruteiros, tostados pelos sóis,
Tinham passado, muita vez, a raia,
E, espertos, entre os mais da sua laia,
— Pobres campônios — eram uns heróis.
 
E por isso, com frases imprevistas,
E colorido e estilo e valentia,
As haciendas que há na Andalucía
Pintavam como novos paisagistas.
 
De como, às calmas, nessas excursões,
Tinham águas salobras por refrescos;
E amarelos, enormes, gigantescos,
Lá batiam o queixo com sezões!
 
Tinham corrido já na adusta Espanha,
Todo um fértil platô sem arvoredos,
Onde armavam barracas nos vinhedos,
Como tendas alegres de campanha.
 
Que pragas castelhanas, que alegrão
Quando contavam cenas de pousadas!
Adoravam as cintas encarnadas
E as cores, como os pretos do sertão!
 
E tinham, sem que a lei a tal obrigue,
A educação vistosa das viagens!
Uns por terra partiam a estalagens,
Outros, aos montes, no convés dum brigue!
 
Só um havia, triste e sem falar
Que arrastava a maior misantropia,
E, roxo como um fígado, bebia
O vinho tinto que eu mandava dar!
 
Pobre da minha geração exangue
De ricos! Antes, como os abrutados,
Andar com uns sapatos ensebados,
E ter riqueza química no sangue!...
 
                *
 
Mas hoje a rústica lavoura, quer
Seja o patrão, quer seja o jornaleiro,
Que inferno! Em vão o lavrador rasteiro
E a filharada lidam, e a mulher!
 
Desde o princípio ao fim é uma maçada
De mil demônios! Torna-se preciso
Ter-se muito vigor, muito juízo
Para trazer a vida equilibrada!
 
Hoje eu sei quanto custam a criar
As cepas, desde que eu as podo e empo.
Ah! O campo não é um passatempo
Com bucolismos, rouxinóis, luar.
 
A nós tudo nos rouba e nos dizima:
O rapazio, o imposto, as pardaladas,
As osgas peçonhentas, achatadas,
E as abelhas que engordam na vindima.
 
E o pulgão, a lagarta, os caracóis,
E há inda, além do mais com que se ateima,
As intempéries, o granizo, a queima,
E a concorrência com os espanhóis.
 
Na venda, os vinhateiros de Almería
Competem contra os nossos fazendeiros.
Dão frutas aos leilões dos estrangeiros,
Por uma cotação que nos desvia!
 
Pois tantos contras, rudes como são,
Forte e teimoso, o camponês destrói-os!
Venham de lá pesados os comboios
E os “buques” estivados no porão!
 
Não, não é justo que eu a culpa lance
Sobre estes nadas! Puras bagatelas!
Nós não vivemos é de coisas belas,
Nem tudo corre como num romance!
 
Para a Terra parir há de ter dor,
E é para obter as ásperas verdades,
Que os agrónomos cursam nas cidades,
E, à sua custa, aprende o lavrador.
 
Ah! Não eram insetos nem as aves
Que nos dariam dias tão difíceis,
Se vós, sábios, na gente descobrísseis
Como se curam as doenças graves.
 
Não valem nada a cava, a enxofra, e o mais!
Dificultoso trato das searas!
Lutas constantes sobre as jornas caras!
Compras de bois nas feiras anuais!
 
O que a alegria em nós destrói e mata,
Não é rede arrastante de escalracho,
Nem é “suão” queimante como um facho,
Nem invasões bulbosas de erva-pata.
 
Podia ter secado o poço em que eu
Me debruçava e te pregava sustos,
E mais as ervas, árvores e arbustos
Que — tanta vez! — a tua mão colheu.
 
“Moléstia negra” nem charbon não era,
como um archote incendiando as parras!
Tão-pouco as bastas e invisíveis garras,
Da enorme legião do filoxera!
 
Podiam mesmo, com o que contêm,
Os muros ter caído às invernias!
Somos fortes! As nossas energias
Tudo vencem e domam muito bem!
 
Que os rios, sim, que como touros mugem,
Transbordando atulhassem as regueiras!
Chorassem de resina as laranjeiras!
Enegrecessem outras com ferrugem!
 
As turvas cheias de novembro, em vez
Do nateiro sutil que fertiliza,
Fossem a inundação que tudo pisa,
No rebanho afogassem muita rês!
 
