Sunday, August 28, 2016

Análise de canção e Memorial do Convento pelo 12.º 7.ª



Classificação que atribuo é a da primeira versão (a não ser que a reformulação tivesse sido demasiado trapalhona e achasse dever baixar essa primeira nota). Em alguns casos, o texto foi entretanto bastante melhorado, mas classificação não se afastará da do que me foi apresentado na primeira versão.
Algumas das referências podem ser ainda aperfeiçoadas (letristas e compositores devem ser confirmados, nomes e datas de álbuns, etc.). A pouco e pouco irei acrescentando esses dados (para o que peço, é claro, a colaboração dos autores das análises ou de outros colegas).

Carolina
Carolina (Suf (-)) || “O Amor é Assim” (HMB / Héber Marques ?), Life the National Theatre of Namíbia, 2016 // José Saramago, Memorial do Convento, 57ª edição, Porto Editora, 2016, passim
A música “O Amor é Assim”, da banda HMB, tem muito a ver com a história das duas personagens principais, Blimunda e o Baltasar Sete-Sóis de Memorial do Convento. Estas duas personagens, ao longo da história, mostram a sua paixão e como o seu amor é vivido e é bastante diferente dos da época (“O amor é assim pelo menos para mim”), pois para eles aquela forma de amar era a correta e não a que era imposta (normalmente, as pessoas eram obrigadas a casar, os familiares é que escolhiam com quem é que os filhos deviam casar, não podendo ser eles a escolher, vivendo assim um casamento de fachada). Naquela época só após o casamento é que o casal poderia ter relações, mas com Blimunda e Baltasar foi bastante diferente, pois eram um casal moderno para a época, não seguindo esses passos convencionais.
A história deles começou num local um pouco inapropriado para duas pessoas se conhecerem, pois foi no auto de fé, em que a mãe de Blimunda, Sebastiana Maria de Jesus, foi julgada por ser considerada uma cristã-nova e ter visões. Os dois estavam um ao lado do outro e acabaram por se olhar, percebendo Baltasar que aquela poderia ser a mulher da vida dele, pois ele fica encantado por ela “Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, está calado, apenas a olhar fixamente Blimunda, e de cada vez que ela o olha ele sente um aperto na boca do estomago, porque olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros noturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra” (p. 58). Após terminado o auto de fé, Blimunda foi para casa acompanhada do Padre Bartolomeu Lourenço, mas deixou a porta aberta para que Baltasar entrasse. Provavelmente, fê-lo porque percebeu a ligação que teve com ele, pela troca de olhares no auto de fé. Foi aí que a paixão se iniciou, pois foi aí que começaram a falar e a conhecerem-se melhor e até partilharam a mesma colher ao jantar sem problemas. Era como se já se conhecessem há bastante tempo.
Baltasar não tinha uma mão, a mão esquerda, pois tinha-a perdido na guerra, mas isso nunca foi um entrave para a relação, até porque Blimunda também tinha algo diferente mas que não se via fisicamente: ela conseguia ver os outros por dentro, quando em jejum veria. Acabou por prometer a Baltasar que nunca o veria por dentro. Ainda nessa noite, acabaram por passar a noite juntos (“A ti me entreguei e foi de uma vez”), sendo esse um ato um pouco “louco” para aquela época, pois tinham-se conhecido naquele dia (“Num gesto um pouco louco sem pensar em razões nem porquês”). Desde aí, nunca mais se largaram, vivendo o seu amor, até acabaram por construir em conjunto a passarola a mando do padre Bartolomeu Lourenço. Blimunda acaba por receber o apelido Sete-Luas dado pelo Padre Bartolomeu Lourenço, devido à ligação que tinha com Baltasar Sete-Sois, sendo assim ela Blimunda Sete-luas e ele Baltasar Sete-Luas: (Tu és Sete-Sóis porque vês as claras, tu serás Sete-luas porque vês às escuras e, assim, Blimunda, que até aí só se chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-luas.” (p. 96).
Baltasar acabou por desaparecer, deixando Blimunda completamente desesperada, passando nove anos à procura dele por todo lado e perguntando a toda a gente por ele, pois ela nunca perdeu a esperança de o encontrar um dia (“Eu não perco a esperança, espero a bonança e nela, avança o mesmo amor”). Por fim, acaba por encontrar Baltasar, mas no pior sitio que ela o poderia encontrar, pois ele estava num auto de fé e a ser condenado, o que a levou a pensar que o ia perder, e ela não queria isso (“Não quero ficar sem”). Blimunda, desesperada e a chorar, acaba por recolher a sua vontade, para que ficassem assim juntos para sempre e o amor deles não acabasse: “E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete- Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda” (p. 400).

Leonor F.

Leonor F. (Bom + /Muito Bom -) || “Russias” (Sting/Sting), The Dream of Blue Turtles,1985 // José Saramago, Memorial do Convento, 56.ª edição, Porto, Porto Editora, 2014, p. 399
Há milhares de anos que a Humanidade luta entre si, há guerras sangrentas e vidas inocentes que são desperdiçadas por simples desavenças territoriais ou falsas ideologias. Mas, no meio de tantos motivos, há um que se destaca de entre os demais, por ser um pretexto mais óbvio para a conquista de poder que os seus congéneres: a guerra por motivos religiosos. Nesse tópico, não falamos apenas de campos de batalha, sangue, soldados, capitães e generais rodeados por estrondos e gritos, fixados em estratégias antigas e inovadores, mas também de perseguições, crimes inventados e “castigos divinos”, utilizados para castigar aqueles que, por cultura, herança ou decisão, prestam culto a uma entidade diferente da da maioria.
Em Memorial do Convento, de José Saramago – como, de resto, acontece em larguíssima fatia da sua obra – salta à vista a crítica religiosa, a contestação a uma Igreja que, defensora da paz e do amor, não resistiu, durante séculos, a torturar aqueles que dela discordavam. Destacam-se especialmente os autos de fé, um castigo de particular crueldade aplicado, pela Inquisição, aos “hereges”, categoria que inclui bruxas, marginais, judeus e até marionetistas! Durante uma quase eternidade, o braço armado da Igreja governou as populações pelo terror, incentivando-as a delatar os seus vizinhos e conhecidos que apresentassem “comportamentos suspeitos”, apenas para que os suspeitos fossem levados, torturados até confessarem os crimes de que eram acusados (ainda que não os houvessem cometido) e queimados na fogueira. Qualquer um podia ser alvo deste tratamento, e isso levava ao isolamento, a desconfiança, enfim, à exclusão social de todos os que não agissem conforme a norma.
Terror semelhante encontramos nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, durante a Guerra Fria, quando o mundo tremia todos os dias na iminência de uma guerra nuclear. De um lado, a União Soviética, liderada por Kruchtchev; do outro, os Estados Unidos, liderados, em 1985, por Reagan. De ambas as partes, bombas atómicas e de hidrogénio, prontas a ser disparadas na direção do inimigo. É neste contexto social e político que ressurge Sting, cantor e compositor, com o seu êxito, Russians. Nesta canção que, sem dúvida, marcou a geração que a ouviu, cansada das guerras de que os pais falavam, fartas de dor e desespero, Sting fala dos acontecimentos políticos da época, referindo que tanto o presidente russo, que prometera a destruição do mundo Ocidental, como o americano, que garantira a proteção dos seus, estão errados porque “os russos também amam os seus filhos” (“Russians love their children too”). Ou seja, independentemente daquilo que a esfera governativa e os Media transmitiam ao público, a verdade é que os russos também não queriam entrar em guerra porque, tal como os americanos, tinham algo maior a proteger: as suas famílias.
Regressando à obra, o maior paralelismo encontra-se no último capítulo, no derradeiro encontro entre Baltasar e Blimunda, o primeiro na fogueira, a última a observar a cena. Impotente, questiona uma mulher que “desfruta” o “espetáculo” acerca dos condenados, respondendo ela, de forma seca e desinteressada, quem são. Apesar de “partilhar com eles a mesma raça, independentemente das diferenças ideológicas” (“we share the same biology/regardless of ideology), o medo e a indiferença impulsionados pela Inquisição – que, na música, corresponde aos presidentes de ambos os blocos – levam a melhor, e a mulher responde-lhe que “aquele além e aquela são pai e filha que vieram por culpas de judaísmo, e o outro, o da ponta, é um que fazia comédias de bonifrates (…)”. A maior prova do seu desprezo para com os seus semelhantes é que, ao colo, carrega um filho, que assiste, com o entusiasmo da mãe, ao assassinato de seres humanos, esquecendo-se que, provavelmente, aquelas pessoas também amavam os seus filhos.

Anastasiia
Anastasiia (Bom +) || “Arsonist’s Lullaby” (Andrew Hozier-Byrne/Andrew Hozier-Byrne), Hozier, 2014 //  José Saramago, Memorial do Convento, 57.ª edição, Porto, Porto Editora, 2014, passim
Será que, por serem tão débeis as vontades do povo miúdo, cujas almas são exaltadas pelo sangue de bichos enfurecidos e cujos corações só ardem nas procissões cheias de chamas, são elas contadas por milhares de cada vez, ou é por ser o desejo de fazer voar a coisa que Deus não tinha concebido voadora um pecado tão grande? Será que são todas as vontades iguais, «[nuvens fechadas]» (p. 135) que sustentam Deus e «[seguram] as estrelas» (p. 135), olhando elas para nós, centenas de milhares de formigas? Ou será que uma é capaz, na sua grandiosa loucura, de condenar as vidas, apenas para ver concretizado o seu sonho ardente?
Teve razão o padre Bartolomeu, mas não foi completo o seu conhecimento, devido à época e ao seu entusiasmo ofuscante também, talvez: não são só duas mil vontades reunidas num frasco de vidro que vão mover a escandalosa Passarola, mas porque há duas, fomentadas pelo silêncio do amor profundo e segredo da conspiração, que fazem das mãos ferramentas do poder divino, poder de criar. Trazemos dentro de nós um pedaço do céu e nunca mais parámos de a ele aspirar  «[our] fire / And the place [we] need to reach (o [nosso] fogo / E o lugar onde o [precisamos] buscar)».
Mas a Terra gira, tal como Deus-maneta a fez e não o homem que «é quase Deus».
Homens são muitos, alguns mais unos com Deus que outros, e por isso se constrói um convento em Mafra   projeto sublime, símbolo do poderio megalómano real, da fertilidade do monarca e da bênção divina, mas também da riqueza brasileira, que é onde nasceu o outro, que, pela sua natureza, rejeita o fundamento da criação que o restringe; que é uno com Deus porque o serve e porque se acha dele mais próximo, visto que sabe o segredo da sua respiração.
E porque um reino é um formigueiro, e o mundo um formigueiro de reinos, tudo é círculos e repetições e vontades   um quer cumprir a promessa, logo outro tem que perder a vida; morre um menino de sangue azul igual ao outro, que em Mafra deixa a mãe cheia de vontade de iludir a morte; deseja o infante dominar o que nunca lhe foi destinado e vive repleto de desejo o músico, que procura ser dono do que já é dele.
Vive neste mesmo reino abençoado uma trindade, divina ou não, pouco se sabe  «maneta e visionária» (p. 160), falta a um e a outra sobra, e um padre herético, «a quem chamam o Voador» (p. 63) — e por serem quem devem ser, pois «Deus é uno em essência e trino em pessoa» (p. 187). Nem precisam de confessar, nada de «I knew that something would always rule me [Eu sabia que alguma coisa iria me sempre dominar]», porque põem-se de parte os defeitos quando se partilha a alma com alguém e quando cada dia é mantido em segredo pelo perigo mortal do fogo inquisidor.
A Baltasar, falta-lhe a mão para abraçar melhor a mulher ao peito, para a sustentar como o homem deve, e faz-lhe companhia asfixiante o seu fantasma, que ganhou com a guerra, e os horrores da mesma, que o alertam em tempos pacíficos. A Blimunda, anda ela alienada, pela sua origem e pelo dom que tem, pois ver o que tem o Homem por dentro não se deve saber pela filha a quem tiraram a mãe visionária. A Bartolomeu, não lhe falta nada a não ser a pureza da fé; atreve-se a seduzir e levar à heresia pela força da vontade e eloquência, mas, em vez de rejeitar o paraíso, pretende alcançar o céu.
Juntos, aos três não falta nada; a vontade cresce e brilha, tal como brilha o gancho de Baltasar ou os olhos de Blimunda em jejum ou a mente do padre Bartolomeu, educado em todas as partes do mundo. Levantará voo a Passarola, tal como se libertará a vontade de Baltasar, porque o mundo é um formigueiro, onde tudo é círculos e repetições e vontades.