Ah! Nesse caso pouco se perdera,
Por isso tudo era um pequeno dano,
À vista do cruel destino humano
Que os dedos te fazia com cera!
 
Era essa tísica em terceiro grau,
Que nos enchia a todos de cuidado,
Te curvava e te dava um ar alado
Como quem vai voar dum mundo mau.
 
Era a desolação que inda nos mina
(Porque o fastio é bem pior que a fome)
Que a meu pai deu a curva que o consome,
E a minha mãe cabelos de platina.
 
Era a clorose, esse tremendo mal,
Que desertou e que tornou funesta
A nossa branca habitação em festa
Reverberando a luz meridional.
 
Não desejemos, — nós, os sem defeitos —,
Que os tísicos pereçam! Má teoria,
Se pelos meus o apuro principia,
Se a Morte nos procura em nossos leitos!
 
A mim mesmo, que tenho a pretensão
De ter saúde, a mim que adoro a pompa
Das forças, pode ser que se me rompa
Uma artéria, e me mine uma lesão.
 
Nós outros, teus irmãos, teus companheiros,
Vamos abrindo um matagal de dores!
E somos rijos como os serradores!
E positivos como os engenheiros!
 
Porém, hostis, sobressaltos, sós,
Os homens arquitetam mil projetos
De vitória! E eu duvido que os meus netos
Morram de velhos como os meus avós!
 
Porque, parece, ou fortes ou velhacos
Serão apenas os sobreviventes;
E há pessoas sinceras e clementes,
E troncos grossos com seus ramos fracos!
 
E que fazer se a geração decai!
Se a seiva genealógica se gasta!
Tudo empobrece! Extingue-se uma casta!
Morre o filho primeiro de que o pai!
 
Mas seja como for, tudo se sente
Da tua ausência! Ah! como o ar nos falta,
Ó flor cortada, suscetível, alta,
Que assim secaste prematuramente!
 
Eu que de vezes tenho o desprazer
De refletir no túmulo! E medito
No eterno Incognoscível infinito,
Que as ideias não podem abranger!
 
Como em paul em que nem cresça a junca
Sei de almas estagnadas! Nós absortos,
Temos ainda o culto pelos Mortos,
Esses ausentes que não voltam nunca!
 
Nós ignoramos, sem religião,
Ao rasgarmos caminho, a fé perdida,
Se te vemos ao fim desta avenida
Ou essa horrível aniquilação!...
 
E ó minha mártir, minha virgem, minha
Infeliz e celeste criatura,
Tu lembras-nos de longe a paz futura,
No teu jazigo, como uma santinha!
 
E enquanto a mim, és tu que substituis
Todo o mistério, toda a santidade,
Quando em busca do reino da verdade
Eu ergo o meu olhar nos céus azuis!
 
                III
 
Tínhamos nós voltado à capital maldita,
Eu vinha de polir isto tranquilamente,
Quando nos sucedeu uma cruel desdita,
Pois um de nós caiu, de súbito, doente.
 
Uma tuberculose abria-lhe cavernas!
Dá-me rebate ainda o seu tossir profundo!
E eu sempre lembrarei, triste, as palavras ternas,
Com que se despediu de todos e do mundo!
 
Pobre rapaz robusto e cheio de futuro!
Mas sei dum infortúnio imenso como o seu!
Viu o seu fim chegar como um medonho muro,
E, sem querer, aflito e atônito, morreu!...
 
De tal maneira que hoje, eu desgostoso e azedo
Com tanta crueldade e tantas injustiças,
Se ainda trabalho é como os presos no degredo,
Com planos de vingança e ideias insubmissas.
 
E agora, de tal modo a minha vida é dura,
Tenho momentos maus, tão triste, tão perversos,
Que sinto só desdém pela literatura,
E até desprezo e esqueço os meus amados versos!
 
 
 
                ESPLÊNDIDA
 
Ei-la! Como vai bela! Os esplendores
Do lúbrico Versailles do Rei-Sol!
Aumenta-os com retoques sedutores.
É como o refulgir dum arrebol
Em sedas multicores.
 
Deita-se com langor no azul celeste
Do seu landau forrado de cetim;
E os seus negros corcéis que a espuma veste,
Sobem a trote a rua do Alecrim,
Velozes como a peste.
 
É fidalga e soberba. As incensadas
Dubarry, Montespan e Maintenon
Se a vissem ficariam ofuscadas
Tem a altivez magnética e o bem-tom
Das cortes depravadas.
 
É clara como os pós à marechala,
E as mãos, que o Jock Club embalsamou,
Entre peles de tigres as regala;
De tigres que por ela apunhalou,
Um amante, em Bengala.
 
É ducalmente esplêndida! A carruagem
Vai agora subindo devagar;
Ela, no brilhantismo da equipagem,
Ela, de olhos cerrados, a cismar
Atrai como a voragem!
 
Os lacaios vão firmes na almofada;
E a doce brisa dá-lhes de través
Nas capas de borracha esbranquiçada,
Nos chapéus com reseta, e nas librés
De forma aprimorada.
 
E eu vou acompanhando-a, corcovado,
No trottoir, como um doido, em convulsões,
Febril, de colarinho amarrotado,
Desejado o lugar dos seus truões,
Sinistro e mal trajado.
 
E daria, contente e voluntário,
A minha independência e o meu porvir,
Para ser, eu poeta solitário,
Para ser, ó princesa sem sorrir,
Teu pobre trintanário.
 
E aos almoços magníficos do Mata
Preferiria ir, fardado, aí,
Ostentando galões de velha prata,
E de costas voltadas para ti,
Formosa aristocrata!
 
 
 
PROVINCIANAS
 
                I
 
Olá! Bons dias! Em março
Que mocetona e que jovem
A terra! Que amor esparso
Corre os trigos, que se movem
Às vagas dum verde garço!
 
Como amanhece! Que meigas
As horas antes de almoço!
Fartam-se as vacas nas veigas
E um pasto orvalhado e moço
Produz as novas manteigas.
 
Toda a paisagem se doura;
Tímida ainda, que fresca!
Bela mulher, sim senhora,
Nesta manhã pitoresca,
Primaveral, criadora!
 
Bom sol! As sebes de encosto
Dão madressilvas cheirosas
Que entontecem como um mosto.
Floridas, às espinhosas
Subiu-lhes o sangue ao rosto.
 
Cresce o relevo dos montes,
Como seios ofegantes;
Murmuram como umas fontes
Os rios que dias antes
Bramiam galgando pontes.
 
E os campos, milhas e milhas,
Com povos de espaço a espaço.
Fazem-se às mil maravilhas;
Dir-se-ia o mar de sargaço
Glauco, ondulante, com ilhas!
 
Pois bem. O inverno deixou-nos.
É certo. E os grãos e as sementes
Que ficam doutros outonos
Acordam hoje frementes
Depois duns poucos de sonos.
 
Mas nem tudo são descantes
Por esses longos caminhos;
Entre favais palpitantes
Há solos bravos, maninhos,
Que expulsam seus habitantes!
 
É nesta quadra de amores
Que emigram os jornaleiros
Ganhões e trabalhadores!
Passam clans de forasteiros
Nas terras de lavradores.
 
Tal como existem mercados
Ou feiras, semanalmente,
Para comprarmos os gados,
Assim há praças de gente
Pelos domingos calados!
 
Enquanto a ovelha arredonda,
Vão tribos de sete filhos,
Por várzeas que fazem onda,
Para as derregas dos milhos
E molhadelas da monda.
 
De roda pulam borregos;
Enchem então as cardosas
As moças desses labregos
Com altas botas barrosas
De se atirarem aos regos!
 
Ei-las que vêm às manadas
Com caras de sofrimento,
Nas grandes marchas forçadas!
Vêm ao trabalho, ao sustento,
Com foices, sachos, enxadas!
 
Ai o palheiro das ervas
Se o feitor lhe tira as chaves!
Elas chegam às catervas,
Quando acasalam as aves
E se fecundam as ervas!...
 
                II
 
Ao meio-dia na cama,
Branca fidalga o que julga
Das pequenas da su’ama?!
Vivem minadas da pulga,
Negras do tempo e da lama.
 
Não é caso que a comova
Ver suas irmãs de leite,
Quer faça frio, quer chova,
Sem um mamã que as deite
Na tepidez duma alcova?!
.................................................
.................................................
 
 
 
DESASTRE
 
Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito,
Soltando fundos ais e trêmulos queixumes;
Caíra dum andaime e dera com o peito,
Pesada e secamente, em cima duns tapumes.
 
A brisa que balouça as árvores das praças,
Como uma mãe erguia ao leito os cortinados,
E dentro eu divisei o ungido das desgraças,
Trazendo em sangue negro os membros ensopados.
 