Paulo
Paulo (Bom -/Bom (-)) || “História” (Diogo Piçarra/Diogo Piçarra), do=s, 2017 // José Saramago, Memorial do Convento, 50.ª edição, Alfragide, Caminho, 1994, passim
Um dos eixos narrativos da obra está focalizado na paixão  entre as personagens Baltasar e Blimunda. O facto de o seu casamento não ser legal torna-a diferente das outras paixões, para além da forma como ambos interagem, sem grandes demonstrações de amor. Esta canção pode ser vista como uma despedida entre os dois antes do desaparecimento de Baltasar, como se o ex-soldado quisesse dizer a Blimunda o que sentia de forma direta, algo que não tinha feito. A canção começa com “Nunca fui tão honesto até aqui / Pois nunca disse o quanto eras para mim”, lembrando-nos a incapacidade de Baltasar em mostrar os seus sentimentos em relação a Blimunda. Os dois tratavam-se normalmente, não aparentavam ser um casal, apesar de dormirem juntos e terem relações como refere o narrador – “Era ainda noite fechada, Baltasar acordou, puxou para si o corpo adormecido, morna frescura enigmática, ela murmurou o nome dele, ele disse o dela, estavam deitados na cozinha, sobre duas mantas dobradas, e silenciosamente, para não acordarem os pais que dormiam na casa de fora, deram-se um ao outro”. Aparece apenas um elemento digno de amor nesta citação: ambos sussurrarem o nome do outro. De resto, faziam amor como se fosse algo normal e sem qualquer demonstração de afeto (embora o mesmo existisse).
A relação entre ambos dava resultado, apesar de tudo. Estavam unidos contra as dificuldades e os obstáculos, ajudavam-se mutuamente e sabiam praticamente tudo um do outro, tinham confiança para conversar sobre coisas pessoais (por exemplo, Blimunda contou o seu segredo, ainda que pressionada, “obrigada”, por Baltasar). Blimunda conheceu Baltasar no dia em que viu a sua mãe partir da sua vida, ir para Angola (como sentença, por alegar ter visões) e deixá-la sozinha. Baltasar foi o apoio da jovem, permitindo que a mesma continuasse feliz e superasse a ausência da mãe – o que a pode relacionar com a canção (“No dia em que apareceste eu renasci”) –, a aproximação entre os dois foi rápida, “casaram-se” (não de forma legal) horas depois de se conhecerem e permaneceram juntos.
O resto da canção pode ser visto como se fosse mensagem mútua, de Baltasar para Blimunda e vice versa. Baltasar desapareceu e Blimunda procurou-o, podemos assumir que o mesmo que lhe disse o que vem dito na canção – “E mesmo que o tempo / Passe la fora / Eu juro que sou o único que nunca te abandona / E mesmo que o vento te leve agora / Sempre serás o fim e o início da minha história” –; por outro lado, Baltasar apoiou-a a superar as saudades da progenitora e permitiu-lhe confiar nele, especialmente após o mesmo aceitar o seu dom tal como ela aceitara os seus problemas (não ter um braço, pobreza, vida passada na guerra…), o que remete para outra parte da canção – “Nunca estive tão perto como aqui / De estar completo por te ver feliz / E sei que nunca te agradeci / Por seres o que nunca fui pra ti”
Apesar de todas as dificuldades, pouca demonstração de amor e afeto, particularidades do casal e outros fatores, a verdade é que este amor sempre foi real, foi algo verdadeiro que não foi expresso através de palavras mas de momentos e atos: a forma como se olhavam, o facto de estarem sempre lado a lado e se aceitarem mutuamente, nunca colocando nada em causa, a sua capacidade de entendimento, evitando conflitos entre os dois, e a lealdade de ambos para com o outro. Tinham algo que faz parte do amor, a inocência; não tinham maldade nem segundas intenções, simplesmente amavam o outro de forma genuína.

Beatriz Belo
Beatriz Belo (Suf (-)) // “Luz do céu” (? / ?), O Corcunda de Notre Dame, 1996 // José Saramago, Memorial do Convento, 57.ª edição, Porto, Porto Editora, 2016, pp 51-60
Após a primeira audição da canção “Luz do Céu” do filme Corcunda de Notre Dame, é possível encontrar semelhanças com a história de amor de Baltasar e Blimunda em Memorial do Convento, tendo sempre presente a ajuda do padre Bartolomeu Lourenço, que auxiliou essa mesma história a proporcionar-se. No que toca à canção, a mesma trata de um jovem conhecido especialmente pelas suas deformidades que tem o sonho de encontrar o amor e ser feliz. O mesmo acontece com Baltasar que, sendo maneta, vindo da guerra, nunca esperou encontrar o amor em Lisboa, onde conheceria Blimunda.
Tudo começou quando Blimunda observava sua mãe, “Sebastiana Maria de Jesus, um quarto de cristã-nova” (p. 55), a ser julgada por fingimento e efeito demoníaco num auto de fé e a ser degredada para Angola. Blimunda encontrava-se relativamente perto de Baltasar, mais conhecido por Sete-Sóis, quando lhe fez uma pergunta cheia de simplicidade, “Que nome é o seu”.
Na canção, quando se ouve “Eu queria tanto amar / Amar com tal fervor / Eu queria tanto esse amor”, associamos esses versos de imediato a Baltasar, que chegou a Lisboa “com uma mão atrás e outra à frente”, sem ter qualquer esperança da vida, quando tudo o que queria era uma pensão e nem isso lhe davam. Nos versos “No meu véu / Não desce nunca a luz do céu”, a luz referida é um eventual amor que tanto o Corcunda de Notre Dame, como Baltasar, nunca tiveram. O verso seguinte, “De súbito um anjo sorriu pra mim e deu-me um beijo sem nenhum pavor”, já podemos associá-lo ao momento em que Baltasar fica petrificado com os olhos de Blimunda (“porque olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros noturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra.”, p. 58): cada vez que se desvia deles tem ainda mais vontade de olhar para se recordar de que cor eles são.
Em relação à caracterização do amor destas duas personagens em Memorial do Convento, podemos caracterizá-lo como intenso, verdadeiro e simples, como se pode comprovar com a noite que serviu para unificar um amor à primeira vista, em que, ao acordar e para comprovar a sua pureza, “Com as pontas dos dedos médio e indicador humedecidos nele, Blimunda persignou-se e fez uma cruz no peito de Baltasar, sobre o coração.” (p. 60), e a jovem, sabendo do seu “poder” de ver por dentro, quando Baltasar abriu os olhos, disse “Nunca te olharei por dentro.” (p. 60). Esta transparência de amor pode ser comparada com a letra nos seus últimos versos: “Oiço sonhar assim com um secreto amor e quando sinto um repicar / A escura torre vai brilhar / Vejo descer a luz do céu”.
Blimunda, que vê por dentro, e Baltasar, um soldado maneta vindo da guerra, formam assim um par invulgar e muito moderno para a época onde estavam inseridos pois fugiu à norma dos casamentos arranjados pelas famílias, sendo este um amor à primeira vista de que emanam sinceridade e carinho e que não foi necessário chancelar pelo casamento na igreja para provar que era sentido e verdadeiro.

Sara
Sara (Suf (+)) || «Maldição» (Amália Rodrigues/Armando Vieira Pinto e Joaquim Campos), Fado Primavera, 1992 // José Saramago, Memorial do Convento, 57.ª edição, Porto, Porto Editora, 2016, pp. 9-17, 109-124
«Maldição», uma canção interpretada por Amália Rodrigues, pode relacionar-se com dois pontos do romance de José Saramago,  Memorial do Convento.
O «eu lírico» da canção sente-se muito desolada e entristecida pelo facto de não se achar amada, expondo a sua agonia face ao seu amado. Este sentimento pode ser relacionado com a personagem de D. Maria Ana.
D. Maria Ana, rainha de Portugal, mulher de D. João V, sabe que não é amada por D. João V e que o seu suposto “amor” foi arranjado, com o intuito de gerar um herdeiro ao trono português («D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje não emprenhou.», p. 9).
D. Maria Ana é uma rainha fortemente católica que se vê submetida a uma imensa solidão, sem o amor por parte do seu marido egoísta, que só se preocupa com o seu prazer e com o ato de gerar um herdeiro português.
É nesta situação que o romance e a canção têm pontos em comum. D. Maria Ana e o sujeito poético da música sentem face ao seu “amado” que são «Dois amantes desunidos» (passo presente no poema cantado por Amália Rodrigues), e que o seu destino nunca se iria cruzar se não fosse exclusivamente planeado.
D. Maria Ana viveu um “amor” que não existia de nenhum dos lados: o que havia era um sentimento recíproco de não sentir absolutamente nada de amoroso face ao seu cônjuge.
Daí D. Maria Ana começar a sonhar com o infante D. Francisco. A rainha não se honra por estar a sonhar com outro homem sem ser o seu marido, mas fica magoada e angustiada novamente quando se apercebe de que o infante apenas queria casar com ela (caso seu irmão morresse) para poder ser ele o rei de Portugal — "Se desta melancolia, que tão gravemente atormenta sua majestade, não houver remédio, e quiser Deus que tão cedo lhe acabe a vida terrena para mais cedo principiar a eterna, eu poderia, como irmão que vem a seguir, portanto de família chegada, cunhado de vossa majestade e mui dedicado servidor de vossa beleza e virtude, eu poderia, ouso dizer, subir ao trono e, de caminho ao vosso leito, casando nós em boa e canónica forma, que por méritos de homem posso garantir que não sou menos que meu irmão”, p. 123. Com isso em mente «morreu o sonho de D.Maria Ana» e «os sonhos da rainha não ressuscitarão», p. 124.
O sujeito do poema cantado por Amália Rodrigues  também se pode aplicar a um sentimento proibido, de um amor/atração que só é sentido por uma pessoa, neste caso o sujeito da canção e D. Maria Ana. Temos a confirmação disso na parte da música em que  Amália Rodrigues canta «Sou feliz e desgraçada / Que sina a tua, meu peito / Que nunca está satisfeito / Que dás tudo e não tens nada».
O “coração” também tem um papel muito importante nas parecenças destas duas personagens, D. Maria Ana e o sujeito lírico do poema cantado, pois nenhuma delas  segue o seu coração: não sabem o que fazer em relação aos seus sentimentos, será que deveriam segui-los ou, simplesmente, ignorá-los?. É uma questão que não pode ser respondida pelo eu lírico do poema cantado, mas pode ser respondida pela personagem de D. Maria Ana, que deverá seguir o seu caminho ao lado de um homem que não ama e que  não a ama a ela, pois o seu dever é gerar um herdeiro do trono português.
E isto por muito que estas duas personagens sejam parecidas, pois ambas sofrem («Por ti sofro e vou morrendo / Não te encontro, nem te entendo / Amo e odeio sem razão») por amores ou estão condenadas à angústia, agonia e desilusão, ou pelo facto de não entenderem se o que sentem é amor ou simplesmente carinho (como é o caso de D. Maria Ana ao sonhar com o infante D. Francisco, querendo este apenas subir ao trono).
Ambas as personagens sabem que «A gelada solidão / Que tu me dás coração / Não é vida nem é morte / É lucidez, desatino / De ler o próprio destino / Sem poder-lhe mudar a sorte». Ambas sabem de que terão de continuar a viver a sua vida o seu fado, sem saber se será «destino ou maldição».

Sebastião

Sebastião (Bom +/ Muito Bom -) || "Adeus tristeza" (Fernando Tordo / Fernando Tordo), Revolução, 2013 // José Saramago, Memorial do Convento, 57.ª edição, Porto, Porto Editora, 2016, pp. 211-217
A narrativa do Memorial do Convento é exímia na produção de personagens marcantes, com as quais o leitor desenvolve uma relação próxima ao longo da obra. Uma dessas figuras, talvez a mais complexa, por certo a mais intelectual, é Bartolomeu Lourenço de Gusmão, padre crítico da Igreja, inventor e próximo do rei. O seu percurso é notável, desde a vida académica – exemplar – com qualidades reveladas desde cedo, como a capacidade de recitar, sem preparação, vários poemas históricos, até ao seu desejo de criar, que o leva, ainda no Brasil, à construção do seu primeiro engenho. Nada que se compare, contudo, ao sonho que o traz a Portugal.
Quando chega, rapidamente desenvolve uma relação com D. João V, que deposita as maiores esperanças no projeto. Não é razão para menos. Afinal, poder-se-á tratar do maior invento de que há memória, que fará com que as aves partilhem, finalmente, o céu. Para muitos, aliás, já o fazem, ainda que no sentido espiritual, mas, mesmo assim, considera-se uma heresia esta tentativa de chegar a espaço sagrado por parte de um padre que parece querer alcançar aquilo que apenas Deus e as criaturas por si escolhidas alcançam. Assunto para mais tarde. Logo se cria, e isso é desde já relevante, uma espécie de comunidade predisposta a fazer pouco do trabalho de Bartolomeu, pronta para o atacar nos seus possíveis falhanços. É pela existência deste último grupo, aliada aos "apoiantes" do génio, que é possível a analogia com os versos de "Adeus tristeza", de Fernando Tordo – "Na minha vida tive palmas e fracassos / (...) Na minha vida tive beijos e empurrões" (v. 1, v. 7).
São várias as críticas que o padre recebe, tal como os receios de que esteja a cometer uma heresia aos olhos da Inquisição, cuja força teme, mesmo contando com o apoio do rei. Ainda assim, nada supera o desejo de voar. A situação encontra paralelo em "Esqueci a fome num banquete de ilusões" (v. 8). Tudo se minimiza quando comparado com a grandiosidade do projeto da passarola e do que esta representa, não apenas para Bartolomeu, mas para Baltasar, Blimunda, D. João V, Scarlatti e, no fundo, toda a Humanidade.
O refrão de Fernando Tordo dir-se-ia que antevê uma reviravolta na relação entre o sonhador eclesiástico e quem mal lhe quer – "Adeus tristeza, até depois / Chamo-te triste por sentir que entre os dois / Não há mais nada pra fazer ou conversar / Chegou a hora de acabar" (vv. 13-16). Num certo dia, Bartolomeu regressa à quinta do duque de Aveiro, apressado, em fuga ao Santo Ofício. O engenho é o único modo que tem de fugir e o próprio decide, com os seus dois ajudantes, arriscar. A máquina estremece, mas sobe. Rapidamente se afasta da quinta, depois de Lisboa, e Bartolomeu, lá do alto, tudo vê, com um orgulho enorme – "(...) se me visse el-rei, se me visse aquele Tomás Pinto Brandão que se riu de mim em verso, se o Santo Ofício me visse, saberiam todos que sou filho predileto de Deus, eu sim, que estou subindo ao céu por obra do meu génio (...)" (p. 215). Curto e intenso, o momento em que se concretiza o trabalho de uma vida, o trabalho de uma espécie, o trabalho de um homem que enfrenta a poderosíssima organização da Inquisição, que tudo arrisca para poder, finalmente, despedir-se da tristeza. No fundo, não mais a verá.

Inês
Inês (Bom +) || “They Dance Alone” (Sting/Sting), Nothing Like the Sun, 1987 // José Saramago, Memorial do Convento, 27.ª edição, Lisboa, Caminho, 1998, pp. 309-331
Entre 1973 e 1990, o Chile viveu uma ditadura militar presidida pelo general Augusto Pinochet. O regime foi caracterizado pela supressão sistemática de partidos políticos e pela perseguição de dissidentes a uma extensão que sem precedentes na história do Chile. Ao todo, o regime deixou mais de três mil mortos ou desaparecidos; torturou milhares de prisioneiros e forçou duzentos mil chilenos ao exílio. A repressão sentida veio servir de inspiração ao cantor Sting, que compõe “They dance alone”, canção destinada às hipotéticas mulheres dos sentenciados, mostrando a consideração por estas, face à condenação dos maridos: “They are dancing with the missing / They are dancing with the dead” // ”Elas dançam com os desaparecidos / Elas dançam com os mortos”.
Quer na composição de Sting, quer no romance de Saramago, são enumeradas as consequências de abusos do poder (no caso da canção, o poder de um ditador repressivo; no caso do romance, o poder absoluto de um rei vaidoso que impunha ao seu povo, através de trabalhos forçados, a edificação do Convento prometido). “They Dance alone” partilha a perspectiva abordada em Memorial do Convento,  de solidariedade para com os oprimidos, assumindo-se em ambos os casos uma postura defensiva do operariado, criticando-se implicitamente as arbitrariedades.
A visão do sujeito poético na canção acaba por lembrar, de certo modo, a reflexão de Maria Bárbara, presente no capítulo XXII, sobre as implicações que o seu nascimento teve na vida de milhares de pessoas, sintetizadas na máxima: “Nascer é morrer”.
No decorrer da viagem que levaria a infanta ao encontro do seu prometido, Maria Bárbara depara-se com “um pardo ajuntamento de homens, alinhados na beira do caminho e atados uns aos outros por cordas, seriam talvez uns quinze”. Deste modo, Maria Bárbara tomava a consciência das consequências que a edificação do Convento em sua honra teria no povo português sob forma de um “lastimoso espectáculo de grilhetas”. Por sua vez, tal como acontece na canção, os oprimidos não teriam opção de escolha, estando a sua falta de vontade patente nas cordas que os atavam, sua única forma de manifestação: “não vão de vontade, se os soltam fogem”: “It’s the only form of protest they´re allowed / I’ve seen their silent faces scream so loud” // É a única forma de protesto a que estão autorizados / Eu já vi as suas faces silenciosas gritarem altíssimo”.
Por sua vez, a construção do convento exigira também a realização de negociatas que envolveram as vendas compulsivas dos terrenos: “Então porque a vendeu, Foi el-rei quem a quis, a minha e outras, E para que as quis el-rei, Vai mandar construir ali um casamento de frades”. Contra isto, afirma-se paralelamente em Sting: “It´s my foreign Money that supports you / One day the money’s going to stop / No wages for your torture” // “É o meu dinheiro externo que te suporta / Um dia acabar-se-á o dinheiro / Deixarão de haver orçamentos para a tua tortura”.
Deste modo, para além de torturado para trabalhar na construção de um convento que era de exclusivo interesse para o rei, o povo teve de vender as propriedades situadas na zona de interesse de edificação do convento. Era o absolutismo no seu máximo sentido pejorativo, que suscita, quer na canção de Sting, quer no romance de Saramago, olhares de desaprovação e descontentamento.
Existem porém diferenças a considerar: enquanto em “They dance alone”, existe o sentimento de esperança e de término da opressão — “One day we’ll sing our freedom / One day we´ll laugh our joy” // “Um dia cantaremos a nossa liberdade / Um dia iremos rir-nos da nossa alegria” — em Memorial do Convento, a tortura do povo só terminaria com a concretização da vontade do rei, isto é, com a edificação do Convento, apresentando Maria Bárbara uma atitude conformista perante tal certeza, realçando apenas a ironia de não conhecer nem ter interesse na construção de um Convento de sua honra, que por sua vez chegava a custar a vida a certos trabalhadores: “cumpre-se o voto porque Maria Bárbara nasceu, e Maria Bárbara não viu, não sabe, não tocou com o dedinho rechonchudo a primeira pedra”.