Um preto, que sustinha o peso dum varal,
Chorava ao murmurar-lhe: “Homem não desfaleça!”
E um lenço esfarrapado em volta da cabeça,
Talvez lhe aumentasse a febre cerebral.
 
Flanavam pelo Aterro os dândis e as cocottes
Corriam char-à-bancs cheios de passageiros
E ouviam-se canções e estalos de chicotes,
Junto à maré, no Tejo, e as pragas dos cocheiros.
 
Viam-se os quarteirões da Baixa: um bom poeta,
A rir e a conversar numa cervejaria,
Gritava para alguns: “que cena tão faceta!
Reparem! Que episódio!” Ele já não gemia.
 
Findara honrosamente. As lutas, afinal,
Deixavam repousar essa criança escrava,
E a gente da província, atônita, exclamava:
“Que providências! Deus! Lá vai para o hospital!”
 
Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos;
Mornas essências vêm duma perfumaria,
E cheira a peixe frito um armazém de vinhos,
Numa travessa escura em que não entra o dia!
 
Um fidalgote brada e duas prostitutas:
“Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!”
Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas
E conta-se o que foi na loja dum barbeiro.
 
Era enjeitado, o pobre. E, para não morrer,
De bagas de suor tinha uma vida cheia;
Levava a um quarto andar cochos de cal e areia,
Não conhecera os pais, nem aprendera a ler.
 
Depois da sesta, um pouco estonteado e fraco,
Sentira a exalação da tarde abafadiça;
Quebravam-lhe o corpinho o fumo do tabaco
E o fato remendado e sujo da caliça.
 
Gastara o seu salário – oito vinténs ou menos –,
Ao longe o mar, que abismo! e o sol, que labareda!
“Os vultos, lá em baixo, oh! como são pequenos!”
E estremeceu, rolou nas atrações da queda.
 
O mísero a doença, as privações cruéis
Soubera repelir – ataques desumanos!
Chamavam-lhe garoto! E apenas com seis anos
Andara a apregoar diários de dez-réis.
 
Anoitecia então. O féretro sinistro
Cruzou com um coupé seguido dum correio,
E um democrata disse: “Aonde irás, ministro!
Comprar um eleitor? Adormecer num seio”?
 
E eu tive uma suspeita. Aquele cavalheiro,
— Conservador, que esmaga o povo com impostos —,
Mandava arremessar — que gozo! estar solteiro! —
Os filhos naturais à roda dos expostos...
 
Mas não, não pode ser... Deite-se um grande véu...
De resto, a dignidade e a corrupção... que sonhos!
Todos os figurões cortejam-no risonhos
E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.
 
E o desgraçado? Ah! Ah! Foi para a vala imensa,
Na tumba, e sem o adeus dos rudes camaradas:
Isto porque o patrão negou-lhes a licença,
O inverno estava à porta e as obras atrasadas.
 
E antes, ao soletrar a narração do fato,
Vinda numa local hipócrita e ligeira,
Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefato:
“Morreu!? Pois não caísse! Alguma bebedeira!”
 
 
 
ELE
Ao Diário Ilustrado
Era um deboche enorme, era um festim devasso!
No palácio real brilhava a infame orgia
E até bebiam vinho os mármores do paço.
 
O champagne era a rodo, o deus era a Folia;
Entre o rumor febril soltava gargalhadas,
Pálido e embriagado, o herói da monarquia.
 
Riam-se os cortesãos pras taças empinadas,
E referviam sempre os ponches palacianos,
Nas mesas de ouro e prata, em Roma cinzeladas.
 
Era a repercussão dos bodos luculianos!
E os áulicos boçais e os parasitas nobres
Bebiam avidamente os vinhos de mil anos.
 
Desmaiavam na rua, à fome, os Jós, os pobres;
Em peles de leões os régios pés gozavam
E o norte nos salões gemia uns tristes dobres.
 
À louca, os convivas, com força, arremessavam
Garrafas de cristal a espelhos de Veneza
E à chuva, ao vento, ao frio, os povos soluçavam
 
Tremia vinolenta a velha realeza,
Caíam na alcatifa os duques e os criados
E, sujos, com fragor, rolavam sob a mesa.
 
A púrpura nadava em vinhos transbordados,
Cantava um cardeal não sei que chansonnette
E o espírito subia aos cérebros irados.
 
Era um tripúdio infrene o festival banquete!
O rei, bêbado, enfim, vazando o copo erguido,
Quis saudar e caiu, de bruços, no tapete.
 