Beatriz Cotrim

Beatriz Cotrim (Suf +) || «Nowhere Man» (John Lennon/Paul McCartney), Rubber Soul, 1965 // José Saramago, Memorial do Convento, 57.ª edição, Porto, Porto Editora, 2016, pp. 38-40
A canção “Nowhere Man”, pertencente ao álbum Rubber Soul, dos Beatles, tem várias semelhanças com as dificuldades passadas por Baltasar Mateus, mais conhecido por “Sete-Sóis”, após ter perdido a sua mão esquerda (resultante de um tiro sofrido no mesmo membro, tendo sido necessária a sua amputação), numa batalha contra o exército espanhol perto de Jerez de los Caballeros, que o deixara incapacitado, sendo expulso do exército, não podendo, depois, exercer uma profissão que lhe permitisse reconstruir a sua vida.
Podemos verificar que a “personagem principal” desta canção dos Beatles é, tal como “Sete-Sóis”, um homem com dificuldades em encontrar um rumo à sua vida, não tendo lugar para onde ir. Os versos da canção “He's a real nowhere man” / “Ele é realmente um homem de lugar algum”; “Sitting in his nowhere land” / “Sentado na sua terra de lugar algum”, aparentam mostrar a situação de um homem sem casa e/ou sem um destino concreto. 
Também Baltasar sofre da mesma situação e, após a guerra, anda pelas ruas de Évora a pedir esmola, não só para o seu sustento, como para pagar ao ferreiro e ao seleiro a construção de um gancho que viria a substituir a sua mão esquerda (“Por ser pouco o que pudera guardar do soldo, pedia esmola em Évora para juntar as moedas que teria de pagar ao ferreiro e ao seleiro se queria ter o gancho de ferro que lhe havia de fazer as vezes da mão” [p. 38]). Após ter conseguido angariar dinheiro suficiente e pagado a construção do seu gancho e espigão (por sua preferência), Baltasar, após saber que o exército não viria mais em auxílio do povo na província alentejana, originando o aumento de crimes cometidos tanto por soldados como membros do povo, deixa Évora em direção a Lisboa. A letra da canção faz, também, uma referência a uma situação semelhante, descrevendo, aparentemente, a sua personagem como não tendo quaisquer bens ou riqueza, sendo referido como “um homem de lado nenhum”, “Making all his nowhere plans” / “A fazer todos os seus planos de lado algum” mostrando, talvez, as suas dificuldades para poder construir uma vida estável.
 Baltasar não tem um verdadeiro destino, tal como a personagem da canção (“Knows not where he’s going to [Não sabe para onde ir]”) pois ninguém o espera em Lisboa e nem os seus pais sabem da sua situação, se se encontra vivo ou morto. Na sua viagem para Lisboa, Baltasar Sete-Sóis “não leva por companhia e ajuda frade ou diabinho” (p. 38) e chega a Montemor onde, escondendo o seu gancho e espigão para continuar a receber a sua esmola, pois “Aprendeu rapidamente que com eles postos, em particular o espigão, lhe escusam a esmola, ou dão-lha sovina”(p. 39) , mantém a mesma rotina que tinha em Évora.
 Passando os Pegões, Baltasar vê-se privilegiado por poder usar o seu espigão como adaga, que fora proibida por ser “facilmente mortal”(p. 40), podendo usá-lo livremente e conseguindo, até, matar um dos dois homens que o quiseram roubar. Ao chegar a Aldegalega (a atual Montijo), Sete-Sóis consegue pagar uma boa refeição mas não a estadia numa pousada, portanto resolve abrigar-se num telheiro, onde passaria a noite enrolado num capote. Na manhã seguinte, Baltasar chega a Lisboa.

Beatriz R.

Beatriz R. (Suficiente +) || «Os Vampiros» (Sérgio Godinho / Zeca Afonso), Caríssimas Canções, 2013 // José Saramago, Memorial do Convento, 51.ª edição, Lisboa, Caminho, 1994
Se no final do século XX os vampiros eram aqueles que sugavam o sangue por amor, em 1963 Zeca Afonso diz-nos que “Eles comem tudo eles comem tudo / Eles comem tudo e não deixam nada”. Cinquenta anos depois, Sérgio Godinho cria uma nova versão da canção que, dada a modernidade da música, me fez lembrar o narrador de Memorial do Convento, quando diz “há quem morra por ter comido durante a vida toda” (p. 27), como forma de criticar a corte de D. João V, criando um contraste com a miséria em que vivia o povo (“Mas não falta, (…) quem morra por ter comido pouco durante toda a vida, ou o que dela resistiu a um triste passadio de sardinha e arroz”, p. 27).
No mesmo mundo onde o povo estava sujeito a condições deploráveis, existia uma corte que se achava acima das leis (tal como nos diz a canção “São os mordomos do universo todo / Senhores à força mandadores sem lei”), em que reinava a arrogância e altivez e se não olhava para o país. O luxo e a riqueza sumptuosa que apresentavam aqueles que estavam junto de D. João V acabam por ser visíveis para as gerações futuras sempre que olhamos para o Convento de Mafra, edifício também ele ostentoso.
Esta oposição entre a corte e o povo era tão profunda que até se manifestava na alimentação (“El-rei, com os infantes, seus manos e suas manas infantas, jantará na Inquisição depois de ter terminado o auto de fé, e estando já aliviado do seu incómodo honrará a mesa do inquisidor-mor, soberbíssima de tigelas de caldo de galinha, de perdigões, de peitos de vitela, de pastelões, de pastéis de carneiro com açúcar e canela, de cozido à castelhana com tudo quanto lhe compete, e açafroado, de manjar-branco, e enfim doces fritos e frutas do tempo.”, p. 66), o que, mais uma vez, associamos à expressão “Eles comem tudo e não deixam nada”.
No meio desta riqueza toda vivia um povo miserável, que trabalhava a favor do reino como se fosse escravo (“E turbou-se de tão lastimoso espetáculo de grilhetas”), só preso e obrigado aceitava trabalhar em Mafra. Assim, Mafra, se por um lado é o símbolo do poder e da ostentação, por outro, é o símbolo da escravidão, da dor e da pobreza.
“No chão do medo tombam os vencidos” diz-nos a canção, e é assim que olhamos para aquele povo, como um homem que se deixou vencer pela vida e que se conformou. É quase como se estivesse implícito um acordo entre a corte e o povo, em que uns têm tudo e outros nada. Até no que toca ao seu divertimento este povo não exigia muito, contentava-se com espetáculos de sangue, a que chamamos touradas, e massacres como os autos de fé (“feliz povo que se regala […] até ao paço”), onde percebemos o gosto violento e o desejo por sangue que existia naquele tempo. É caso para dizer que até a alma lhes é comida (voltando à expressão: “Eles comem tudo e não deixam nada”).
O narrador de Memorial do Convento diz-nos “Mas esta cidade, mais que todas, é uma boca que mastiga de sobejo para um lado e de escasso para o outro” (p. 36), o que nos mostra como era viver naquele tempo cheio de injustiças socias que ninguém questionava. O que nos leva a pensar: vemos a diferença de um Portugal oprimido e ignorante (mas sempre trabalhador), para um Portugal onde, hoje em dia, os trabalhadores defendem os seus direitos e lutam pela a igualdade.

Ariana

Ariana (Suficiente (-)) || «Longe do nada» (Caixa Toráxica / Dé Ferreira), Sangue Novo, 2016 // José Saramago, Memorial do Convento, 57.ª edição, Porto, Porto Editora, 2016, pp. 377-400
Decerto que jamais haverá história de amor tão pura, fiel e verdadeira como a de Baltasar e Blimunda. Conheceram-se na sentença final da mãe de Blimunda, no auto de fé, e a partir desse momento apaixonaram-se um pelo outro, mesmo sem Baltasar reconhecer as capacidades especiais e únicas da sua futura mulher e sem Blimunda imaginar o que o seu destino lhe reservara.
Na música que escolhi, “Longe do nada”, é possível encontrar pontos em comum, nomeadamente, entre o conteúdo da própria música e os capítulos finais de Memorial do Convento, entre o fim do amor que uniu estas duas extraordinárias personagens e história que construíram juntos.
Através do título da canção, podemos perceber qual o seu primeiro ponto em comum com Memorial do Convento, ficar longe do seu nada, neste caso, de Baltasar Sete-Sóis que tanto amara e que, do dia para a noite, perdeu.
Logo de início, podemos verificar que existem algumas referências relativamente aos poderes que a mãe e Blimunda detinham, tornando-as alvos principais do terror da inquisição.
Na segunda estrofe, podemos “virar” a história e ditá-la como se se tratasse de um desabafo de Blimunda em relação à situação em que Baltasar se encontrava, isto é, inverter a história a favor de expressar o desespero sentido pela mesma — “Nasceu a lua, melhor verá ele o caminho (..), e ali estará Blimunda a recebê-lo, o mais não veremos, porque é nossa obrigação ser discretos, basta que saibamos que é muita a inquietação desta mulherp.378 // “Onde estás tu? (…) Não me sinto bem comigo, divago no vazio... Receio estar perdido”.
Já na terceira estrofe da música existe uma referência para a dor, agonia, receio e pela perda que Blimunda sentiu com o desaparecimento súbito de Sete-Sóis — “Vai perguntando se viram um homem com estes sinais, assim, e assim, (…) Não, não vimos, e Blimunda continua a andar, agora já fora dos caminhos principais (…)” — p.379. Desta forma, vai recordando todas as juras e promessas que fizeram um ao outro e que, de repente, se tornaram simples palavras, que permaneceram, assim como Baltasar, perdidas no tempo.
O último capítulo, consta o tempo que Blimunda insistiu na procura de Baltasar — “Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar” (p. 395). Por outro lado, a quinta estrofe caracteriza-se também pela alusão ao auto de fé, e pelo seu destino, com o homem que ama, ser destruído e “cortado pela raiz”. Contudo há uma evidente renúncia à realidade por parte de Blimunda. A letra da música nesta estrofe simboliza também que o seu segredo continuará guardado apesar dos mais curiosos —“Os padres que ouviam falar dela mandavam-lhe recados para que viesse à confissão, curiosos de saber que mistérios se ocultavam naquela romeira e peregrina, que segredos se escondiam no rosto (...)”, p. 396.
O refrão da canção relaciona-se com o final da história de Memorial do Convento, nomeadamente no que respeita às voltas que o destino dá. Destino, que não é possível contornar, neste caso, que decorre em pleno centro de Lisboa, revelando a surpresa/revolta mas também a calma que ambos sentem em tornar os seus destinos realidade, pois, apesar de perder o seu eterno, fiel e verdadeiro amor, Blimunda prendeu a vontade de Baltasar, uma vez que só a ela pertencera: “São onze os suplicados. Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda (…) E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia a Blimunda.” (p. 400).

Nathalia
Nathalia (Suficiente -) || "Amor à primeira vista" (Flávio Cardoso / Picolé / Flavio Venutes), Jorge Aragão ao vivo 3, 2004 // José Saramago, Memorial do Convento, 57.ª edição, Porto, Porto Editora, 2016
Durante um auto de fé levado a cabo pela Inquisição, o de 26 de julho de 1711, veem-se e não mais deixam de se amar. Amam-se mal se conhecem, unem-se por desejo avassalador despertado em ambos, Baltasar e Blimunda, o símbolo do amor verdadeiro. Tanto na canção do intérprete Jorge Aragão (em especial, na primeira e terceira estrofe) como no capítulo V de Memorial do Convento, um casal conhece-se de uma forma “que foi amor à primeira vista”. Quando se viram pela primeira vez, foi como se uma luz irradiasse e enchesse o coração de amor de ambos os personagens.
Baltasar e Blimunda defendiam com "unhas e dentes" a relação, e tinham fé no amor; já na canção podemos verificar alguma dúvida em relação a um amor verdadeiro e que só irá entregar-se quando tiver a certeza. Podemos verificar uma admiração elegante, vindo desde o princípio ("mas agora, só tem olhos para os olhos de Blimunda", p. 58). É um casal que se uniu de forma diferenciada e sem cerimónia oficial («cerimónia» da colher), não viam necessidade de procriar para demonstrar o amor.
Quando Baltasar desaparece, Blimunda procura-o “durante nove anos” (p. 353), demonstrando que o seu amor surreal vence qualquer obstáculo, pois a força é maior, como diz a canção ("Força dessa conquista"). Caçadores de sonhos, dispostos a ir mais além por um simples sonho em comum. Durante a trama, analisamos a frequência em que Sete-Luas e Sete-Sóis aparecem, vivenciando muitas aventuras.
Vivem um amor sem regras. Junto com o Padre Bartolomeu de Gusmão vão em busca do grande sonho, auxiliando-o na construção da passarola no capitulo IV. Escolhi esta canção, por mais que simples, muito bem representada, pois tem referência ao amor à primeira vista, que é o caso de Baltasar e Blimunda, a força e perseverança de duas pessoas que viveram de formas diferentes. Foi amor à primeira vista, não casaram oficialmente, o que na época era considerado sagrado. Não tiveram filhos e assim vemos claramente o contraste de amor no decorrer do livro em relação ao rei D.João V e à rainha D. Maria Ana Josefa da Áustria, que se casaram por contrato. Na época, apenas depois do casamento aconteciam as relações físicas, a virgindade era conservada até o dia do casamento; já Sete-Sóis e Sete-Luas relacionaram-se sexualmente no dia em que se conheceram. Blimunda era uma mulher livre e tinha liberdade para fazer o que quisesse, ao contrário das mulheres da época (século XVIII), que eram inferiorizadas, obrigadas a obedecer ao homem, e não tinham, praticamente, direitos. As mulheres não trabalhavam, enquanto os homens sustentavam a família. Em contraste, Blimunda e Baltasar trabalhavam "em pé" de igualdade. O casal tinha mentalidade e atitude avançada para a época.
Um homem que não tem a mão esquerda e uma mulher que vê o interior das pessoas são os personagens centrais de Memorial do Convento. Baltasar e Blimunda vivem uma história de amor no reinado de D. João V, de amor verdadeiro. Falo do amor que tem a finalidade de unir e juntar eternamente duas pessoas numa só, capaz de fazer ultrapassar os mais diversos obstáculos. Isto sim é o amor verdadeiro! Um amor que fez Blimunda andar descalça por nove anos à procura de Baltasar. Nove anos e não nove dias.

Givaldo

Givaldo || “Pagar as contas” (Slow J.), Pagar as contas, 2017 // José Saramago, Memorial do Convento, versão digital (http://pt.slideshare.net/nitrocell/memorial-doconvento)
No dia 18 de janeiro de 2017, a começar o ano em grande, surge no panorama do hip hop nacional o single “Pagar as Contas”, do artista Slow J. A nova canção conta com a participação de mais dois artistas do mesmo género musical, Gson e Papillon.
O rap é conhecido por ser um estilo musical dado às questões sociais, delator de injustiças, uma forma de intervenção. Esta música não é diferente. Convergem nela três vozes, numa viagem musical, onde cada um traz à tona a sua essência, sem que a música perca unicidade. Surge assim algo bem alternativo, e com uma mensagem bem assente. Faz recordar um outro trio, o trio dos “B’s”, Baltasar, Blimunda e Bartolomeu, as personagens que catalisam o percurso da história.
Quase toda a música parece ter sido desenvolvida com inspiração no romance histórico, tantas são as pontes encontradas que ligam os dois mundos. Por exemplo, a particularidade de o nome de um dos cantores ser “Papillon” que, traduzindo do francês para a língua de Camões, é “Borboleta”, inseto voador, detalhe que nos remete para o “Voador” de Memorial, Padre Bartolomeu de Gusmão, que tinha como sonho e objetivo fazer o mesmo que este inseto, voar.
O tema musical “Pagar as Contas”, como o próprio nome indica, fala-nos das obrigações e da pressão que temos para pagar as contas. Constitui uma crítica feita às hierarquias e ao peso que as mesmas fazem desabar sobre nós; aos sistemas que nos subjugam, sem que, por vezes, tenhamos essa noção. Passam-se os séculos, muda-se o tempo histórico, mas os problemas, esses, são os mesmos, com uma face tenuemente diferente. Na obra de Saramago, em comum com a canção, está a crítica lançada, uma crítica feita à sociedade da época. Era uma sociedade de excessos e contrastes sociais, onde havia opressão, repressão… Onde, de um lado, temos um rei megalómano, banhado em riquezas, e, a seu lado, as mais altas classes sociais, a nobreza e o clero. E, do outro, plebeus miseráveis que se aconchegam na pobreza extrema. Uma sociedade onde a fome de um gera a fome de muitos outros, uma sociedade em que prevalece o oligarquismo.
“Quando eu deixar de ser um inútil eu aviso / Quando me pagarem para esquecer o que eu preciso / Quando me apagarem da memória tudo o que eu senti/ Até esquecer que sinto só não há tempo para isso é preciso para” — Nos três primeiros versos, o sujeito poético da canção de Slow J apresenta ter consciência daquilo que o aflige, que é um inútil, que para com ele estão em débito e que possui mazelas que não poderão ser recuperadas. No entanto, a seguir nega a solução dos seus problemas, afirmando que não há tempo, pois o que está acima de si é maior, as suas obrigações. Nesta estrofe há várias semelhanças com diversos personagens do Memorial, como o povo, personagem coletiva que nos é descrita ao longo de toda a história como submisso às suas obrigações. Mesmo que as mesmas não o favoreça, cumpre-as em anonimato e humildemente. Também com D. Maria Ana, a rainha infeliz e insatisfeita, recetáculo de regras e formalidades, cujo papel é conceber um herdeiro ao trono.  O próprio Baltasar que, em tempos, fora soldado na guerra de sucessão pelo trono de espanhol e que, pelas suas obrigações como combatente, perdeu a sua mão esquerda. (De certa maneira, um “inútil”, pois ao perder a mão, também perdeu a sua utilidade para o reino como soldado). Em semelhança com a primeira estrofe da música, todas estas personagens têm consciência do seu descontentamento, e todos estão à mercê das suas obrigações.
Com a estrofe seguinte, temos a enumeração dos deveres que nos reprimem— “Pagar as contas / Saldar as contas / Esquecer as contas / Foder as contas / Contar as contas / Contas com quem és / Quando és só tu contigo / Quem vai contar contigo?”. No entanto, há um despertar, a entoação muda, abandona-se o tom melancólico e entra-se num tom mais agressivo e de revolta, que se vai manter até ao final da música. Esta alteração espelha Blimunda de Jesus, mais tarde chamada Blimunda Sete-Luas. Ao contrário do que acontece na música, Blimunda não se revolta, Blimunda é a revolta. Podemos considerar Blimunda a precursora da emancipação feminina, um orgulho para todas as sufragistas vindouras. Em Sete-Luas reúne-se o encanto e o sobrenatural, a fragilidade e a robustez. É uma mulher destemida, pronta a enfrentar o mundo pelo que sente e em que acredita. Blimunda conhece todo o Portugal, os seus pés que o digam. Aventurou-se terras fora, à procura do seu amor durante nove anos. Blimunda carrega a diferença, a revolta pacífica de um novo ser em tempos velhos, a liberdade. Sozinha enfrentou um frade que a tentou violar. Ao contrário da rainha, Blimunda é realmente livre. Ama de verdade, assume os seus desejos, é uma personagem fictícia com traços bem reais.
“O meu pai trabalhou para ti a vida toda / Side effects da disciplina de um génio, e em dívida de oxigénio / Ele olhou por mim a vida toda / Agora o Jota não te deve nada cala a boca / E tudo o que eu sou, eu devo à terra toda / O meu oxigénio compra / O meu oxigénio compra / O meu oxigénio compra”. – Esta terceira estrofe faz-nos ver João Francisco, o pai de Baltasar. Mas não só: faz-nos ver também todas as personagens que dedicaram a sua vida ao trabalho, à serventia do reino. E que, pelo trabalho, vão sucumbindo; que empregam nas suas tarefas energia, o seu fôlego, ficando realmente com uma “dívida de oxigénio”, até que perecem. É o caso deste pai, que, no capítulo XX, morre moribundo, ou de Francisco Marques, que morre no capítulo XIX, espezinhado duas vezes, primeiro pelos desejos da autoridade que o faz estar ali, segundo por uma enorme pedra que o esmaga.
No decorrer da música surge uma citação em espanhol — “Y lo que estamos gastando es tiempo de vida, porque cuando yo compro algo, o tú, no lo compras con plata, lo compras con el tiempo de vida que tuviste que gastar para tener esa plata. Y la única cosa que no se puede comprar es la vida. La vida se gasta. (E o que estamos a gastar é tempo de vida, porque quando eu compro algo, ou tu, não compras com dinheiro, compras com o tempo de vida que tiveste de gastar para ter esse dinheiro. E única coisa que não se pode comprar é a vida. A vida se gasta)”. Esta citação salienta questões transversais aos dois universos (como estamos a viver, e em quê que estamos a gastar a nossa vida?). Na estrofe anterior está contida a resposta, relembrando a tríade de protagonistas de Memorial do Convento, e a uma determinada época das sua vidas, a construção da passarola: Deus, Jesus e o Espírito Santo, no céu; na terra, Baltasar, Blimunda e Bartolomeu.
Apesar de serem plural, eram unos, amigos, uma família. — “Agora o Jota não te deve nada cala a boca / E tudo o que eu sou, eu devo à terra toda / O meu oxigénio compra…” (Estas três personagens não deviam nada a ninguém a não ser a eles mesmos, tudo o que eram pertencia aos seus sonhos e crenças, por eles viviam, por eles conseguiram voar. E, assim como os sonhos, o oxigénio também é grátis. E, quando este foi empregue na construção da passarola, não deu só origem a um engenho de voo, deu origem à representação da igualdade entre eles, da cooperação, da harmonia entre o sonho e a liberdade. E é esta a resposta. Não se deve viver pelo desnecessário, que infelizmente ocupa o primeiro plano das nossas realidades, mas pelos sonhos e pela sua realização. Os seus únicos preços é o nosso empenho em realizá-los e, como benesse, temos a gratificação da sua concretização.)
Nos três primeiros versos da estrofe que se segue é reforçada a ideia de estarmos presos a um sistema opressor que não oferece alternativas fiáveis: “Tudo o que eles dizem é pagar as contas / Pagar as contas /… Ninguém sai da praga com o Placard aqui tu pagas ou apagam-te  /… Eles cagam contos”. Quanto a este último verso leva-nos a encontrar D. João V, um rei megalómano, egocêntrico e arrogante, que tem concentrado em si todo o poder. Este verso é de fácil associação ao rei, pois teve a sorte de governar numa das eras mais prósperas de Portugal, o período de maior fluxo de ouro brasileiro. “Eles cagam contos” é uma expressão rude, mas que assenta de modo solene neste monarca, pois, como é possível ver ao longo da obra, trata o outro com desdém, e sem prudência. Em “E tu pagas roubos” está presente a legitimação de todas as atrocidades cometidas contra o povo português — mas o povo não se faz ouvir, porque redireciona os seus gritos para as touradas e para os autos de fé, enquanto vive na penúria. “Não declaram o crime” (em momento algum da obra D. João o quinto de sua ordem, declarou ou afirmou as suas falhas em relação à má gestão do País).
“Isto é real life não são os movies que vês no Tarantino /… Há que pagar as contas /… What the fuck ele devia (espera!) deixa-me procurar versão mais simples” — em comum com a ficção, também a vida real assume contornos mais negros e sempre haverá aqueles que irão procurar atalhos mais fáceis. Na obra, verificamos isto através de duas personagens, dois homens que tentaram assaltar Baltasar, quando este vinha para Lisboa.
“daí a mentalidade ser cachet, cachet, cachet” é associável à mentalidade do Rei português. Para si nada mais importava, ou talvez nunca tenha importado, quer falemos no seu povo, no sacrifício que realizavam para edificar o desejo do Rei. No capítulo XXI, é-nos possível observar as pretensões do monarca através do diálogo que tem com o arquiteto Ludovice. O Rei queria construir uma Basílica como a de Pedro.
Bartolomeu Lourenço de Gusmão é o sonho e a ambição, personagem erudita e de largos conhecimentos. Um adulto-criança ou uma criança-adulta — é difícil de definir —, mas que realmente sabia sonhar. Possuía em si um enorme sonho, o desejo de alcançar os céus, de voar. Não era cantor de rap, apesar de também fazer grande uso da sua voz. Mas, se o fosse, a sexta estrofe seria por ele cantada: “Quanto mais tens mais te cobram / Quanto mais alto tu estás mais te dobram” (em forma de chacota rotulavam-no “voador”, de modo a desvalorizar os seus sonhos e ideias).
“Ainda dói mais quando assopram” — ora Bartolomeu tornou-se um alvo da corte e da Inquisição, que faziam tudo pare impedir o seu progresso. “Sustentamo-nos com migalhas e só as que sobram / Banca a paz, o amor e a liberdade… / In god we trust but I don't fuckin' trust your god [Em Deus acreditamos, mas eu não acredito na porra do vosso Deus]” — este verso recorda-nos as diversas crises de fé por que passou Bartolomeu, mas também a sua diferente maneira de se relacionar com Deus («…depois Blimunda parou, está doente, padre Bartolomeu Lourenço, (…) deite-nos a sua bênção, padre. Não posso, não sei em nome de que Deus a deitaria, abençoem-se antes um ao outro, é quanto basta, pudessem ser todas as bênçãos como essa.”).
No verso “Foda-se é só portagens no caminho para felicidade”, percebemos a resistência que há para atingirmos os nossos objetivos, a felicidade. Com o Padre não foi diferente, no entanto não se rendeu às portagens, investigou, viajou até à Holanda, muito fez para que pudesse tornar o impossível dos outros na sua possibilidade. “Aposto que até no céu um gajo vai ter que prestar contas” é mais uma referência às dúvidas teológicas que o Padre possui, mesmo sendo padre. Estas dúvidas, por vezes, levam o Padre a pensamentos um tanto disformes. Realizando uma análise exterior, pode parecer-nos que o mesmo tira conclusões heréticas em relação a Deus. Por exemplo, afirmar que o Todo o Poderoso não tem a mão esquerda (“Não se fala nunca da mão esquerda de Deus… à esquerda de Deus não se senta ninguém, é o vazio, o nada, a ausência, portanto Deus é maneta.”).
Se a pergunta “Quando és só tu contigo quem é que vai aguentar contigo?” fosse lançada antes da morte do Padre Bartolomeu, a resposta faria jus a quem já o acompanhou, a quem carregou e transformou o seu sonho em realidade. Ninguém entendia o sonho ou sabia como se daria a conceção da geringonça de voar, nem mesmo Baltasar ou Blimunda. Porém, não é preciso que entendam os nossos sonhos, é preciso que nos entendam a nós. E é com quem nos entende, com quem é a nossa força, a nossa delicadeza, as nossas mãos e a nossa visão que devemos contar.