E o sultão em regra em vinhos imergido,
Pisado pelo chão, rojou-se pra janela,
Como um lagarto imundo, estúpido e comprido.
 
A brisa dessa noite, hiberna noite bela,
Deu na fronte real uma fugaz lufada,
E o rei, agoniado, à luza de cada estrela,
 
Curvou-se e vomitou nas pedras da calçada.
...............................................................................
Na praça, de manhã, havia, ó rei brutal!
Montões de sordidez horrível e avinhada...
 
— Nascera o Ilustrado — o vómito real!
 
 
 
IMPOSSÍVEL
 
Nós podemos viver alegremente,
Sem que venham com fórmulas legais,
Unir as nossas mãos, eternamente,
As mãos sacerdotais.
 
Eu posso ver os ombros teus desnudos,
Palpá-los, contemplar-lhes a brancura,
E até beijar teus olhos tão ramudos,
Cor de azeitona escura.
 
Eu posso, se quiser, cheio de manha,
Sondar, quando vestida, pra dar fé,
A tua camisinha de bretanha,
Ornada de crochet.
 
Posso sentir-te em fogo, escandescida,
De faces cor-de-rosa e vermelhão,
Junto a mim, com langor, entredormida,
Nas noites de verão.
 
Eu posso, com valor que nada teme,
Contigo preparar lautos festins,
E ajudar-te a fazer o leite-creme,
E os mélicos pudins.
 
Eu tudo posso dar-te, tudo, tudo,
Dar-te a vida, o calor, dar-te cognac,
Hinos de amor, vestidos de veludo,
E botas de duraque
 
E até posso com ar de rei, que o sou!
Dar-te cautelas brancas, minha rola,
Da grande loteria que passou,
Da boa, da espanhola,
 
Já vês, pois, que podemos viver juntos,
Nos mesmos aposentos confortáveis,
Comer dos mesmos bolos e presuntos,
E rir dos miseráveis.
 
Nós podemos, nós dois, por nossa sina,
Quando o Sol é mais rúbido e escarlate,
Beber na mesma chávena da China,
O nosso chocolate.
 
E podemos até, noites amadas!
Dormir juntos dum modo galhofeiro,
Com as nossas cabeças repousadas,
No mesmo travesseiro.
 
Posso ser teu amigo até à morte,
Sumamente amigo! Mas por lei,
Ligar a minha sorte à tua sorte,
Eu nunca poderei!
 
Eu posso amar-te como o Dante amou,
Seguir-te sempre como a luz ao raio,
Mas ir, contigo, à igreja, isso não vou,
Lá essa é que eu não caio!
 
 
 
LÁGRIMAS
 
Ela chorava muito e muito, aos cantos,
Frenética, com gestos desabridos;
Nos cabelos, em ânsias desprendidos
Brilhavam como pérolas os prantos.
 
Ele, o amante, sereno como os santos,
Deitado no sofá, pés aquecidos,
Ao sentir-lhe os soluços consumidos,
Sorria-se cantando alegres cantos.
 
E dizia-lhe então, de olhos enxutos:
— “Tu pareces nascida da rajada,
“Tens despeitos raivosos, resolutos:
 
“Chora, chora, mulher arrenegada;
“Lagrimeja por esses aquedutos...
— “Quero um banho tomar de água salgada.”
 
 
 
PRÓ PUDOR
 
Todas as noites ela me cingia
Nos braços, com brandura gasalhosa;
Todas as noites eu adormecia,
Sentindo-a desleixada a langorosa.
 
Todas as noites uma fantasia
Lhe emanava da fronte imaginosa;
Todas as noites tinha uma mania,
Aquela conceção vertiginosa.
 
Agora, há quase um mês, modernamente,
Ela tinha um furor dos mais soturnos,
Furor original, impertinente...
 
Todas as noites ela, ah! sordidez!
Descalçava-me as botas, os coturnos,
E fazia-me cócegas nos pés...
 
 
 
MANIAS
 
O mundo é velha cena ensanguentada.
Coberta de remendos, picaresca;
A vida é chula farsa assobiada,
Ou selvagem tragédia romanesca.
 
Eu sei um bom rapaz, – hoje uma ossada –,
Que amava certa dama pedantesca,
Perversíssima, esquálida e chagada,
Mas cheia de jactância, quixotesca.
 