Tomás
Tomás (Bom -/Suficiente +) || “Amor Maior” (readaptação de um tema de Jota Quest, MTV ao Vivo, 2003), banda sonora da novela Amor Maior, 2016 // José Saramago, Memorial do Convento, 56.ª edição, Porto, Porto Editora, 2015
A canção “Amor Maior”, interpretada por Paulo Gonzo e Raquel Tavares, relaciona-se bastante com a relação de Baltasar e Blimunda. Por exemplo, quando Blimunda procurou incansavelmente Baltasar durante nove anos, depois de este ter desaparecido em Monte Junto, sem nunca terem deixado de pensar um no outro (“É uma cara que não se esquece, pelo menos não a esqueci eu “, p. 369). A longa procura um pelo outro mostra que tinham um amor enorme ou, como diz a canção, um “Amor Maior”.
“Então seguirei meu coração até o fim, para saber se é amor” — tal como na canção, também em Memorial do Convento há uma grande persistência por parte de Sete-Luas na procura de Baltasar (“de repente entrou-lhe no coração o convencimento de que vai encontrar lá em cima Baltasar, p. 354). Esses nove anos em busca um do outro e em que deixaram tudo para trás foram extremamente dolorosos e de enorme sofrimento para ambos. “Eu quero ficar junto, mas sozinho assim não é possível” mostra que Blimunda não era capaz de aceitar o desaparecimento de Baltasar e não pensava sequer na sua possível morte. O sujeito poético fala de um amor maior que ele, tal como, em Memorial do Convento, Blimunda procura um amor maior que ela. De certa forma, esta canção retrata as relações em que existe um amor enorme, mas são relações que acabam por ter um desenvolvimento controverso ao longo do seu percurso, como em Memorial do Convento. Esse “Amor Maior” nota-se principalmente no facto de a relação ter durado sempre com a mesma intensidade que os uniu, independentemente dos anos em que estiveram separados. Blimunda procurou-o por todo o lado, foi a Mafra e chegou a atravessar a fronteira de Espanha: “Conhecera todos os caminhos do pó e da lama, a branda areia, a pedra aguda, tantas vezes a geada rangente e assassina, dois nevões de que só saiu viva porque ainda não queria morrer”. O amor deles era de tal forma verdadeiro que logo no primeiro dia em que se conheceram fizeram amor e, ao longo da obra, são descritas muito mais cenas onde o amor que os une é evidente. O facto de Blimunda ter perdido a virgindade aos dezanove anos e de se ter entregue assim a um homem que acabara de conhecer foi uma grande prova de amor da parte dela (“Ser amor a qualquer hora, ser amor de corpo inteiro, amor de dentro para fora, amor que desconheço”).
Passados nove anos de intensa procura, Blimunda encontra Baltasar num auto de fé, tal e qual como quando se conheceram, mas desta vez era Baltasar a arder na fogueira no lugar de Sebastiana, mãe de Blimunda. Contrariando os seus princípios, Blimunda fez o que havia prometido jamais fazer, ver Baltasar por dentro, um dom que muitas vezes utilizara com outras pessoas, mas nunca com a pessoa que amava. O amor que perdurava, apesar do afastamento um do outro, era tão intenso como o amor descrito na canção: “Magoarei mesmo assim, mesmo sem querer, para saber se é amor, mas estarei mais feliz mesmo morrendo de dor, para saber se é amor”.
José Saramago em Memorial do Convento, dá um fim trágico à relação de Baltasar e Blimunda. Ele reúne os dois companheiros de uma vida, após uma triste, dolorosa e trágica separação.

Miguel S.

Miguel S. (Suficiente -) || «Bring me to life (Amy Lee, Ben Moody, David Hodges), Fallen, 2003 // José Saramago, Memorial do Convento, ?, ?, ?
No ano de 2003, surge o novo álbum Fallen da banda norte-americana Evanescence, banda formada nos Estados Unidos da América, mais concretamente em Little Rock, estado de Arkansas, no ano de 1995, do estilo musical Metal.
O estilo Metal é um subgénero do rock que se desenvolveu no final da década de 1960 e início da década de 1970, no Reino Unido e nos Estados Unidos da América. O género musical Metal é conhecido por se associar a questões ligadas a sentimentos mais negativos e depressivos como a morte, o consumo de drogas, traumas pessoais, entre outros. Esta canção não é excessão.
Começando pelo título da faixa, “Bring me to life”, que em português significa “Traz-me para a vida “, podemos logo contextualizá-lo com as personagens Baltasar e Blimunda. A música começa com a letra “How can you see into my eyes like open doors leading you down into my core where I have become so numb? Whithout a soul my spirit`s sleeping somewhere cold until you find it there and lead it back home” (que significa “como podes ver através dos meus olhos como portas abertas, conduzindo-te até o meu interior, onde me tornei tão dormente, sem uma alma, o meu espírito dorme num lugar frio, até que tu o encontres e o leves de volta para casa”). Logo neste trecho inicial, podemos fazer uma associação com a relação entre Baltasar e Blimunda, ambas personagens principais da obra. Blimunda é uma mulher forte e extremamente apaixonada por Baltasar que tem o dom de conseguir ver através dos olhos o interior das outras pessoas. Na obra existem várias referências aos seus olhos: “Lembras-te da primeira vez que dormiste comigo teres dito que te olhei por dentro?”; “Quando Blimunda se virou para ele, os olhos agora escuros, e de repente uma luz verde passando”.
No refrão da música, podemos encontrar outras referências entre as duas personagens: “(Wake me up) wake me up inside (I can’t wake up) wake me up inside (save me) Call my name and save me from the dark (wake me up) Bid my blood to run (I can`t wake up) Before I come undone (save me) Save me from the nothing I have become. [(Acorda-me) Acorda-me por dentro (Eu não consigo acordar) Acorda-me por dentro (Salva-me) Chama o meu nome e salva-me da escuridão (acorda-me) Obriga o meu sangue a fluir (Eu não consigo acordar) Antes que eu me desfaça (Salva-me) Salva-me do nada que eu me tornei.]” No momento em que Baltasar confronta Blimunda com o farto de ela sempre comer pão de manhã, antes de acordar, esta mostra-se renitente, mas ele consegue tirar-lhe o pão e obriga-a a confessar o segredo do seu poder mágico (“Quando Blimunda acorda, estende a mão para o saquitel onde costuma guardar o pão, pendurado à cabeceira, e acha apenas o lugar. Tateia o chão, a enxerga, mete as mãos por baixo da travesseira, e então ouve Baltasar dizer, Não procures mais, não encontrarás, e ela, cobrindo os olhos com os punhos cerrados implora, Dá-me o pão, Baltasar, dá-me o pão, por alma de quem lá tenhas, Primeiro me terás de dizer que segredos são estes, Não posso, gritou ela”).
Podemos então concluir que a música “Bring me to life” pode ser associada à relação entre Baltasar e Blimunda, dado que faz várias referências que são aproximáveis dos olhos e do dom de Blimunda, como ao amor entre as duas personagens da obra.