Aos domingos a deia, já rugosa,
Concedia-lhe o braço, com preguiça,
E o dengue, em atitude receosa,
 
Na sujeição canina mais submissa,
Levava na tremente mão nervosa,
O livro com que a amante ia ouvir missa!
 
 
 
DE TARDE
 
Naquele pic-nic de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
 
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
 
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampamos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia
 
Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!
 
 
 
A FORCA
 
Já que adorar-me dizes que não podes,
Imperatriz serena, alva e discreta,
Ai, como no teu colo há muita seta
E o teu peito é peito dum Herodes,
 
Eu antes que encaneçam meus bigodes
Ao meu mister de ama-te hei de pôr meta,
O coração mo diz – feroz profeta,
Que anões faz dos colossos lá de Rodes.
 
E a vida depurada no cadinho
Das eróticas dores do alvoroço,
Acabará na forca, num azinho,
 
Mas o que há de apertar o meu pescoço
Em lugar de ser corda de bom linho
Será do teu cabelo um menos grosso.
 
 
 
[NUM TRIPÚDIO DE CORTE RIGOROSO]
 
Num tripúdio de corte rigoroso,
Eu sei quem descobriu Vénus linfática,
— Beleza escultural, grega, simpática,
Um tipo peregrino e luminoso. –
 
Foi lâmpada no mundo cavernoso,
Inspiradora foi de carta enfática,
Onde a alma candente mas sem tática,
Se espraiava num canto lacrimoso.
 
Mas ela em papel fino e perfumado,
Respondeu certas coisas deslumbrantes,
Que o puseram, é céus, desapontado!
 
Eram falsas as frases palpitantes
Pois que tudo, é meu Deus, fora roubado
Ao bom do Secretário dos Amantes
 
 
 
[Ó ÁRIDAS MESSALINAS]
 
Ó áridas Messalinas
Não entreis no santuário,
Transformareis em ruínas
O meu imenso sacrário!
 
Oh! A deusa das doçuras,
A mulher! Eu a contemplo!
Vós tendes almas impuras,
Não me profaneis o templo!
 
A mulher é ser sublime,
É conjunto de carinhos,
Ela não propaga o crime,
Em sentimentos mesquinhos.
 
Vós sois umas vis afrontas,
Que nos dão falsos prazeres,
Não sei se sois más se tontas,
Mas sei que não sois mulheres!
 
 
 
EU E ELA
 
Cobertos de folhagem, na verdura,
O teu braço ao redor do meu pescoço,
O teu fato sem ter um só destroço,
O meu braço apertando-te a cintura;
 
Num mimoso jardim, ó pomba mansa,
Sobre um banco de mármore assentados.
Na sombra dos arbustos, que abraçados,
Beijarão meigamente a tua trança.
 
Nós havemos de estar ambos unidos,
Sem gozos sensuais, sem más ideias,
Esquecendo para sempre as nossas ceias,
E a loucura dos vinhos atrevidos.
 
Nós teremos então sobre os joelhos
Um livro que nos diga muitas cousas
Dos mistérios que estão para além das lousas,
Onde havemos de entrar antes de velhos.
 
Outras vezes buscando distração,
Leremos bons romances galhofeiros,
Gozaremos assim dias inteiro,
Formando unicamente um coração.
 
Beatos ou apagãos, via à paxá,
Nós leremos, aceita este meu voto,
O Flos-Sanctorum místico e devoto
E o laxo Cavaleiro de Faublas...
 
 
 
LÚBRICA...
 
Mandaste-me dizer,
No teu bilhete ardente,
Que hás de por mim morrer,
Morrer muito contente.
 
Lançastes, no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cenas de rapazes!
 
Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!
 
Contudo, um teu olhar
É muito mais fogoso,
Que a febre epistolar
Do teu bilhete ansioso:
 
Do teu rostinho oval
Os olhos tão nefandos
Traduzem menos mal
Os vícios execrandos.
 
Teus olhos sensuais,
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.
 
As grandes comoções
Tu neles, sempre, espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...
 
Teus olhos imorais,
Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais
Que muitas bibliotecas!
 
 
 
HEROÍSMOS
 
Eu temo muito o mar, o mar enorme,
Solene, enraivecido, turbulento,
Erguido em vagalhões, rugindo ao vento;
O mar sublime, o mar que nunca dorme.
 
Eu temo o largo mar, rebelde, informe,
De vítimas famélico, sedento,
E creio ouvir em cada seu lamento
Os ruídos dum túmulo disforme.
 