Bettencourt

Bettencourt (Bom -/Suficiente+) || "Perdidamente" (Florbela Espanca / Luís Represas), A História Toda, 2006 / / José Saramago, Memorial do Convento, 13.ª edição, Lisboa, Caminho, 1984, passim
Quando comecei a realizar a atividade proposta pelo professor, pensei que seria um  desafio difícil: afinal que músicas atuais poderiam corresponder a uma história do século XVIII? Ao contrário do que previa, foi bastante rápida a procura e encontrei inúmeras músicas que correspondiam à realização deste trabalho, como “A noite passada”, de Sérgio Godinho, ou até “Feiticeira”, escrito por Francisco Viana mas interpretado pelo cantor Luís Represas, que é também o responsável por cantar a música que escolhi, escrita pela poetisa Florbela Espanca, “Ser Poeta”.
Em Memorial do Convento é-nos narrada a história da edificação de um convento na vila de Mafra. Ao longo da obra é relatada a relação do casal real, a sua forma de viver, o seu quotidiano… Em paralelo, é descrita outra história, que contrasta completamente com a dos reis, a de Baltasar e Blimunda, sobre a qual me vou centrar.
Os primeiros versos de “Perdidamente” podem remeter-nos logo para Baltasar, um homem que lutou na Guerra da Sucessão Espanhola e da qual voltou maneta e sem recursos. Não era “poeta” mas guerreiro e não ambicionava ser “maior do que os homens”. Sem pensão de guerra, vivia de forma humilde mas seria capaz de qualquer sacrifício pela sua amada, Blimunda — “É ser mendigo e dar como quem seja Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!”.
Em Lisboa, um encontro que nada tinha afinal de casual — tendo em conta que Sebastiana, mãe de Blimunda já o tinha previsto — une o casal. Sem nada a perder, aceitam o desafio de ajudar a construir a Passarola. Aquilo que parecia uma simples tarefa que punha em prática o sonho de outro (Padre Bartolomeu) era uma maneira de Baltasar se sentir válido... E poderia ainda ser a concretização de um desejo desconhecido — “É ter de mil desejos o esplendor e não saber sequer que se deseja!”
Na construção da Passarola, também Blimunda desempenha um papel crucial pois utiliza os seus poderes para que um dia voem — “É ter cá dentro um astro que flameja, / É ter garras e asas de condor!".
Esta canção lembra-me os contrastes referidos na obra: o casal humilde vivia contra uma muralha, os reis viviam num palácio de forma abastada — "Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim”; os monarcas tinham um casamento de conveniência sem que o amor fosse condição, Baltasar e Blimunda eram amantes supremos — “E é amar-te, assim, perdidamente... / É seres alma, e sangue, e vida em mim”.
No entanto, algo une os personagens desta história, a missão de construir: uns, um majestoso Convento, e os outros, uma simples Passarola… Ambos os feitos são grandiosos!: “É ter fome, é ter sede de Infinito!”.

Rebeca

Rebeca (Suficiente +) || «Voar» (Marcela Taís/Marcela Taís), Moderno à Moda Antiga, 2015 // José Saramago, Memorial do Convento, 43.ª edição, Lisboa, Caminho, 1994, passim
Na canção “Voar”, o sujeito sente um desejo imenso de se libertar. A repetição de “Quer voar (…)” expressa esse mesmo desejo de libertação, que podemos também observar na personagem Blimunda.
No romance, Memorial do Convento, encontramos vários momentos da personagem, através dos quais podemos fazer uma ligação com a música e os sentimentos que esta transmite. A música começa com um ritmo bastante calmo, que se assemelha ao comportamento que Blimunda mantém durante toda a obra. Para mim, esta canção relaciona-se com muitos momentos vividos pela personagem, e, ao lermos os versos quase podemos interpretar a sua história.
O momento em que Blimunda vê sua mãe pode relacionar-se com os dois primeiros versos­ (“Estou longe de casa há tanto tempo / E com o tempo se aprende”) Blimunda assiste ao auto de fé, em que a sua progenitora foi condenada ao degredo por oito anos em Angola. Nessa situação, a personagem, ao ficar sozinha com apenas dezanove anos, teve de crescer rapidamente, tornando-se uma mulher independente desde muito cedo.
No início da segunda estrofe, no primeiro verso “E que importância têm os medos”, podemos relacionar o nome “medos” com o medo que Blimunda sentia da Inquisição. Este sentimento derivava do seu passado pois, tendo um dom, como a sua mãe que fora condenada, tinha receio que algo semelhante lhe fosse acontecer. Porém, tal como no segundo verso (“Se serão irrelevantes com o tempo?”), Blimunda ignora este medo quando passa a ajudar Bartolomeu na construção da passarola, pois, ao longo da obra, vamos percebendo que o seu dom é essencial para que a máquina voasse.
O oitavo verso (“Nesta vida eu nada ganho (…)”) é relacionável com o facto de Blimunda ser do povo. Na altura em que se desenvolve a narrativa, o povo, apesar de constituir a maioria da população, não era valorizado e por isso pouco ou nada recebia, vivendo em constante pobreza. A continuação desse verso (“(…) meu vazio é do teu tamanho”) remete-nos imediatamente para o amor entre Blimunda e Baltasar. Quando Baltasar desaparece, Blimunda sente um enorme vazio por perder o seu companheiro e amor da sua vida. Porém, a personagem nunca desiste de procurar o seu amor. Só passados nove anos é que o reencontra em Lisboa, num auto de fé, e acaba por colher a sua vontade, preenchendo o vazio que sentia. Tal como Blimunda e Baltasar, o “eu” da canção já sentiu um amor igualmente grande. Na antepenúltima estrofe, encontramos representado esse amor: “Só você sabe cuidar tão bem de mim / Só você me amará tão bem assim / Só você sabe cuidar tão bem de mim / Só você me amará tão bem assim”. O sujeito poético, nesta estrofe, mostra vulnerabilidade ao referir e repetir que só “aquela” pessoa é que saberá cuidar e amar da maneira que deseja e de que necessita. O mesmo acontece com Blimunda que só com Baltasar sente todos os seus desejos e necessidades supridos.
Nos últimos dois versos da quinta estrofe (“Ao conhecer as coisas lá do alto / P’ra Terra não sequer mais olhar”) o sujeito da canção expressa o seu desejo de se libertar da terra (onde existe tristeza e desilusão) e voar para o céu (onde o único sentimento existente é a felicidade). Blimunda, tal como o eu lírico também tem o desejo de voar. Esse desejo está representado na sua busca incessante pelas vontades que fazem com que a passarola voe.

Débora

Débora (Suficiente (-)/Suficiente) || "Amar Pelos Dois" (Salvador Sobral / Luísa Sobral), 2017 // José Saramago, Memorial do Convento, 50.ª edição, Alfragide, Caminho, 1994, pp. 493 e 491
A música “Amar pelos dois”, de Salvador Sobral, caracteriza bem o amor entre Blimunda e Baltasar desde o momento em que se conhecem até à hora de partir.
Esta história de amor é profunda e suave como a música. O seu amor é considerado como perfeito e altruísta porque existe um “encontro” entre os seus corpos e as suas almas, criando a utopia do amor.
É possível caracterizar o amor de Blimunda e de Baltasar como uma lição de vida, na medida em que são consideradas pessoas que fazem parte de um nível mais baixo da sociedade, sem possuir bens materiais, são alvos de injustiça e de perigos variados, como, por exemplo, as perseguições da Inquisição. Tudo isto é suportado por algo que nos dias de hoje parece estar em vias de extinção: o amor.
O  amor que os envolve tem a capacidade de juntar estes dois seres transformando-os numa só pessoa. É um amor que dá forças nos momentos mais críticos e, foi com ele que este casal pôde enfrentar as piores adversidades da vida, sempre unidos mesmo quando a morte ameaçava ser o destino irreversível para Baltasar. Blimunda aí retirou-lhe a vontade, salvando-o: “Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a  vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.” (p. 493).
A expressão “Antes de ti, só existi, cansado e sem nada p'ra dar” representa perfeitamente a vida de Baltasar antes de conhecer Blimunda, no sentido de a mesma lhe ter trazido uma nova esperança e ambição.
A primeira parte da canção “ Se um dia alguém perguntar por mim, diz que vivi p'ra te amar” consegue representar de certa forma a fidelidade entre os dois, pois Blimunda nunca desistiu de procurar o seu amor quando este desapareceu, ficando este amor repartido mas sem nunca deixarem de estar juntos por pensamento.
“Meu bem ouve as minhas preces, peço que regresses que me voltes a querer” reflete o que Blimunda sentia e desejava quando Baltasar desaparece, e ela, por sua vez, o procura durante nove anos sem cessar: “Milhares de léguas andou Blimunda, quase sempre descalça. A sola dos pés tornou-se espessa, fendida como uma cortiça. Portugal inteiro esteve debaixo destes passos, alguma vez atravessou a raia de Espanha porque não via no chão qualquer risco a separar a terra de lá da terra de cá” (p. 491).
Podemos concluir que esta história de amor não é igual às outras porque não acabam felizes para sempre, mas foram felizes um com o outro enquanto estiveram juntos e criaram uma história a seguir e a ser desejada por muita gente.
Num certo sentido, estas duas personagens complementam-se: Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas são a luz e a sombra que compõem o dia. Afastam-se um pouco daquilo que era comum e visto como o ideal. Por exemplo, estes dois apenas tinham uma união de facto. A virgindade também era vista como sagrada e perdida apenas após o casamento, mas eles tiveram a primeira relação sexual no dia em que se conheceram. Por estas razões, este amor é verdadeiro e sem fronteiras.

Mateus

Mateus (Suficiente -/Insuficiente +) || “Amor mais forte” (Pedras Vivas) // José Saramago, Memorial do Convento, 21.ª edição, Lisboa, Editorial Caminho, 1992.
A canção “Amor mais forte”, do grupo musical Pedras Vivas, pode ser relacionada com a obra Memorial do Convento, em várias partes da sua letra. A maior relação que existe entre a obra e a música é o amor entre Blimunda Sete-Luas e Baltasar Sete-Sóis, devido ao facto de este ser bastante forte e intenso, podendo mesmo ser dito que é um “Amor mais forte que a morte igual não há”, pois Baltasar é morto num auto de fé, permanecendo a sua alma conservada em Blimunda, perdurando para sempre dentro dela, tal como a sua mãe, Sebastiana, que foi deportada para Angola também numa cerimónia religiosa.
Blimunda, ao passar nove anos à procura de Sete-Sóis, passou por várias dificuldades e por diversos maus momentos: “Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar. Conheceu todos os caminhos do pó e da lama, a branda areia, a pedra aguda, tantas vezes geada rangente e assassina, dos nevões de que só saiu viva porque ainda não queria morrer. (...) Onde chegava, perguntava se tinham visto por ali um homem com estes e estes sinais, a mão esquerda de menos, e alto com soldado de gurda real, barba toda e grisalha, mas se entretanto a rapou, é uma cara que não se esquece, pelo menos não a esqueci eu” (p. 353). No entanto, nunca deixou de tentar reencontrá-lo pois o sentimento que tinha por ele era superior a todas as dificuldades sentidas. Só a lembrança do seu rosto, dos seus traços e da sua maneira de ser fizeram com que Blimunda nunca tivesse desistido de voltar para junto de Baltasar (“Milhares de léguas andou Blimunda, quase sempre descalça. A sola dos seus pés tornou-se espessa, fendida como uma cortiça (...) Em dois anos, foi das praias e das arribas, do oceano à fronteira, depois recomeçou a procurar por outros lugares, por outros caminhos, e andando e buscando veio a descobrir como é pequeno este país onde nasceu”, p. 356).
O tão esperado reencontro entre Sete-Sóis e Sete-Luas é tão dramático como a própria obra. Baltasar é visto por Blimunda numa cerimónia de cariz religioso (auto de fé), onde o primeiro está a cumprir a sentença de ser queimado vido numa fogueira em praça pública. A atitude por parte de Sete-Luas, ao recolher a vontade de Baltasar, só veio comprovar que é o “Amor mais forte que a morte”, ou seja, o amor entre as personagens é mais forte que a própria morte. “Por mim morreu mas vivo está” pode comparar-se com a situação a que assistimos ao ler a obra Memorial do Convento, já que o amor da sua vida morreu e, ainda assim, também devido aos poderes de Blimunda, este casal permanecerá unido pelo seu amor e pela sua paixão ardente.