Contudo, num barquinho transparente,
No seu dorso feroz vou blasonar,
Tufada a vela e n'água quase assente,
 
E ouvindo muito ao perto o seu bramar,
Eu rindo, sem cuidados, simplesmente,
Escarro, com desdém, no grande mar!
 
 
 
CINISMOS
 
Eu hei de lhe falar lugubremente
Do meu amor enorme e massacrado,
Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.
 
Hei de expor-lhe o meu peito descarnado,
Chamar-lhe minha cruz e meu Calvário,
E ser menos que um Judas empalhado.
 
Hei de abrir-lhe o meu íntimo sacrário
E desvendar a vida, o mundo, o gozo,
Como um velho filósofo lendário.
 
Hei de mostrar, tão triste e tenebroso,
Os pegos abismais da minha vida,
E hei de olhá-la dum modo tão nervoso,
 
Que ela há de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há de chorar, chorar enternecida!
 
E eu hei de, então, soltar uma risada...
 
 
 
ARROJOS
 
Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.
 
Se ela deixasse, extático e suspenso
Tomar-lhe as mãos mignonnes e aquecê-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o lume das estrelas.
 
Se aquela que amo mais que a luz do dia,
Me aniquilasse os males taciturnos,
O brilho dos meus olhos venceria
O clarão dos relâmpagos noturnos.
 
Se ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando a suas pernas com as minhas,
Eu desfaria o Sol como desfaço
As bolas de sabão das criancinhas.
 
Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os pés abalaria.
 
Se aquela por quem já não tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos róseos paraísos
E a Lua afogaria nos meus braços.
 
Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas,
Eu ergueria os vales mais profundos
E abateria as sólidas montanhas.
 
E se aquela visão da fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.
 
 
 
VAIDOSA
 
Dizem que tu és pura como um lírio
E mais fria e insensível que o granito,
E que eu que passo aí por favorito
Vivo louco de dor e de martírio.
 
Contam que tens um modo altivo e sério,
Que és muito desdenhosa e presumida,
E que o maior prazer da tua vida,
Seria acompanhar-me ao cemitério.
 
Chama-te a bela imperatriz das fátuas,
A déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que és um molde alabastrino,
E não tens coração, como as estátuas.
 
E narram o cruel martirológio
Dos que são teus, ó corpo sem defeito,
E julgam que é monótono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.
 
Porém eu sei que tu, que como um ópio
Me matas, em desvairas e adormeces,
És tão loura e dourada como as messes
E possuis muito amor... muito amor-próprio.
 
 
 
LOURA
 
Eu descia o Chiado lentamente
Parando junto às montras dos livreiros
Quando passaste irônica e insolente,
Mal pousando no chão os pés ligeiros.
 
O céu nublado ameaçava chuva,
Saía gente fina de uma igreja;
Destacavam no traje de viúva
Teus cabelos de um louro de cerveja.
 
E a mim, um desgraçado a quem seduzem
Comparações estranhas, sem razão,
Lembrou-me este contraste o que produzem
Os galões sobre os panos de um caixão.
 
Eu buscava uma rima bem intensa
Para findar uns versos com amor;
Olhaste-me com cega indiferença
Através do lorgnon provocador.
 
Detinham-se a medir tua elegância
Os dandies com aprumo e galhardia;
Segui-te humildemente e a distância,
Não fosses suspeitar que te seguia.
 
E pensava de longe, triste e pobre,
Desciam pela rua umas varinas
Como podias conservar-te sobre
O salto exagerado das botinas.
 
E tu, sempre febril, sempre inquieta,
Havia pela rua uns charcos de água
Ergueste um pouco a saia sobre a anágua
De um tecido ligeiro e violeta.
 
Adorável! Na ideia de que agora
A branda anágua a levantasse o vento
Descobrindo uma curva sedutora,
Cada vez caminhava mais atento.
 
Mas súbito parei, sentindo bem
Ser loucura seguir-te com empenho,
A ti que és nobre e rica, que és alguém,
Eu que de nada valho e nada tenho.
 
Correu-me pelo corpo um calafrio,
E tive para o teu perfil ligeiro
Este olhar resignado do vadio
Que fita a exposição de um confeiteiro.
 
Vi perder-se na turba que passava
O teu cabelo de ouro que faz mal;
Não achei essa rima que buscava,
Mas compus este quadro natural.