Catarina

Catarina (Suficiente (-)/Suficiente) || “Fico assim sem você” (Adriana Calcanhoto), Adriana Partimpim, 2004 // José Saramago, Memorial do Convento, 57.ª edição, Porto, Porto Editora, 2016, passim
A canção escolhida para este trabalho é “Fico Assim Sem Você”, da cantora brasileira Adriana Calcanhoto, que pode ser, facilmente, relacionada com a enorme história de amor de Blimunda e Baltasar, de Memorial do Convento.
No início da obra, quando nos são apresentadas as personagens — Blimunda de Jesus, uma mulher do povo, a quem o Padre Bartolomeu, baptizou de “Sete-Luas”, e Baltasar Mateus, também chamado Sete-Sóis, um ex-soldado da guerra da sucessão de Espanha — quem diria que estes dois românticos iriam sofrer de “amor à primeira vista” um pelo o outro, no momento em que se conheceram, num auto de fé, no qual a mãe de Blimunda, Sebastiana de Jesus, era uma das julgadas. 
A principal missão de Baltasar, um homem simples, fiel, terno e maneta, durante toda a obra é ajudar o Padre Bartolomeu Lourenço a construir a passarola: “a máquina voadora”. Já Blimunda era conhecida pelo seu dom sobrenatural de conseguir recolher as vontades do povo, que tinha de se manter em segredo, caso contrário seria julgada pelo Tribunal do Santo Ofício, como fora sua mãe.
Os dois apaixonados tinham um amor muito forte devido ao apoio incondicional que davam um ao outro, apesar de tudo e todos. Vivem um amor sem regras, natural e consistente. Ambos são alvos de injustiça, não ligam a bens materiais (nem os têm) e passam por diversas dificuldades, porém, tudo isso era suportado pelo grande amor que os unia numa pessoa só, ultrapassando variados obstáculos. 
Bartolomeu já fugira para Espanha quando, sozinho, Baltasar foi à serra de Montejunto, para, como costumava fazer, verificar se a passarela estava lá. Foi então que a dita, indevidamente, levantou voo com Baltasar no seu interior. 
No capítulo XXIV, percebemos que Baltasar não volta para casa, o que fez Blimunda não dormir naquela noite. Esta ainda tinha esperança de que ele voltasse ao fim do dia pois com a lua “melhor verá ele o caminho” (p. 332), mas não foi isso que aconteceu. Foi então que Blimunda começou a ver o seu “chão” a fugir: “muita a inquietação desta mulher.” (p. 332)
Blimunda, preocupada e sem conseguir dormir, decide começar a seguir os passos que Baltasar havia dado, à espera de o encontrar, mostrando à população um retrato deste. É nesta sequência que a obra Memorial do Convento se pode relacionar com a música de Adriana Calcanhoto. Tal como a cantora refere, “[Estou] louca p[a]ra te ver chegar / [Estou] louca p[a]ra te ter nas mão / Deitar no teu abraço / Retomar o pedaço / Que falta no meu coração”, estes também são os sentimentos da protagonista quando o seu amado desaparece: “pela primeira vez sentiu o vazio do espaço” (p. 335)
Recusando-se a pôr fim à sua procura e “Com os pés a sangrar, a saia esfarrapada pelo mato espinhoso” (p. 335), continuou subindo o monte, até ao momento em que encontrou um Frade que a aconselhou a passar a noite num convento ali perto. “Sentia-se cansada” (p. 336) e então a “desgraçada mulher que perdeu o seu homem” (p. 337) fez o que lhe dissera o Frade. 
“Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar.” (p. 347), “Por onde passava, ficava um ferimento de desassossego” (p. 348). Toda esta procura se deveu a não conseguir viver sem o seu grande amor, tal como a música transmite: “Eu não existo longe de você / E a solidão é o meu pior castigo / Eu conto as horas pra poder te ver”. 
Após a sua longa procura de nove anos, Blimunda, finalmente, encontra Baltasar. Porém, o seu último encontro não foi nada do esperado visto que Baltasar tinha sido condenado pela Inquisição. 
Nem a morte os separou do seu amor, de tão verdadeiro que este era: “Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.” (p. 351). Há um trecho da canção semelhante: “Se o meu desejo não tem fim”.

Leonor G.

Leonor G. (Suficiente -) || “Can’t Help Falling In Love” (Elvis Presley/RCA Victor), Blue Hawaii, 1961 // José Saramago, Memorial do Convento, 57.ª edição, Porto, Porto Editora, 2016, pp.114-337
Blimunda Sete-Luas tinha apenas dezanove anos quando se envolveu neste caminho sereno em direção ao amor verdadeiro – “Like a river flows surely to the sea / Darling so it goes / Somethings are meant to be [Como um rio que corre certamente para o mar / Querida, assim / algumas coisas estão destinadas a acontecer]”. Tem o dom de conseguir ver o interior dos que a rodeiam, quando em jejum, compreendendo mistérios e verdades de forma mais profunda que qualquer outro conseguiria.
Baltasar Sete-Sóis, por sua vez, é a figura masculina principal da obra, aparecendo vindo da guerra de Espanha (onde perdera a mão esquerda), com vinte e seis anos, sendo caracterizado como um homem simples e fiel que não teme o trabalho nem a morte. O nome “Sete-Sóis” faz referência ao facto de que o elemento sol simboliza a vida, que a morte desta personagem na fogueira da Inquisição signifique o regresso das trevas.
Blimunda e Baltasar viviam um terno amor, incomparável a qualquer outro que se pudesse experienciar na altura; chega até a ser uma lição moral – “Wise men say only fools rush in / But I can’t help falling in love with you [Homens sábios dizem que só os tolos se entregam / Mas eu não consigo evitar apaixonar-me por ti]”. Fazem ambos parte do povo, sofrendo de muita carência de bens-materiais essenciais. Porém, estas e todas as outras adversidades, que ao longo da história são enfrentadas pelo casal, são superadas pelo sentimento nutrido um pelo outro – “Então Blimunda disse, vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda” (p. 337). Nascido no auto de fé, este amor que fora sentido à primeira vista contrastava drasticamente com a relação de D. João V e D. Maria Ana, onde o conjunto obsceno de falta de sentimento, adultério e infidelidade faziam dela apenas um meio para alcançar um fim, que seria assegurar a descendência real. Estão, desde o início, destinados um ao outro – “foi ordem mental que lhe veio da própria mãe, a que ia na procissão, a que tinha visões e revelações, e se, como diz o Santo Ofício, as fingia, não fingiu estas, não, que bem viu e se lhe revelou ser este soldado maneta o homem que haveria de ser de sua filha, e desta maneira os juntou.” (p. 114).
Assim, relação mais estreita não podia haver entre este episódio de romance e a música de Elvis Presley. Presley retrata o sentimento de amor verdadeiro, de quando alguém vê noutra pessoa o reflexo do que mais gostaria de ter do seu lado, ignorando defeitos e tornando-os em imperfeições perfeitamente perfeitas aos seus olhos. Um amor que mais ninguém consegue ter, uma ponte que ninguém consegue quebrar, dada à luz por dois corações inocentes que em mais ninguém veem o tal – “Like a river flows surely to the sea / Darling so it goes / Some things are meant to be / Take my hand, take my whole life too / For I can’t help falling in love with you / For I can’t help falling in love with you [Como um rio que corre certamente para o mar / Querida, assim algumas coisas estão destinadas a acontecer / Agarra a minha mão, agarra a minha vida inteira também / Pois eu não consigo evitar apaixonar-me por ti]”.

Melissa

Melissa (Suficiente (-)) || «Tourada» (Fernando Tordo / Ary dos Santos), Tourada, 1973 // José Saramago, Memorial do Convento, 55.ª edição, Porto, Porto Editora, 2014, pp. 93-107
A canção «Tourada», de Fernando Tordo, pode servir para caracterizar o episódio IX de Memorial do Convento, em que se descreve o contexto das touradas no século XVIII.
Quando o Padre Bartolomeu parte em direção à Holanda, Blimunda e Baltasar, por sua vez, vão para o terreiro do Paço assistir às touradas, em vez de irem para Mafra. Isto deve-se a acharem que as touradas são mais divertidas. A praça encontra-se toda rodeada de mastros com “bandeirinhas” no alto e cobertos de volantes até ao chão; à entrada do curro armou-se um pórtico de madeira, pintada como se fosse mármore branco e as colunas fingindo ser de pedra da Arrábida, com os frisos e cornijas dourados. Ao mastro principal sustentam-no quatro grandíssimas figuras, pintadas de várias cores, e a bandeira de folha de Flandres, que mostra de um lado e do outro o glorioso Santo António sobre campos de prata. As bancadas estão cheias de povo. Foram feitas reservas para as pessoas mais importantes e para as majestades e altezas que miram das janelas do paço. O terreno cheira a terra molhada. Espera-o muita pancada, sangue e urina, e as fezes dos touros.
Quando entraram os três primeiros touros, vieram imediatamente dezoito toureiros de pé que o Senado contratou. Os cavaleiros saíram à praça, espetaram as suas lanças e os de pé cravaram dardos enfeitados de papéis recortados. Podemos comparar com a letra da canção: “Entram guizos e capotes / e mantilhas pretas / entram espadas chifres e derrotes / e alguns poetas / entram bravos cravos e dichotes / porque tudo o mais / são tretas”. Continuaram a entrar touros e, na bancada, sente-se uma enorme euforia. As damas riem, gritam, batem palmas, enquanto os touros vão morrendo um após outro, acabando por serem levados para fora numa carroça de rodas baixas puxada por seis cavalos: “Entram velhas doidas e turistas / entram excursões / entram benefícios e cronistas / entram aldrabões / entram marialvas e coristas / entram galifões / de crista.” A animação é tão grande, que os homens apalpam as mulheres, e vice versa, sem qualquer constrangimento. Blimunda não é exceção, encontra-se toda apertada contra Baltasar.
As touradas acabavam com fogo de artifício por toda a praça, queimam as mantas de fogo, que são umas capas grossas. É como assar o touro quando ainda está vivo, e assim vai o touro a correr pelo terreiro, louco e furioso, saltando enquanto D. João V e o seu povo aplaudem a miséria da morte Compare-se com “E entra muito dólar muita gente / que dá lucro a milhões.”
Verificamos ainda a ironia do narrador, quando afirma que as pessoas, em Lisboa, já não estranham o cheiro a carne queimada, pois já estão habituados aos autos de fé.

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